Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Último Segundo


SEGUNDO MANDATO
Alberto Dines


Portinari versus Lula, 23/02/07


‘O governo federal escolheu o lado errado na cruzada para evitar que o menino
João Hélio morra pela segunda vez com a vitória da impunidade. O pronunciamento
do presidente Lula na véspera do carnaval ao afirmar que a diminuição da
maioridade penal poderia chegar à condenação de fetos foi insensível, simplista
e beira a leviandade.


Se o governo encampou a convicção do seu quase ex-ministro Márcio Thomaz
Bastos de que está no caminho correto na luta contra a violência, não precisava
agredir a família enlutada e os milhões de brasileiros (sobretudo brasileiras)
solidários com a tragédia dos Vieites. A metáfora foi rasteira, fruto talvez da
sua obsessão em imaginar-se num eterno palanque. Qualquer que sejam os
atenuantes psicológicos da manifestação presidencial, a verdade é que o Chefe da
Nação aferra-se aos sofismas que lhe sopram nos ouvidos e, com isso, enfia-se
num bunker impermeável aos sentimentos dos milhões de concidadãos que
simplesmente estão com medo — medo de que as coisas só mudarão para pior. Foi
contestado abertamente pelos pais de João Hélio.


João Cândido Portinari, filho do nosso pintor maior, foi na direção
contrária: algo precisa ser feito já. Se os corações e mentes das autoridades
estão embrutecidos pelo jogo político, o caminho será a desobstrução das almas.
Optou pela comunhão e pela comunidade: abriu mão dos direitos autorais de cinco
mil obras do acervo que está sob sua guarda desde que sejam utilizadas em
mensagens contra a violência. Começou com um e-mail dirigido a duas mil pessoas,
logo ganhou as primeiras páginas dos jornais e destaques nos telejornais. Em
poucos dias, converteu-se num ícone de solidariedade.


Desenhos e esboços para o mural ‘Guerra e Paz’ que está há mais de meio
século na sede da ONU serão capazes de melhorar o mundo? A ‘Pietá’ de
Michelangelo, na qual Portinari inspirou-se para alguns detalhes, foi esculpida
há mais de 500 anos e mudou coisas essenciais na história da humanidade. E nossa
humanidade pode ser decisivamente alterada pelos traços trágicos do artista de
Brodosqui. Se a violência só pode ser enfrentada como um processo (como apregoam
o ministro da Justiça e seus acólitos), este processo precisa ser constantemente
ativado por altas doses de emoção e humanidade.


E não foi humanidade que o presidente Lula destilou ao mencionar os fetos.
Prometer o fim da violência para quando as escolas que começarão a ser
construídas receberem todas as crianças do país é um truque ideológico
simplório.


Neste ponto o presidente Lula lembra o seu colega da Casa Branca que se
recusou a assinar o Protocolo de Kyoto em defesa do meio-ambiente porque
acreditava que o processo econômico sozinho seria capaz de corrigir as
distorções e agressões à Natureza.


Processos sociais, políticos, econômicos e até mesmo existenciais não são
como os giroscópios, instrumentos automáticos, duradouros e infalíveis, ao
contrário, são constantemente confrontados por processos contrários e às vezes
mais fortes. O homem dos palanques Lula não tem obrigação de conhecer os
princípios elementares da dialética hegeliana mas o jurista Bastos não poderia
ignorá-la.


O tal ‘processo’ alegado pelo ministro Bastos na sua infeliz entrevista à
‘Folha’ nesta sexta lembra aquele outro processo inventado por Kafka, construção
absurda, verdadeira caricatura do engenho humano. Parecida, aliás, com as
teorias do incrível repórter Borat cujo non-sense começa a ser exibido nas telas
de cinema do país.


O processo Portinari oferece uma alternativa generosa ao processo messiânico
de Lula: tenta agregar, reunir os desgarrados, procura oferecer tarefas
coletivas justamente para evitar o vácuo e a solidão onde fermentam os
revanchismos.


Adiar mais uma vez a composição do ministério para Março como anunciou o
presidente Lula é um mal menor se comparado com o adiamento ‘sine-die’ das
nossas esperanças por um País melhor.’


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