‘Dos tempos de estudante, quando boa parte dos jovens universitários passeava pelos livros de Karl Marx – embalados pelos ventos que sopravam do ABC paulista e pela ‘redemocratização’ do País, que se vislumbrava pelas frestas da abertura ‘lenta, gradual e segura’ – e era quase obrigatório participar de algum ‘grupo de estudo’ marxista, sobraram-me alguns fiapos de sua teoria e uma frase que, vez em quando, me ressoa aos ouvidos: ‘A humanidade só se propõe tarefas que pode resolver’, apesar de se referir às condições para a revolução comunista, que se criariam, segundo o filósofo, com o esgotamento do sistema capitalista, sempre gostei de pensar nessas palavras como um bálsamo frente às tragédias humanas.
Ela voltou-me agora à memória, martelando em forma de pergunta, com o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, divulgado na sexta-feira, em Paris. O relatório, preparado por um grupo de 2.500 cientistas de 130 países (incluindo três brasileiros), reunidos pela Organização das Nações Unidas (ONU), é o quarto de uma série iniciada em 1988, sendo o que está causando maior impacto. Os problemas gerados pelo aquecimento global, provocado pela emissão de gases poluentes, são gravíssimos, para não dizer catastróficos – apesar do cuidado extremo dos cientistas na escolha das palavras postas no relatório.
A lista dos males que vão recrudescer – pois já se fazem sentir hoje – em espaço de tempo curtíssimo, em termos históricos, são inéditos na história humana. Os cientistas avaliam que a temperatura da Terra aumentará 1,8 grau até 4 graus centígrados até o fim do século, provocando o derretimento do gelo do Pólo Norte até o ano de 2100, o que fará subir o nível dos oceanos. Os cientistas explicam que um grau centígrado de aumento na temperatura já pode provocar danos sérios ao meio ambiente e às pessoas.
Pela avaliação dos cientistas, o mais provável é o aumento de três graus centígrados, o que resultaria: a) de 40 a 60 milhões de pessoas a mais expostas à malária na África; b) até 10 milhões de pessoas expostas a enchentes nas zonas costeiras; c) entre 15% e 40% dos seres vivos ameaçados de extinção; d) de um bilhão a 4 bilhões a mais de pessoas sujeitas a escassez de água; d) mais um milhão a 3 milhões de pessoas morreriam de desnutrição; e) segundo alguns modelos de previsão, seria o início do colapso da floresta amazônica. Até dois graus, os mesmos problemas ocorreriam em proporções menores. Se a temperatura subir a 5 graus centígrado, a elevação dos oceanos ameaçaria pequenas ilhas (muitas habitadas) e áreas costeiras, incluindo grandes cidades, como Nova York, Londres e Tókio.
E a imprensa?
Se o objetivo desta coluna é criticar a imprensa, por que até agora escrevo sobre o aquecimento global? Respondo reproduzindo o título que o jornalista Luiz Weiss deu ao seu comentário no blog ‘Verbo Solto’ (www.teste.observatoriodaimprensa.com.br), em 30/1, no qual trata do assunto: ‘O desafio da mídia é fazer você entender para crer’. Para Weiss, o ponto de partida para se compreender a gravidade da situação ‘é acreditar nos cientistas quando dizem que nenhum outro problema com que a humanidade se defronta é mais grave que o do aquecimento da Terra. Nem o terrorismo, nem a proliferação nuclear, nem a pobreza e a desigualdade, nem o narcotráfico’.
Portanto, frente a esse problema de gigantescas proporções, os meios de comunicação precisariam agir de modo diferente ao habitual: um grande barulho inicial a respeito de um fato que chama a atenção do público, com as manchetes estalando primeira página; uma semana após, o assunto vai para as páginas internas; mais alguns dias, vira nota de rodapé; depois, o tema só volta a ganhar destaque ao surgirem ‘fatos novos’, no caso, o próximo (e certamente mais grave) relatório da ONU.
Esta é uma causa em que o papel mobilizador da mídia tem ser usado em todo o seu potencial. Desta vez, não se trata de manter a ‘imparcialidade’ entre propostas supostamente divergentes, de evitar parcialidade em desacordos políticos ou econômicos, mas, simplesmente, de enxergar que está em jogo o futuro da humanidade e de ficar ao lado da vida. Se, de fato, os homens só se propõem problemas que possam resolver, mais do que nunca chegou a hora de prová-lo – e os jornais têm um papel decisivo a desenvolver, municiando-os de informações e análises para manter o assunto na ordem do dia.
Jornalistas
A organização Repórteres sem Fronteiras (RSF, com sede em Paris) divulgou neste início de fevereiro o seu relatório anual relatando as principais violações aos direitos dos jornalistas, em 98 países dos cinco continentes. A organização avalia que ‘uma vez mais, se demonstra que em todo o mundo a liberdade de expressão é maltratada’.
Para a organização, o ano de 2006 foi ‘marcado pelo abandono do compromisso por parte de quem se esperava a defesa da liberdade de expressão e seu corolário, a liberdade de imprensa’. A RSF pergunta aos países democráticos quem teria ‘autoridade moral’ para defender incondicionalmente a liberdade de imprensa. Critica a União Européia, que vincula seus acordos ao respeito aos direitos humanos, mas ‘se cala’ sobre as graves violações à liberdade de ‘pensar, falar e escrever’, nos países que ‘desfrutam de sua generosidade’. É citado o caso da Rússia, onde foram assassinados 21 jornalistas desde que Vladimir Putin assumiu o poder, em 2000, país com a qual, segundo a RSF, a União Européia ‘contemporiza’, por ser um grande fornecedor de energia aos países europeus.
Também é destacado o caso da Ásia, onde foram mortos 16 profissionais, mais de 300 foram presos e outros 500 ameaçados, sendo censurados 478 meios de comunicação. ‘São muito poucos os países na Ásia nos quais se pode escrever sobre qualquer assunto’. A China é citada pela repressão aos que usam blogs na internet para expressar seu descontentamento: 60 deles estão presos. Para a organização vários países estão seguindo o mau exemplo da China, como a Tunísia, Síria, Vietnã, Líbia e Irã, onde os ‘ciberdissidentes’ estão sendo encarcerados.
O relatório completo, com a situação em cada um dos países, pode ser visto no portal (http://www.rsf.org/), em espanhol, francês, inglês e árabe.’