Há duzentos anos nascia a imprensa no Brasil. A então colônia portuguesa, que permanecera três séculos sem tipografias, pôde, a partir da instalação da Impressão Régia, em maio de 1808, ingressar na era de Gutenberg. Quatro meses depois de saírem à luz os primeiros papéis impressos no Brasil, a coroa decidiu publicar o primeiro jornal da América portuguesa, a Gazeta do Rio de Janeiro.
O Observatório da Imprensa exibido na terça-feira (16/9) pela TV Brasil e pela TV Cultura veiculou o último programa da série apresentada ao longo do ano sobre o bicentenário da imprensa brasileira. A historiadora Isabel Lustosa participou do debate ao vivo no estúdio do Rio de Janeiro. Concederam entrevistas gravadas as historiadoras Maria Beatriz Nizza, Lúcia Bastos, Mary Del Priore, Cybelle Ipanema e Juliana Gesuelli.
Antes do debate ao vivo, o jornalista Alberto Dines comentou a crise econômica que atinge os Estados Unidos e que já causa estragos pelo mundo. ‘A concordata do banco Lehman Brothers era fato, mas o apocalipse não apareceu nas primeiras páginas dos jornalões brasileiros no domingo (14/9). Óbvio, eles são fechados na sexta. A catástrofe só hoje ficou visível em suas verdadeiras dimensões’, criticou. O jornalista comentou que o leitor ficou confuso com a comparação com a queda das bolsas após os atentados às Torres Gêmeas. ‘Como os jornalistas não sabem o que foi o crack da bolsa americana em 1929, só tinham como termo de comparação o 11 de Setembro de 2001, que nada teve com a economia, foi terrorismo.’
No editorial que precede o debate, Dines afirmou que ‘o bicentenário da nossa imprensa não aconteceu. Foi afanado, não foi comemorado. A mídia impressa, nela compreendidos os empresários e jornalistas, resolveu embargar não apenas a sua festa, mas também a sua história’. Disse que o programa OI na TV está na contramão da grande imprensa e que para entender o presente é preciso conhecer o passado. ‘Estamos com o filósofo George Santayana: aqueles que ignoram o seu passado estão condenados a repeti-lo’, comentou.
Uma história que começa com Napoleão
A historiadora Lúcia Bastos explicou o contexto da transferência da corte portuguesa para o Brasil, impulsionada pelas invasões napoleônicas. ‘Os países da Europa estavam todos aliados à França napoleônica e Portugal se encontrava numa situação delicada, sem forças militares, numa espécie de um difícil equilíbrio entre a Inglaterra de um lado e a França, de outro.’ Mas a notícia do tratado de Fontainebleau, que dividia Portugal entre a França e a Espanha, tornou a situação insustentável e o príncipe regente D. João decidiu vir para o Brasil, em novembro de 1807.
Dois meses depois, ao desembarcar no Rio de Janeiro, a Família Real encontrou uma cidade cosmopolita. A historiadora Mary Del Priore explicou como se dava a comunicação antes da chegada da imprensa. ‘Era através do diferente badalar dos sinos da cidade do Rio de Janeiro – que eram inúmeros – que esse cotidiano se organizava e as pessoas se informavam.’ A igreja também contribuía para a circulação da informação anunciando atividades religiosas e civis depois das missas. As fontes de distribuição de água eram outro local de disseminação da informação. Nessa época, informou Isabel Lustosa, o Senado da Câmara pregava avisos no então chamado Largo da Polé, hoje Praça XV, no centro do Rio, para informar os habitantes da cidade sobre fatos importantes. O ‘bandos’ que circulavam pelas ruas propagando os avisos públicos também auxiliavam na comunicação com a população.
Muitos dos benefícios da vinda da Família Real para o Brasil estão associados às necessidades da implantação da corte na colônia. A instalação da imprensa no Brasil foi, na opinião de Isabel Lustosa, uma dessas necessidades. Dines comentou que a imprensa foi instituída ‘de baixo para cima’, como uma das instituições do poder. Isabel Lustosa acrescentou que mesmo sendo de cunho oficial, a Gazeta do Rio de Janeiro tinha um viés crítico porque era feita por representantes da Ilustração portuguesa. ‘Eram pessoas que estavam a serviço da coroa, mas produzindo pensamento’, explicou. Eram indivíduos que, ao estudar em Coimbra, tiveram contato com o Reformismo Ilustrado propagado no período.
Cybelle Ipanema explicou que o decreto que criou a Impressão Régia determinou que o órgão servisse para a publicação de todos os atos oficiais – como decretos, cartas régias, os tratados internacionais, alvarás e contas de Lei. ‘Foi muito importante porque além da Impressão Régia funcionar com os objetivos de divulgar a legislação, decidiram publicar uma Gazeta à imitação da Gazeta que havia em Lisboa. É o mesmo sistema, o mesmo modelo. É o modelo existente em Portugal desde a primeira metade do século 18 e que foi copiado, reproduzido aqui’, comentou a historiadora Maria Beatriz Nizza.
A herança do jornalismo antiquado
A historiadora Juliana Gesuelli disse que tanto a Gazeta do Rio de Janeiro quanto a de Lisboa são uma forma de jornalismo calcada no Antigo Regime. ‘Toda a produção desse jornal tem um discurso, em última instância, de salvaguardar o poder absoluto de D. João’, afirmou. Ao comparar a folha impressa no Rio de Janeiro com os periódicos franceses e ingleses do período, Maria Beatriz Nizza concluiu que a Gazeta do Rio de Janeiro ‘cheira um pouquinho a século 18, já não era a forma mais avançada de jornalismo que havia na Europa nesse período’.
A primeira edição da Gazeta foi publicada em 10 de setembro de 1808. Ela saía às quartas-feiras e aos sábados, mas edições extraordinárias eram impressas de acordo com a necessidade da veiculação de informações. A Cybelle Ipanema contou que diferentemente os jornais atuais, a Gazeta era pequena, media cerca de um palmo. ‘Era um jornalzinho de 4 páginas. Se você calcular a área dá no total 247centímetros quadrados, uma coisa mínima.’
A historiadora ressaltou que jornal publicava os atos oficiais, mas não era oficial. O governo somente responderia pelos papéis impressos em seu nome. Era uma concessão ao grupo de funcionários públicos que compunha a Secretaria de Negócios Estrangeiros e da Guerra, órgão ao qual a folha era subordinada. Para Isabel Lustosa, essa ambigüidade entre o público e o privado era recorrente no regime absolutista. Lustosa acrescentou que muitos oficiais da secretaria eram padres e que, à época, os religiosos eram remunerados pela coroa. Dines comentou que essa contradição era uma ‘sutileza lusitana’.
Um periódico censurado
Cybelle Ipanema destacou que a Gazeta circulou todo o tempo em regime de censura. ‘Nós estávamos sob a carta de lei de D. Maria I, de dezembro de 1794, em que era proibido que circulassem idéias. Eles queriam respeitar e conservar a incolumidade dos governantes, da moral e dos bons costumes. Era preciso haver uma vigilância grande’, lembrou. Maria Beatriz Nizza avaliou que a censura foi mais atuante em relação à Gazeta do Rio de Janeiro do que em relação à de Lisboa porque a situação de guerra assim a exigia. ‘E também havia o perigo da América Espanhola, a ebulição, a efervescência contra a metrópole, contra a Espanha’, afirmou.
A historiadora acredita que, mesmo censurado, o jornal foi útil em todos os aspectos. ‘As pessoas ficaram mais informadas sobre o que se passava no Brasil e na Europa. Isso tem interesse porque os rumores e os boatos perderam um pouco de peso’. A Gazeta tinha um papel muito importante em relação à comunicação do governo com os seus súditos. ‘Ela não era um jornal oficial, mas na Gazeta se transcreviam todos os artigos, os decretos reais, toda legislação oficial e era a possibilidade de D. João, de uma certa maneira, se comunicar com o povo do Rio de Janeiro e depois de todo o Brasil. É lógico que as pessoas que liam esta Gazeta não eram todos, eram as elites políticas, letradas, econômicas, mas também as camadas médias da população, porque havia a leitura oral’, explicou Lúcia Bastos.
Além da parte oficial, havia a transcrição de artigos do que acontecia na Europa, especialmente sobre as guerras napoleônicas. A Gazeta também servia para justificar ações do governo, como ocorreu na ofensiva contra os índios botocudos empreendida logo após a chegada da corte. ‘Isso foi muito divulgado na Gazeta exatamente para justificar uma medida que era um pouco inesperada e um pouco fora de época’, lembrou Maria Beatriz Nizza. Isabel Lustosa recordou que o jornalista brasileiro Hipólito da Costa – que em 1808 começou a imprimir o jornal Correio Braziliense, em Londres – ironizou o episódio. Hipólito disse que ‘estava aguardando’ a resposta do líder da nação indígena à declaração de guerra publicada pela coroa na Gazeta.
Posteriormente, o jornal descreveu todos os acontecimentos relevantes da Família Real, como nascimentos e casamentos. E também fatos importantes para a configuração do Brasil como reino, a exemplo da aclamação de D. João VI. ‘A parte cultural e social tem informações que às vezes são difíceis de pegar em outra documentação, como as récitas do Teatro São João’, avaliou a historiadora. ‘A descrição das grandes festas reais era feita na Gazeta nos mínimos detalhes, muitas vezes baseando-se em outros textos que mandavam para a redação. É uma fonte riquíssima para esse aspecto’, disse a historiadora.
Os primeiros classificados do Brasil
Na quarta página do jornal havia uma parte dedicada aos anúncios pagos, os ‘Avisos’. Hoje, estudiosos do período podem traçar um perfil de como a cidade do Rio de Janeiro evoluiu através dessa seção. As páginas da Gazeta estampavam freqüentemente anúncios de vendas, compras e locações de imóveis. ‘Era uma busca frenética, sem parar, por anúncios’ informou Cybelle Ipanema. Alterações na arquitetura da cidade, costumes, moda, mudanças na alimentação e nos serviços são percebidos por intermédio dos avisos.
Outra seção de destaque era ‘Notícias Marítimas’. Toda a movimentação dos navios, as cargas e os nomes dos passageiros eram publicados. ‘Em um porto movimentado como o Rio de Janeiro, as notícias marítimas inseridas na Gazeta do Rio de Janeiro são importantíssimas’, afirmou Cybelle Ipanema.
Três redatores comandaram a folha nos 14 anos de circulação. O primeiro, Frei Tibúrcio José da Rocha, esteve à frente do jornal durante quatro anos. Aos 18 anos entrou para o Colégio de São Pedro, da Universidade de Coimbra, para estudar três anos de Filosofia Racional e Moral, de acordo com o programa de estudos da igreja. No primeiro ano, freqüentou as aulas dentro de seu colégio, sem contato externo. Mas quis aprofundar seus conhecimentos em Filosofia com o estudo da História Natural, que no século 19 abrangia todos os estudos científicos, incluindo física e astrologia. O frei pediu permissão para freqüentar essas aulas na universidade e foi autorizado, com a condição de manter rigorosa disciplina. Ao circular por Coimbra, Frei Tibúrcio foi influenciado pela as idéias da Ilustração que agitavam o ambiente acadêmico.
Em 1808, o frei Tibúrcio chegou ao Brasil. Aos 30 anos, assumiu a redação do primeiro jornal impresso no país. O frei desligou-se da Gazeta após um desentendimento com o conde de Galvêas, responsável pela a Secretaria dos Negócios Estrangeiros e da Guerra após a morte do conde de Linhares. Em uma troca de cartas entre o frade e o conde, o religioso afirma que durante três anos levou pessoalmente as traduções de jornais ao Príncipe Regente D. João e pede que essa rotina não seja interrompida. Mas, ao ser impedido de ter continuar a levar o material diretamente ao príncipe, mostrou-se aborrecido com os trâmites da censura. Reclamava de assumir a Gazeta sozinho e de não ter sido nomeado oficialmente para tal. Frei Tibúrcio deixou a redação da folha, mas continuou na mesma secretaria até pelo menos 1830. Neste mesmo ano, já desligado do serviço religioso, solicitou a condecoração da Ordem de Cristo.
O segundo redator, Manuel Ferreira de Araújo Guimarães, era um homem de ciências, professor da Academia da Marinha e da Academia Militar. Era autor, tradutor de livros científicos e publicou várias obras na Impressão Régia. ‘É realmente um redator notável’, avaliou Maria Beatriz Nizza. ‘Depois ele brigou com aqueles que detinham o privilégio de publicar a Gazeta, por causa do salário, por causa do ordenado dele’, contou. Pouco depois do movimento liberal, o jornalista deixou a folha.
O último redator foi um padre naturalista. ‘O Vieira Goulart é um cônego também intelectual de grande experessão no período, e que vai ficar na Gazeta até dezembro de 1821′, disse Juliana Gesuelli. A historiadora explicou que uma diferença fundamental entre a Gazeta de Lisboa e a Gazeta do Rio de Janeiro é que na folha carioca há uma seção denominada ‘Rio de Janeiro’ em que o redator tem um espaço opinativo. ‘A função dele é colocar a pena e a palavra a favor da realeza’, disse.
Após da Independência, em 1822, a Gazeta do Rio de Janeiro continuou a circular, mas com outro nome. ‘Aí sim ela tinha um cunho mais oficial. Sua estrutura não se modificou tanto. Mas vamos verificar que havia uma mudança de nome para haver um rompimento com aquilo que representava um Brasil unido a Portugal. A partir daí temos o império do Brasil e um novo jornal é o Diário do Governo, novo mais no seu nome do que talvez no seu conteúdo’, avaliou Lúcia Bastos. Isabel Lustosa lembrou que o fim da circulação da Gazeta do Rio de Janeiro e do Correio Braziliense coincidem com o término da época de D. João VI no Brasil.
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A festa embargada
Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 478, no ar em 16/9/2008
Os festejos pelos 200 anos da imprensa brasileira encerraram-se na semana passada, dia 10 de setembro. Festejos, perguntará você, telespectador, que festejos?
Pois é: o bicentenário da nossa imprensa não aconteceu. Foi afanado, não foi comemorado. A mídia impressa, nela compreendidos os empresários e jornalistas, resolveu embargar não apenas a sua festa, mas também a sua história.
Este Observatório da Imprensa não entrou no jogo. Nem poderia. Nosso papel é ir na contramão do que se convencionou chamar de ‘grande imprensa’. Acreditamos que para entender o presente é imperioso conhecer o passado. Impossível questionar os procedimentos da imprensa de hoje sem compará-los com os seus procedimentos no passado.
Em maio, lembramos o tardio estabelecimento da imprensa – fomos um dos últimos países do continente a permitir o funcionamento de tipografias. Em junho, comemoramos a façanha de Hipólito da Costa de imprimir em Londres, no exílio, o Correio Braziliense, primeiro periódico a circular no Brasil, livremente e sem censura.
Hoje vamos rever aquele que deveria constituir o terceiro festejo: a criação da Gazeta do Rio de Janeiro, primeiro jornal impresso no Brasil – na realidade, o mais antigo periódico em circulação porque, ao longo desses dois séculos, foi trocando de nome até chegar ao seu título definitivo: Diário Oficial.
Com embargo ou sem embargo não abrimos mão de discutir o nosso passado. Estamos com o filósofo George Santayana: ‘Aqueles que ignoram o seu passado estão condenados a repeti-lo’.
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A mídia na semana
** O trágico fim de semana vai entrar para a história econômica mundial. A mídia americana fervilhava de rumores e notícias, a concordata do banco Lehman Brothers era fato, mas o apocalipse não apareceu nas primeiras páginas dos jornalões brasileiros, no domingo [14/9]. Óbvio, eles são fechados na sexta. A catástrofe só hoje [terça, 16] ficou visível em suas verdadeiras dimensões. Como os jornalistas não sabem o que foi o crack da bolsa americana em 1929, só tinham como termo de comparação, o 11 de setembro de 2001 – que nada teve com a economia, foi terrorismo. O leitor ficou ainda mais confuso. mas quem se importa com o leitor?
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Jornalista