‘Antígona… a Justiça, a deusa que habita com as divindades subterrâneas, jamais estabeleceu tal decreto entre os humanos; nem eu creio que teu édito tenha força bastante para conferir a um mortal o poder de infringir as leis divinas, que nunca foram escritas, mas são irrevogáveis; não existem a partir de ontem, ou de hoje; são eternas, sim! e ninguém sabe desde quando vigoram! Tais decretos, eu, que não temo o poder de homem algum, posso violar sem que por isso me venham a punir os deuses!’ (Antígona, Sófocles)
Repete-se, a ponto de ter se tornado lugar-comum, a exaltação aos múltiplos legados da Grécia clássica, em particular citando os dois mais destacados: a filosofia e a democracia. O senso comum perde muito da riqueza desta herança ao não ver que estes dois ramos construíram-se em profunda oposição um ao outro. Da mesma forma, quem vê as costumeiras máscaras simbolizando a tragédia e a comédia poucas vezes se dá conta do intenso debate político travado através destes gêneros.
A hipótese de que a tragédia era patrocinada pelas facções aristocráticas gregas – por este seu princípio de que há uma ordem no universo que não pode ser violada sem trazer conseqüências terríveis – parece ser muito real. É verdade, contudo, que as facções democráticas patrocinavam a comédia, destinada a satirizar as personagens políticas, particularmente as aristocráticas, portanto ambas estavam contaminadas pela disputa política.
Raciocínio e argumentação
A oposição entre a tragédia – universalista, aristocrática, conservadora – e a comédia – particularista, burguesa, democrática – poderia ser exemplificada por inúmeros elementos. Um só já destaca esta natureza complementar: o júri das tragédias, nos festivais, era formado por cinco sábios de distinção escolhidos entre as famílias aristocráticas, enquanto os cinco juízes das comédias eram pessoas sorteadas entre os cidadãos como forma de representar o gosto da multidão, do homem comum.
Esta distinção torna-se ainda mais significativa na medida em que estas formas de escolha serão também o centro das grandes polêmicas entre os filósofos aristocratas e os políticos democratas quanto à forma de ocupar cargos públicos.
Enquanto Sócrates, em especial, ironizava o fato de ser exigido de um homem preparo para treinar um cavalo, mas não para dirigir uma cidade, no apogeu da democracia grega vários cargos eram ocupados por sorteio, visto ser esta a única forma pela qual cada cidadão teria as mesmas chances de ser eleito.
Não é à toa que o democrático Aristófanes, na sua peça de maior repercussão, As Nuvens, satiriza o aristocrático Sócrates justamente naquilo que é mais caro ao filósofo: o treino da juventude nobre nas artes do raciocínio e da argumentação.
Cada um é para o que nasce
No diálogo Górgias, contudo, Platão atribui a Sócrates uma crítica demolidora da retórica. Segundo ele, a retórica estava para a política assim como a culinária estava para a medicina, ou seja, era uma substituição do objetivo de buscar a verdade, o melhor, o equilíbrio, pelo prazer momentâneo e efêmero.
Nas palavras de Sócrates, segundo Platão, a retórica ‘com os interesses superiores do homem não se preocupa no mínimo, mas vale-se do prazer como de isca para a ignorância, enganando-a a ponto de parecer-lhe de muito maior valia. Foi assim que a culinária se insinuou na medicina, pretendendo conhecer os mais saudáveis alimentos para o corpo, de forma que se o médico e o cozinheiro tivessem de entrar num concurso em que crianças fossem juízes, sobre quem mais entendesse da excelência ou da nocividade dos alimentos, o cozinheiro ou o médico, este morreria de fome’.
Não deixa de ser paradoxal que Sócrates e ainda mais seu discípulo Platão estejam entre os maiores adversários da retórica, embora uma dissidência da facção aristocrática de Aristóteles tenha acabado por adotar uma visão da retórica que assemelhasse à caricaturada por Aristófanes. Aliás, olhando a questão por este lado, nem é estranho que Aristóteles tenha se aliado politicamente àqueles que irão destruir as facções pelo controle militar da Grécia enfraquecida pelas disputas e, ainda mais, será aos valores tradicionais invocados antes pelos aristocratas que apelará o último grande orador democrático grego, Demóstenes.
Mas voltando à tragédia e à comédia, não se encontrará um texto de tragédia na qual não esteja em posição central esta idéia cara à aristocracia de que há uma ordem no mundo à qual ninguém pode escapar e que, portanto, cada um é para o que nasce, como dizem as ceguinhas de Campina Grande citando o ditado.
‘As coisas eram diferentes’
Nem mesmo nos textos cujo conteúdo profundamente revolucionário é evidente, em particular Antígona e Prometeu acorrentado, a noção da existência de uma ordem superior à qual nem mesmo os deuses podem escapar. Prometeu, por exemplo, responde a Hermes que ele irá aprender quando o deus diz ao titã que ai de mim! é uma expressão que Zeus não conhece. Creonte aprende que há um preço alto a ser pago pela tirania, ou seja, pelo exercício ilegítimo do poder político e pelo desrespeito aos valores estabelecidos pelos deuses.
Ao mesmo tempo, a comédia não ironiza tanto os valores tradicionais em si, mas antes a hipocrisia de uma aristocracia corrompida que já não faz jus aos valores de educação, temperança e piedade que embasam sua posição superior, invocando assim apenas os direitos, mas não os deveres devidos a sua posição.
Lisístrata reclama que se fosse para um bacanal nem precisaria ter convidado as mulheres, mas como as chamava para discutir assunto sério, poucas apareceram, sem dizer que ao final vence a todos pelo apelo ao prazer. Assim, Estrepsíades, o pai que contrata Sócrates n´As Nuvens para tentar treinar o filho preguiçoso para a carreira na política, lamenta-se:
‘Pelos deuses! As coisas por aquiEram bem diferentes, certamenteNos velhos tempos, antes dessa guerra! Maldita guerra! Arruinou Atenas.Não se pode sequer, de agora em diante,Chibatear sem dó nossos escravos.’
A desventura do herói
Para Hauser, em História Social da Literatura e da Arte, há um progressivo avanço das tendências democráticas, tanto na comédia quanto na tragédia, o qual se reflete sobretudo na transição do formalismo característico de uma visão de mundo aristocrática para o naturalismo mais ao gosto burguês. Particularmente, ele destaca a importância das fontes de financiamento, seja através dos cofres públicos ou de doações dos particulares ricos, a qual acaba resultando na exclusão da massa de um poder decisivo no processo de escolha.
Para ele, há uma contradição latente, em especial na tragédia, na medida em que ela parte de um fundo mitológico tradicional mas deve agradar a uma massa popular ainda que em um certo sentido também elitizada, particularmente em Atenas, por conta dos recursos do imperialismo.
É preciso notar, contudo, que a Medéia de Eurípedes não foi bem aceita, tanto pelo público quanto pela crítica, por romper diversos cânones formais da tragédia. E entre esta tragédia de transição e o Édipo rei de Sófocles, em certo sentido seu oposto na medida em que é o padrão, há apenas três anos de diferença.
Também não deixa de ser fato curioso que Sócrates seja um personagem favorito a ser ironizado nas comédias, ao mesmo tempo em que a crítica moderna – em especial Nietzsche, e em menor escala Ortega y Gasset – o apontem como o representante da anti-tragédia, na medida em que invocaria um papel central à razão deslocando aquilo que Nietszche chama de amor ao destino.
Postura esta que não deixa de parecer paradoxal porque, a menos nos momentos pré-Eurípedes, os infortúnios do herói jamais são casuais, mas antes marcados por uma lógica que, mesmo arbitrária, faz sentido. Um dos cânones da tragédia que Eurípides viola, por sinal, é exatamente a noção de que a desventura do herói no momento da peripécia não deve ser casual, mas provocada por uma ação dele mesmo, em algum grau não deliberada. Correndo o risco de estender demais para além do assunto, parece relevante notar que as conseqüências funestas da inobservância de algum rito, mesmo quando esta omissão é involuntária,·é tema recorrente de inúmeras mitologias.
Um show de horrores
Num momento em que somos confrontados com a barbárie de disputas políticas no gigantesco anfiteatro da televisão durante o horário eleitoral, não deixa de representar um terror adicional sabermos que houve um momento no qual, a partir da matéria-prima tradicional, se produzia um material que até podia ser político e marcado pelos facciosismos da época, sim, mas guardavam uma profunda reflexão sobre a natureza do homem. Nestes 2.500 anos, a política deixou de ser algo sagrado – no melhor sentido do termo – para virar uma disputa bestial, e bestial aqui talvez não seja força de expressão.
Por mais que o quadro pareça uma comédia no sentido atual e não clássico do termo, ele é na verdade trágico. Tal como para o protagonista da tragédia grega, é preciso dizer que esta situação não é algum arbítrio dos deuses, é antes o resultado das nossas ações de desvelo, descaso, omissões e ações.
Há certa culpa da imprensa neste processo de aviltamento do debate político, visto que ela cede muitas vezes ao monólogo dos marqueteiros, buscando o projeto simples e a fala rápida, e poucas vezes estimula o debate mais profundo sobre as questões. Em particular em relação aos legislativos, a imprensa promove as agendas oportunistas de ocasião e os factóides ocasionais e negativos, ao invés de resgatar a atuação parlamentar cotidiana. Se a arte da tragédia e da comédia foi substituída por este show de horrores que se tornou o horário eleitoral, grande parte da culpa é da imprensa.
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Jornalista, São Paulo, SP