Os brasileiros ficaram sabendo, nos últimos dias, que colocaram no Palácio do Planalto um tirano enlouquecido mas genial, que soube disfarçar-se de democrata durante 20 anos até chegar ao poder e finalmente revelar seu plano sinistro: estabelecer restrições à liberdade de imprensa e colocar sob controle a produção dita cultural, muito provavelmente com o propósito de impor à sociedade uma nova era de ‘realismo metalúrgico’ e culto à personalidade.
O que os brasileiros seguem ignorando, a depender da sua imprensa, é que o projeto de criação da Ancinav – Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual – vem sendo discutido em âmbito oficial há 14 meses e está disponível para consulta popular no site do Ministério da Cultura, com a possibilidade da postagem de opiniões e sugestões no endereço (projetoancinav@minc.com.br). Tem como objetivo explícito criar alguma regulamentação no mercado, reduzir os riscos de manipulação de valores transferidos do erário para contas particulares em função de incentivos fiscais e gerar oportunidades fora do circuito dos produtores ligados aos grandes grupos de mídia ou herdeiros de instituições financeiras.
Se o projeto é bom, ruim ou regular, só quem se tem disponibilidade para ler seus 141 artigos e três anexos pode dizer – porque, pela algaravia de artigos e comentários que nos dá a imprensa, pouco ou nada se consegue conhecer que não seja fruto de premissas muito anteriores à eleição de Lula e à própria invenção do cinema, e da explicitação da mistura de interesses entre jornalismo e a indústria do entretenimento.
A imprensa revela a si mesma neste episódio da mesma maneira como se revelava quando o Estado de S.Paulo, 20 anos atrás, só se referia ao jornalista Antonio Parahyba Quartim de Moraes, então assessor do governador Franco Montoro, pelo nome Parahyba – babando preconceitos ancestrais em vez de expor seus argumentos. Foge-se do mérito, tenta-se reduzir o peso do oponente não por suas idéias, mas por uma referência que se supõe desairosa a suas origens.
Leitura oblíqua
As regras mais comezinhas do jornalismo de manual foram ignoradas neste agosto agourento, por conta dos projetos da Ancinav e do polêmico Conselho Federal de Jornalismo. A pauta foi tomada das mãos dos pauteiros e entregue aos acionistas, e praticamente toda a imprensa se saiu com o discurso monolítico segundo o qual o governo tentava, pela via da regulamentação do jornalismo, e pela via do controle da produção cultural, criar barreiras contra a liberdade de informar e de se expressar.
A base natural da indústria de cinema, fundada nos produtores de curtas-metragens, por exemplo, nunca foi ouvida. Faça-se constar, por falar nisso, que a Associação Brasileira de Documentaristas e Curta-Metragistas apóia o projeto. Não consta que a entidade seja dominada por militantes petistas.
Para complicar, misturou-se no mesmo pote o projeto da Ancinav e o da criação do Conselho Federal de Jornalismo, e temos então a enxurrada de editoriais e artigos sob encomenda a denunciar o ‘viés autoritário’ do governo, a conspiração pelo fim da democracia e, mais uma vez, a revelar os extraordinários poderes do ministro da Casa Civil, José Dirceu, assumindo na ocasião o papel de um intocável, onipotente e invulnerável Rasputin ocupado permanentemente em minar as bases da sociedade democrática que construímos.
Pronto: temos, então, a depender da credibilidade que se dê à mídia, um quadro tenebroso no qual um presidente de viés esquerdista, amigo do ditador cubano Fidel Castro e da outra ameaça continental, o presidente venezuelano Hugo Chávez, trama para jogar o país na rota da ditadura comunista. Faltou dizer que o adormecido programa Fome Zero deverá adicionar à dieta nacional o ensopado de guri, já que, como sabemos, comunista come criancinha. E convocar a Liga das Senhoras Católicas para defender o legado de Maria.
No caso da Ancinav, ninguém foi perguntar ao ministro da Cultura, Gilberto Gil, o que ele pensava do projeto. Falou-se em nome dele, e o que se disse é que não havia sido consultado, ou que não tivera a possibilidade de analisar a proposta. Sem mídia, foi preciso que o ministro usasse a oportunidade de uma aula magna na Universidade de São Paulo, em 10/8, para dizer que conhecia, sim, o texto, e que seus detratores é que não se haviam dado o trabalho de ler o projeto até o fim.
Código aceitável
Com a verve que lhe é peculiar, o articulista Arnaldo Jabor, cineasta que já nos deu Toda nudez será castigada, saiu-se com uma destrambelhada catilinária segundo a qual o presidente incorpora durante o dia a bela figura do operário que resistiu à ditadura e, ao cair da noite, se transforma na besta do apocalipse democrático.
Da mesma forma, quanto ao projeto do Conselho Federal de Jornalismo – enfiada a proposta no mesmo saco em que se espanca a Ancinav –, a mídia age como uma histérica, certamente premida, de um lado, pela ameaça de algum controle e da cobrança de uma taxa de 4% sobre o faturamento publicitário para ajudar a bancar uma indústria nacional de cinema e, do outro, pela hipótese de ver discutidos certos abusos de programas ditos populares e alguma manipulação do noticiário em período eleitoral.
Vide o texto da revista IstoÉ a respeito de Ibsen Pinheiro, ex-presidente da Câmara dos Deputados, que em 1993 foi acusado pela revista Veja e cassado por supostamente haver movimentado irregularmente 1 milhão de dólares. Sabe-se hoje que o então deputado, agora candidato a vereador em Porto Alegre, havia movimentado 1 mil dólares, não 1 milhão. As liberdades democráticas são ameaçadas exatamente aí, nos casos inexplicáveis para o público em que uma ou um grupo de publicações decide quem é honesto o suficiente para seguir com seus sonhos na política, nos negócios ou na vida profissional.
Quando a imprensa erra de propósito, na linha ou na intensidade de suas opiniões, forçando a infiltração do noticiário pelo interesse que deveria estar restrito aos editoriais, aí sim corre risco a liberdade de expressão. Se houve, portanto, alguma sombra de ameaça sobre a saúde das liberdades democráticas, ela escureceu e se adensou justamente na falta de reflexão e de honestidade intelectual com que a imprensa reagiu a ambas as propostas.
A rigor, alguém em sã consciência acredita na possibilidade de aprovação, pelo Congresso, e na colocação em prática de um conselho que venha a criar empecilhos à liberdade de expressão? Mesmo que, no âmago da mais irracional militância, juntem-se os mais empedernidos burocratas à permanente disponibilidade do ministro Dirceu para as chamadas articulações de bastidores, passará pela cabeça de alguém que possa vir à luz algum instrumento de censura que contrarie o que está estabelecido na Constituição?
Moldes clássicos
É livre o debate e cumpre a todos a eterna vigilância, mas, mesmo que se parta de um texto absolutamente desprovido de sentido, com um viés autoritário ou – o que é mais real, no caso – revelador dos fortes traumas petistas quanto à real disposição da imprensa nacional para a isenção e o equilíbrio, o que deverá vir à tona da realidade, se é que veremos nascer algum instituto regulatório da imprensa, haverá de honrar a Constituição e nossa jovem democracia.
Quem sabe, como aconteceu na Inglaterra nos anos 1990, após a onda de bisbilhotice que invadiu as câmaras da monarquia, venhamos a ter um órgão de auto-regulamentação que faça conjugar os interesses de jornalistas aos de seus patrões, em conformidade com o que se espera seja o papel social da imprensa. Se metade da energia aplicada para demonizar o governo por mexer nesse vespeiro fosse dirigida à busca de um código realmente aceitável para a mídia, há muito teríamos consolidado um terreno mais seguro para a liberdade de expressão.
Os traumas que podem estar na origem da polêmica proposta do Conselho de Jornalismo e da Ancinav são compreensíveis, embora não se justifique qualquer tentativa de controle pelo Estado do que deve ou não ser considerado aceitável como jornalismo ou como produção dita cultural. Para a imprensa nacional, Lula é bom quando aceita o jogo do FMI e sacrifica sua popularidade para apoiar uma política econômica que agrada aos grandes protagonistas do mercado. Quando sai do roteiro que lhe destinaram os grandes produtores do pensamento nacional, ele vira stalinista.
Enquanto ninou a possibilidade de uma ajuda do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, a imprensa era tolerante e capaz de elaborar os mais intricados raciocínios para dizer ao leitor e convencer a si própria de que o presidente, afinal, não é assim tão despreparado.
Esgotadas as negociações para o acesso aos cofres públicos, a imprensa tira a máscara. E no meio do tiroteio, quando a maioria dos comentaristas parece estar pensando com o útero (ou com a próstata), o leitor mais atento haverá de se questionar se, de fato, não teria a sociedade, já há algum tempo, criado uma espécie de conselho regulador da mídia, nos mais clássicos moldes das leis de mercado, ao abandonar, em massa, a leitura de periódicos.
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Jornalista