Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A semiotização dos interesses dominantes

O sufrágio universal é, em tese, um dos instrumentos que demarcam um sistema democrático. É a possibilidade de a maioria dos cidadãos se fazerem representar na esfera política através dos poderes Executivo e Legislativo. É o momento em que a esfera pública demonstra a sua vontade, a sua convicção de que a participação efetiva e consciente é a única maneira de escrever as páginas da história de sua existência social. Neste sentido, o horário gratuito de propaganda eleitoral (HGPE) tem importância significativa no processo de escolha. Em tese.

Afirmo em tese porque em sociedades como a brasileira, onde os índices de analfabetismo (de fato e político) são alarmantes, os supostos representantes populares – ou os candidatos a esses postos – cada vez mais apostam na ignorância generalizada e, em períodos eleitorais como o que agora vivem as populações dos mais de 5 mil municípios do país, ainda que munidos de propostas carentes de consistência ou mesmo desprovidos de qualquer proposição, se apresentam ao eleitorado como a salvação para as inúmeras mazelas sociais presentes no cotidiano, a maioria delas provocada por esses próprios supostos salvadores ou por outros pertencentes aos seus grupos.

Fica claro (para alguns) o quanto a nossa esfera pública pouco ou nada tem de consciente, de democrática, ou de participativa e, sobretudo, o quanto a suposta opinião da maioria, em realidade, nada mais é do que a assimilação da opinião dos clãs hegemônicos que dominam o capital (e a comunicação).

Garantia de direitos fundamentais

De acordo com a pesquisadora em Comunicação Heloiza Matos, ‘o reconhecimento da esfera pública como diversidade de locais de expressão exige, por antecipação, a interiorização dos direitos do cidadão – entendida sob prismas diferentes. Por exemplo: como a capacidade do agente se reconhecer como participante social, de elaborar uma posição própria e expressar-se de forma a valorizar a sua posição (e a de seu grupo de referência). […]. Ainda conforme Matos, ‘o que está na base dessa discussão é a elaboração de uma cultura (cívica e comunicacional) do que seja público e do valor deste público. Uma cultura que capacite os agentes a se instituírem como comunicadores públicos na esfera pública’.

Seria, na prática, o exercício da cidadania, que não se resumiria apenas na efetivação do voto, já que a democracia, esse conceito que aprendemos a conhecer nos primeiros anos de escola quando estudamos as sociedades da Antigüidade ocidental (história, diga-se de passagem, quase sempre eurocêntrica), sugere uma organização cujas decisões que dizem respeito ao conjunto de cidadãos se dão através da participação efetiva destes. Na Grécia antiga, representou um avanço considerável. Na contemporaneidade, embora muitos vociferem defendendo-a, é possível perceber que ainda se dista da sua forma mais ampla porque não basta o estabelecimento do sufrágio, mas é, sobretudo, importante a garantia de uma participação efetiva da cidadania e esta somente acontecerá mediante a garantia de alguns direitos fundamentais, dentre eles o da educação de qualidade para todos, indistintamente.

Oportunidade de se fazer enxergar

Considerando esta perspectiva, como esperar que a maior parte da população brasileira possa enxergar, por exemplo, as manobras contidas no HGPE que vai ao ar no rádio e na televisão, principalmente através da utilização dos recursos tecnológicos da comunicação moderna? Como esperar que a maioria tenha o discernimento para perceber que, em uma grande parte das peças que vão ao ar nesses horários, há uma gama de discursos estrategicamente construídos justamente com o intuito de ludibriar, de confundir, de desviar a atenção da maioria do eleitorado para as verdadeiras discussões que deveriam ser travadas, inclusive a partir das propostas da própria cidadania?

Em Salvador, por exemplo, existe a proposta de um determinado candidato à Prefeitura que prevê a colocação do chamado Big Brother nos bairros, câmeras que supostamente inibiriam as ações dos delinqüentes. A violência passou a ser associada ao entretenimento e não é tratada como uma das grandes conseqüências da falta de políticas sociais neste país, que vem se arrastando há séculos, desde a dita abolição da escravatura, em 1888, quando milhões de seres humanos foram jogados à própria sorte, sem educação, moradia ou dignidade.

No entanto, a falta de referenciais capazes de remeter a uma reflexão mais profunda leva boa parte do eleitorado a aprovar propostas como essa, vendo-a como a grande solução para a questão da violência na cidade, sem atentar para o fato de que as câmeras talvez sirvam como um ‘atrativo’ a mais para os delinqüentes, sedentos por visibilidade social. Lembremos o caso do ônibus 174, na cidade do Rio de Janeiro, protagonizado pelo jovem Sandro do Nascimento, que viu nas câmeras de TV uma oportunidade de se fazer enxergar, de se fazer ouvir, já que durante toda a sua existência, até aquele fatídico momento, foi praticamente invisível aos olhos da sociedade. Até o dia da sua morte, só foi visível para o único ‘braço’ do Estado que chega até as populações marginalizadas: a força policial.

Estrutura viciada e corroída

Os ‘Sandros’ continuam sendo ‘fabricados’ por nossa sociedade, desprovida de um modelo de Estado capaz de promover a igualdade de direito entre os cidadãos, como prevê o sistema verdadeiramente democrático. No HGPE, no entanto, vemos, inclusive, candidatos tentando ludibriar o eleitorado, prometendo transformar essa estrutura que alguns de nós sabemos necessitar muito mais do que meros discursos sazonais.

O comunicólogo Valter Rodrigues adverte que os meios de comunicação, como ‘superfícies privilegiadas de visibilidade dos acontecimentos, seriam, assim, a principal, para não dizer a única, tribuna democrática na qual o debate público entre Estado e sociedade civil poderia se realizar’. Para ele, ‘o período eleitoral, no qual se dá a escolha do conjunto dos representantes que ocuparão lugares no governo da polis, seria, dessa perspectiva, o ponto de convergência privilegiado para a composição dessa tribuna, por ser o momento em que os grupos sociais, em sua multiplicidade, poderiam designar, cada um, aqueles que representariam seus interesses, fazendo-os seus porta-vozes’. No entanto, o próprio Valter ressalta que ‘tal expectativa, entretanto, constitui-se muito mais como uma idealidade do que uma efetividade. A totalidade dos grupos sociais, em sua diversidade, não só não consegue se fazer representar no campo político e nos meios de comunicação de massa, como sua voz, quando encontra algum lugar de expressão, surge semiotizada conforme os interesses dos grupos de poder dominantes’.

A partir deste prisma, pode-se afirmar que o HGPE hoje, no Brasil, se apresenta inconsistente, desprovido de credibilidade. Para constatar, é necessário apenas observar a inclusão de promessas impossíveis de serem cumpridas, a exemplo de projetos que prevêem criação de despesas para o Poder Executivo, que, por inconstitucionalidade, não podem ser aprovados pelo Legislativo. Mas, apostando na ignorância quase que generalizada, eis que os ‘salvadores da pátria’ apresentam as supostas soluções milagrosas, conseguindo muitos deles a vitória nas eleições, para assim dar continuidade à estrutura viciada e corroída entre outras coisas pela corrupção: a chamada democracia brasileira.

Referências

MATOS, Heloiza. Engajamento Cívico e Participação Política: Controvérsias entre as TIC’s e o declínio do Capital Social. 2007.

RODRIGUES, Valter. ‘Poder e [im]potência da mídia: a alegria dos homens tristes’. In: BARROS FILHO, Clovis. Comunicação na polis: ensaios sobre mídia e política. São Paulo: Vozes, 2002

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Doutora em História da Comunicação pela Universidad Complutense de Madrid, professora da rede pública estadual de ensino da Bahia e do Curso de Comunicação Social da Faculdade 2 de Julho, Salvador, BA