A relação dos meios de comunicação com os casos que caem no Judiciário, pela falta de um assessoramento técnico, muitas vezes faz passarem ao largo matérias merecedoras de serem trazidas ao debate nacional.
O julgamento do caso Raposa/Serra do Sol tem polarizado opiniões no país, desde o indigenismo à outrance até os seguidores do general Custer e do general Roca, e estes debates têm repercutido na mídia, embora a solução, efetivamente, passe pela reconstituição factual feita em sede pericial. Somente o profissional dotado do conhecimento técnico específico poderá apontar os elementos que indicam se sobre aquela terra foi ou não, alguma vez, exercida posse no sentido indígena, ou não. Até porque é bom recordar que terras indígenas são, nos termos do artigo 20 da Constituição Federal, terras da União, sobre as quais os índios não exercem direito de propriedade, mas tão-somente usufruto, de acordo com o artigo 231 da mesma Constituição.
A proprietária de terras indígenas é a União. Se sobre a área não houver posse indígena, cabe a discussão acerca de ser área de propriedade pública a outro título, ou de propriedade privada, assegurada também no inciso XXII do artigo 5º e elevada à condição de princípio da ordem econômica no inciso II do artigo 170 da Constituição Federal. Mas tudo isto é matéria que exige o exame das provas, a ser avaliado por cada um dos ministros do Supremo Tribunal Federal no julgamento da petição 3.388, com liberdade, porém, motivando os respectivos votos, como exigido tanto o artigo 131 do Código de Processo Civil, como pelo inciso IX do artigo 93 da Constituição Federal. Por esta razão, não me sinto apto a pronunciar-me sobre a matéria em seu mérito.
Poderes da União e do Estado
Mas existe um dado que se pode verificar, por uma simples consulta ao sítio do Supremo Tribunal Federal: o estado de Roraima está sendo defendido por um ministro aposentado do STF, e não por quem detém a competência constitucional para o defender. Em 22 de agosto deste ano, com efeito, foi juntada aos autos da petição 3.388 procuração outorgada ao ministro Francisco Rezek. Por certo, recordando que, no início do século 20, os estados do Amazonas, do Paraná e de Santa Catarina puderam contar, os dois primeiros, com os préstimos de Ruy Barbosa, e o último, com os de Epitácio Pessoa, para defender os respectivos interesses perante o Supremo Tribunal Federal, não pareceu às empresas de comunicação social relevante esta situação, pelo merecido renome do profissional contratado.
Contudo, temos de recordar que a Constituição de 1988, diferentemente de suas antecessoras, dedicou um setor à Advocacia Pública. A mesma Constituição que é a fonte positiva do direito de propriedade, da liberdade de iniciativa, bem como das respectivas reativizações, do dever estatal de prover a segurança pública, dos poderes que se conferem ao presidente da República, aos governadores e aos prefeitos, enquanto chefes dos executivos federal, estadual e municipal, aos deputados federais, senadores, deputados estaduais e distritais e vereadores, enquanto responsáveis pela aprovação das leis do país, nos âmbitos federal e nacional, estadual e municipal, aos juízes de todos os níveis para solucionar, imperativamente, os conflitos de interesses que se lhes apresentem, também define, nos seus artigos 131 e 132, quem detém os poderes para atuar em nome da União e do Estado, respectivamente.
Apenas duas súmulas desautorizadas
Poder-se-ia, eventualmente, sustentar que o agente a que se refere o artigo 132 da Constituição Federal, admitido mediante concurso de provas e títulos, não excluiria a atuação de outros profissionais. Entretanto, aprendi, com quase vinte anos de exercício profissional, inclusive nos Tribunais Superiores, que a Constituição é o que o Supremo Tribunal Federal diz que ela é. Mesmo antes de se institucionalizar a ‘súmula vinculante’, era comum serem rechaçados recursos interpostos contra decisões de Tribunais de Justiça e de Alçada quando elas estivessem de pleno acordo com o entendimento firmado pelo plenário daquela corte.
Em mais de setecentas súmulas editadas – sem efeito vinculante (em teoria, porque, na prática, ele sempre existiu) –, somente oito foram revogadas e duas foram desautorizadas, a saber, a que sustentava a possibilidade de a sanção do chefe do Executivo convalidar projeto de lei de iniciativa reservada a este que tivesse partido de parlamentar e a que sustentava o caráter não tributário do empréstimo compulsório.
Defesa do patrimônio
E a inafastabilidade da reserva de competência posta pelo artigo 132 da Constituição Federal em relação aos respectivos procuradores vem sendo afirmada pelo Supremo Tribunal Federal desde a Ação Direta de Inconstitucionalidade 881, relatada pelo ministro Celso de Mello. Somente na hipótese de um impedimento de todos os procuradores do estado é que surgiria a possibilidade de tal contratação – mas sobre tal impedimento não houve, ao que se saiba, qualquer notícia até hoje.
Isto porque o tratamento da representação judicial dos estados se coloca a título de competência, isto é, de um poder-dever que se confere a um agente, que não pode a ele renunciar nem deixar de o exercer sem um motivo ponderável – juridicamente ponderável. Tanto as causas grandes, como esta, quanto as causas pequenas, como execuções fiscais, como demandas envolvendo viaturas do poder público estadual, como debates em torno de remuneração de servidores, têm de ser atendidas necessariamente, e com o mesmo denodo, sem a possibilidade de recusa imotivada, pelo procurador do estado.
O tema, enfim, mereceria ser pautado, sobretudo, tendo em vista que se trata da própria defesa do patrimônio público, bem como para que se chame a atenção dos representantes da Advocacia Pública no seio do Congresso Nacional.
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Advogado, Porto Alegre, RS