Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Imprensa investe cada vez mais na imbecilização

Recente pesquisa divulgada pela Federação do Comércio do Rio de Janeiro mostrou que 70% dos brasileiros não leram um livro sequer em 2014. O resultado é preocupante, especialmente se comparado a anos anteriores. Até 2012, a média de leitura do brasileiro era pequena, mas apresentava um número bem mais significativo. Esta média era de quatro livros por ano, sendo 2,1 livros lidos até o fim, segundo levantamento feito pelo Ibope Inteligência em 2011. Por que o Brasil lê tão pouco?

O assunto não gerou nenhuma comoção nacional. Não motivou manchetes de jornais e revistas, reportagens especiais no rádio ou na TV e muito menos comentários ou editoriais indignados. Em outras palavras, pouquíssimo se falou sobre o tema, com professores e escritores repetindo as respostas de sempre: o problema se deve ao pouco investimento em estudo, à falta de vontade política e à própria cultura do povo brasileiro, mais oral do que textual.

Vistas assim, estas explicações acabam jogando a responsabilidade no colo do governo (seja ele qual for) e das próprias pessoas, já que seria parte da “própria cultura do povo brasileiro”. Se para alguns estas “explicações” podem ser suficientes, elas estão longe de abranger o problema em toda a sua dimensão e, principalmente, de apontarem soluções eficazes.

Além do governo e das próprias pessoas, existe outro grande responsável por este estado de coisas que nunca é lembrado: a mídia brasileira, sobretudo a mídia audiovisual comercial que pensa apenas no lucro e transforma o ouvinte/telespectador em mero número na disputa desenfreada por audiência. Nunca houve, de forma efetiva e continuada, investimento desta mídia no aprendizado e desenvolvimento de crianças, jovens e adultos. Ao contrário, investiu-se e investe-se cada vez mais na imbecilização geral.

Em todos os países democráticos, a educação sempre foi uma das tarefas prioritárias dos meios de comunicação, ao lado de informar, entreter e prestar serviços. Tarefa reforçada pelo fato de que na Europa, a mídia audiovisual pública, comprometida os interesses da cidadania, precedeu à mídia comercial. O quê faz uma enorme diferença. Mesmo nos Estados Unidos, onde a mídia comercial prevalece, existem mais de 600 emissoras de rádios e TVs públicas que servem de parâmetro para as demais e para a própria sociedade.

Roquette-Pinto e a “escola dos sem-escola”

No Brasil, as primeiras experiências envolvendo o rádio e a televisão tiveram em comum a mesma pessoa: o médico, sociólogo, educador, professor e cientista carioca Edgar Roquette-Pinto. A Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, por ele criada em 1923, tinha como objetivo difundir a educação e a cultura em todo o território nacional, pois entendia este veículo como “a escola de quem não tem escola”.

A Rádio Sociedade do Rio de Janeiro foi a primeira emissora na América do Sul a transmitir uma ópera completa, a apresentar um programa de teatrinho infantil, a levar ao ar cursos de português, história, inglês, física, biologia e química, além de transmitir palestras sobre assuntos do momento e tocar música brasileira com regularidade. Apesar de sua importância e do compromisso com a educação, num país tão carente de iniciativas dessa ordem, uma série de determinações do governo federal passou a complicar a vida da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro.

O decreto nº 16.657 de 5 de novembro de 1924 proibiu a inserção comercial nas suas transmissões. Até aí, tudo bem, porque a emissora sobrevivia graças à mensalidade paga por seus 300 filiados. No entanto, o crescimento da radiodifusão provocou o interesse de agências de publicidade norte-americanas em relação ao mercado consumidor brasileiro. Agências que vieram para cá acompanhando as empresas dos Estados Unidos, Canadá e Inglaterra que aqui se instalavam. O enorme interesse das pessoas pelo rádio começou a ter efeitos também sobre os proprietários de jornais que identificaram o novo veículo como adequado para se ganhar dinheiro.

Um desses proprietários era Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Melo que, já possuindo sete jornais e uma revista, o Cruzeiro, inaugura, em 1935, no Rio de Janeiro, sua primeira emissora de rádio, a Tupi. Para viabilizar seu negócio, contou com recursos de empresas como a General Eletric e de patrocinadores, entre os quais estavam quase todos os milionários cariocas e paulistas. Chateaubriand passa a pressionar – e consegue – que o governo liberasse a publicidade nestas emissoras. Depois disso, o rádio brasileiro nunca mais voltou a dar ênfase à educação, com o próprio Roquette-Pinto entregando, no ano seguinte, numa atitude inédita, sua emissora para o Ministério da Educação e Cultura (MEC). Ele não aceitava condicionar a programação aos interesses dos anunciantes e, sem outra forma para manter a rádio, uma vez que os assinantes minguavam, acreditava que nas mãos do governo ela poderia ter um futuro melhor.

Numa triste coincidência, mais de duas décadas depois, Roquette-Pinto vai se deparar novamente com Assis Chateaubriand, desta vez nos primórdios da televisão no Brasil. Como cientista Roquette-Pinto já vinha, desde 1940, pesquisando sobre a “oitava maravilha do mundo” e dispunha de todas as condições técnicas para colocar no ar uma emissora comprometida com a educação e a cultura. Já o empresário Chateaubriand, em 1943, é apresentado à tecnologia da televisão numa visita que faz aos Estados Unidos e imediatamente percebe que ali residia uma nova fórmula para ampliar seu poder e ganhar mais dinheiro.

Resumo da ópera: a televisão educativa sonhada e planejada por Roquette-Pinto, que já contava com o apoio e o financiamento da Prefeitura do Rio de Janeiro (então distrito federal), acabou, por pressões políticas, sendo inviabilizada, enquanto a emissora comercial de Chateaubriand foi inaugurada em 19 de setembro de 1950, em São Paulo. Ao contrário de outros países, a televisão comercial no Brasil nunca pensou seriamente em seu compromisso com a educação e menos ainda que foi e continua sendo uma das principais responsáveis pelo próprio iletramento vigente no país.

Iletramento e alienação

Os males do analfabetismo são conhecidos. Uma pessoa que não dispõe da “tecnologia” do ler e do escrever, não pode exercer em toda a plenitude os seus direitos de cidadão. O analfabeto é marginalizado e não tem acesso aos bens culturais das sociedades letradas. No entanto, existe, nos dias atuais, outra forma de analfabetismo tão ou mais grave, sobre a qual quase nada é dito. Trata-se do iletramento provocado pelos meios de comunicação, em especial os audiovisuais.

No campo acadêmico, estes estudos são denominados media literacy, que em português não tem tradução direta, pois a palavra letramento não existe nos dicionários da língua portuguesa. Razão pela qual, muitos preferem referir-se ao tema como sendo educação para a mídia. Seja como for, o certo é que letramento ou educação para a mídia significa que o indivíduo precisa de uma educação especial que o habilite a entender o conteúdo da mídia e o possibilite a formular sua própria opinião sobre os assuntos abordados.

O iletrado é o oposto disso. É o cidadão que não dispõe de recursos para compreender como a mídia funciona e, sobretudo, para relativizar o que lhe é mostrado. Até porque, a verdade/realidade para a mídia comercial, com as exceções de praxe, é quase sempre o que interessa aos seus proprietários e anunciantes.

Na Europa e nos Estados Unidos, onde este problema há muito foi detectado, a preocupação em evitar que o iletramento leve à alienação da sociedade está se transformando em prioridade para universidades, instituições de ensino e cidadãos.  Nestes países, a mídia audiovisual é regulada e conta com o contraponto da mídia pública. Situação que torna a realidade brasileira mais grave ainda, a exigir das autoridades, dos Ministérios (Educação, Cultura e Comunicações), das escolas de ensino básico e fundamental, das universidades e dos setores mais sensíveis a esta temática um posicionamento imediato.

Que a mídia comercial brasileira nunca teve preocupação com a elevação do nível intelectual e de informação da população é fato. O problema é que este descompromisso está aumentando e a grande maioria não se dá conta disso. Quando se pensa em educação da população brasileira, pensa-se como há 50 ou 100 anos, quando a tarefa era função primordial da família, das igrejas e da escola. Hoje não é mais.

Midiotas

A mídia, em especial a televisão, transformou-se na arena por excelência do espaço público brasileiro. Presente em 98% dos lares, ela é também o principal meio de que dispõe a população para se informar e para entender o mundo em que vive.  Quando a televisão deixa de lado esta tarefa e passa a mostrar uma realidade que não condiz com os fatos, não é preciso muito esforço para se avaliar os problemas daí decorrentes.

As novas tecnologias da comunicação, em especial a internet 2.0 com suas redes sociais, tem contribuído para minimizar os efeitos deseducativos da mídia comercial. Mas no Brasil, infelizmente, ainda se está longe de uma universalização do acesso a estas redes, o quê mantem e aprofunda a gravidade do quadro, em que a redução da leitura é apenas uma das pontas do iceberg.

Em outras palavras, fica mais fácil entender como diria o saudoso Stanislaw Ponte Preta, o febeapá dos dias atuais, com “indignados” reivindicando “intervenção militar constitucional” ou tendo como palavras de ordens difusos xingamentos e palavrões contra o governo. Os telejornais brasileiros (Jornal Nacional à frente) são os principais responsáveis pela desinformação que permeia a sociedade brasileira, pois ao mostrarem diariamente, sem qualquer contextualização e espaço para o contraditório, problemas diversos envolvendo, por exemplo, corrupção, acabam levando a população a acreditar que ela começou agora e é o inimigo número 1 do Brasil.

Mais ainda, a mídia tem sido, no Brasil, fonte de “soluções” conservadoras e reacionárias. Basta pensar nos Big Brothers, nos programas de auditório, com suas competições e jurados duvidosos, e nos programas policialescos, com o permanente estímulo ao se fazer “justiça com as próprias mãos”. Daí, não causar surpresa, que no início do século 21, existam aqui tantas pessoas acreditando que “vencer na vida é questão de puro mérito pessoal”, outras tantas pensando que “homossexualismo é doença”, e um contingente cada dia maior disposto a apoiar a redução da maioridade penal, como solução para a criminalidade.

Mesmo quando a televisão, através de algumas telenovelas, tenta abordar temas tabus (a exemplo do homossexualismo feminino) o faz de uma forma descontextualizada que passa longe de conseguir aprofundar, efetivamente, a questão. Isto porque esta temática, por exemplo, está ausente de outros programas de sua grade, sem falar que é apresentada para a população sem mediações. Situação que mostra como fazem falta, aqui, programas educativos como os da British Broadcasting Corporation (BBC), a TV Pública Inglesa, ou da Public Broadcasting System (PBS), a TV Pública norte-americana, ou mesmo da TV Nacional, a TV Pública argentina, em que estas e tantas outras temáticas são discutidas e aprofundadas através de documentários, mesas-redondas e até mesmo reality shows. Só que reality shows completamente diferentes dos que conhecemos.

A título de exemplo, um dos realities shows de maior sucesso na BBC, até recentemente, envolvia personalidades e gente comum e suas críticas ao consumismo e aos produtos nocivos e sem interesse para a comunidade. Uma celebridade ou uma pessoa simples jogar na fogueira um determinado refrigerante ou posicionar-se contra um novo modelo de celular é quase impensável no Brasil. Mas na Inglaterra, não.

Os debates presidenciais nos Estados Unidos são realizados e conduzidos pela PBS e seria inaceitável para a maioria da população que eles acontecessem nas emissoras comerciais e com regras impostas por elas, como se dá no Brasil. Mais ainda: na Argentina, a população tem na TV Nacional o contraponto à cobertura partidarizada que a mídia comercial faz de questões desde responsabilidades por violações aos direitos humanos e torturas durante o período de ditadura militar até recentes convênios de cooperação técnico-científica, assinados pela presidente Cristina Kirchner em viagens à China e à Rússia.

Enquanto isso, aqui no Brasil, a mídia comercial, numa unanimidade que Nelson Rodrigues já sabia ser burra, continua promovendo e contribuindo para o iletramento da população. Ou, como já bem definiu Luciano Martins Costa (aqui neste Observatório) para que no lugar de cidadãos tenhamos, cada vez mais, midiotas. Voltarei ao assunto.

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Ângela Carrato é jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG. Este artigo foi publicado no blog Estação Liberdade