O centenário da morte de Machado de Assis tem dado margem às mais justas homenagens ao escritor. Mas nada se compara à que lhe fez o último número da revista Nova Escola, da Editora Abril. Já na capa, ela anuncia: ‘No ano dedicado ao nosso maior escritor, saiba como trabalhar seus clássicos textos literários com alunos a partir do 3º. ano’. Ainda que vacinado contra os enganos da imprensa, não pude resistir. Quem sabe?, eu me dizia, pára de ser casmurro. Um órgão da Fundação Victor Civita é diferente. Afinal, a Nova Escola não é o mesmo que a revista Veja.
Entrei na revista, bem. Logo em um intertítulo da matéria – ‘Contos para pequenos’ – o espírito de Machado é expulso: ‘Nos ciclos iniciais, o ideal é começar a trabalhar Machado pelos contos, compreensíveis por leitores de qualquer idade e com uma história bem próxima da realidade infantil’. O leitor leu o que entendeu. Isto: os contos são mais simples que os romances. Mas contos não são mais simples que romances; contos podem ser tão complexos quanto romances; a extensão de uma narrativa não é o seu número de linhas; a extensão do que se lê é a duração na alma do leitor; pelo peso, volume e número de linhas, qualquer catálogo telefônico é mais complexo que ‘Missa do Galo’.
Para crianças do 3º ao 5º ano, o ‘Conto de Escola’ é assim apresentado: ‘…As antíteses e os paradoxos permitem levantar uma série de discussões em sala de aula. Um dos objetivos dessa leitura é a distinção entre conto e outros gêneros, como apólogo, fábula e lenda’. No entanto, em ‘Conto de Escola’ o que menos importa são as antíteses e os paradoxos. E conto, como gênero, não é diferente do apólogo, fábula ou lenda.
Erro de raiz
Chegamos à seqüência didática para ‘Um Apólogo’, indicado para estudantes do 4º e do 5º ano.
‘Material necessário: Cópias de `Um Apólogo´ para todos. Livros e sites de História sobre o Rio de Janeiro do século 19. Caixa de costura com agulha, linha e alfinete e um pedaço de tecido’.
Vocês leram o que entenderam: ‘caixa de costura com agulha, linha e alfinete e um pedaço de tecido’. Isso porque, no apólogo, dialogam uma agulha e uma linha, mais a reflexão de um alfinete! Imaginem como seria a leitura das Memórias Póstumas de Brás Cubas. Cenário de caixões de defunto, funerárias, cemitérios, com pedras tumulares trazidas para dentro da sala de aula. Vozes do além, esqueletos, e vermes, melhor, só um, o primeiro deles em uma corrida, porque a ele se dedicam as memórias póstumas!
Então chegamos ao ápice. Para os alunos do 9º ano leva-se o romance Dom Casmurro. Prometo ser imparcial e mudo como uma porta ou uma parede. Apenas transcrever. Por isso vamos à seqüência didática de trabalho para o livro:
‘OBJETIVO – Ampliação da capacidade de análise literária. CONTEÚDO – Análise do foco narrativo. TEMPO ESTIMADO – Cinco aulas. …2ª ETAPA – Os estudantes devem terminar a leitura do livro, se possível, sozinhos….’.
Mas devo logo terminar o pacto. Não podemos deixar de nos deter em Dom Casmurro para um tempo estimado de cinco aulas. Nem, muito menos, para a meta de alunos terminarem a leitura desse livro sozinhos. Há um erro de raiz, que derruba e põe por terra as intenções de um Machado para todos nesses termos.
Dúvida de Bentinho
Deus e o Diabo sabem, e a experiência confirma que o Machado maduro não é compreendido pelos anos imaturos. Observem que o Dom Casmurro, para as turmas do 9º ano, passa a ser distribuído entre jovens de idades em torno de 15 anos. Imaginem como as digressões, chistes, circunlóquios, paráfrases, paródias, ironias, metáforas, inversões podem ser compreendidas por meninos e meninas em cinco aulas. Ora cinco. Multipliquem-nas por vinte.
Daí que as intenções, na aparência mais pedagógicas, reduzam a complexidade de uma prosa livre às linhas exteriores da trama. Como se escreve na revista, abaixo do intertítulo ‘Romances para os jovens’:
‘No 7º, é viável começar a trabalhar com as grandes histórias de Machado. Um dos títulos que se encaixa bem nessa faixa etária é Dom Casmurro. O enredo gira em torno de Bentinho, um jovem aristocrata carioca, que desconfia que a mulher, Capitu, cometeu adultério’.
Machado na Abril: bom para cortar cabecinhas.
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Jornalista e escritor, Recife, PE