Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O que fazer pelas rádios comunitárias

A política, ao contrário do que imaginam os fiéis jogadores deste jogo, nasceu com o italiano Nicolau Machiavel. Isso tem 500 anos, mas ainda hoje ela é jogada como estabeleceu o florentino. Quer entender o PT, o DEM, o PSDB, a Igreja Católica, a grande mídia? Leia O príncipe.

OK, vão dizer que Sócrates e, antes, Arjuna, Confúcio e Lao Tse, e também as tribos do Xingu e os africanos, tratavam disso… Concordo. Todo mundo tem razão. Mas, para evitar arengas desnecessárias, digamos que Machiavel ‘inventou’ um jeito de fazer política. Um jeito sangrento e cruel, vendido até hoje nas boas casas do ramo sem restrições a faixa etária.

Feito este prefácio exorcista, vamos aos fatos.

Há cerca de um mês, o ministro da Justiça, Tarso Genro, recebeu representantes das rádios comunitárias e anunciou algumas mudanças para o setor. Não é a primeira vez que isto acontece. Talvez não seja o caso, talvez Tarso Genro, que tem um histórico pessoal e político exemplar, esteja de fato querendo resolver a situação, mas não temos nenhuma prova de que o governo pretenda mudar sua política com relação às rádios comunitárias – porque, senhoras e senhores, são seis anos de enrolação. Há seis anos que este governo tenta engrupir aqueles que fazem rádios comunitárias no Brasil. Com uma mão (política) pede calma, fala em parceria, promete mudanças; com a outra (política), determina ao Estado que reprima, humilhe, bata, prenda, execre, exclua…

Burrice como estratégia política

Diante desta realidade histórica, ao invés de apontar correções aqui e acolá, cumpre destacar algumas questões maiores para discussão. Nossa missão aqui é identificar o que pode ser feito pelas rádios comunitárias em alguns setores. Vamos em frente:

O Executivo. Primeiro, parar com a enrolação. Alguém do Palácio do Planalto tem que ser honesto com a sociedade e firmar a palavra: ‘Nós vamos fazer isso e o prazo é tal.’ Este interlocutor, por motivos óbvios, não pode vir do Ministério das Comunicações ou da Anatel. Porque submeter os possíveis avanços do setor aos interesses do empresariado da comunicação, ou aos tecnocratas, aos petistas alpinistas no governo ou enroscados em entidades, os jogadores desse jogo, é garantir a continuidade da enrolação.

O Planalto, como é sabido, ainda não sabe o que é rádio comunitária. É uma burrice opcional. Porque a burrice é interessante para o jogo. Cada vez que pega fogo aqui em baixo (no meio do povo das rádios comunitárias) o governo monta um Grupo de Trabalho ou escala um interlocutor que se reúne com as entidades e pergunta mais uma vez o que fazer. A gente tá sempre começando do zero na relação com o governo.

O Executivo poderia fazer muita coisa. Por exemplo, poderia propor ao Congresso Nacional uma lei decente para a Radiodifusão comunitária. A que está valendo hoje, nº 9.612/98, foi feita para impedir o funcionamento das rádios comunitárias. Até as minhocas lá de casa sabem disso. O governo já podia ter modificado o Decreto 2.615/98, que regulamenta a lei e – inconstitucionalmente – vai além dela. O que mudar na Lei e no Decreto? Se o governo não sabe, paciência. É tudo óbvio. É só abandonar um pouco a prática da burrice como estratégia política e ver o que todos vêem.

O crime é querer se comunicar

O Executivo também poderia fazer uma Medida Provisória anistiando os milhares de presos políticos, acusados de fazer comunicação – na linguagem do Estado, ‘operar emissora sem autorização’. Porque até as minhocas lá de casa, volto a citá-las, sabem que raramente rádio comunitária autorizada é comunitária. Ter um papel pregado na parede não quer dizer nada. Porque o papel, como já foi mostrado em estudo realizado pelo professor Venício Lima, tem sido dado pelo Ministério das Comunicações aos amigos e compadres políticos ou religiosos.

Outra coisa é a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). Ela foi entregue a uma pessoa do PSDB (e eu, pensando que o PSDB era oposição!), Ronald Sardenberg. Ele foi ministro da Ciência e Tecnologia do honorável presidente FHC (intelectual brilhante, garboso, elegante, inteligente, segundo a mídia na época). E que ministro?! Foi ele quem fechou acordo para entregar a Base de Alcântara, no Maranhão, para os norte-americanos, que pretendiam fazer por lá uma base militar. Só não deu certo porque os movimentos sociais fizeram um barulho arretado e o Congresso Nacional vetou. Mas isso é outra história. Pois bem, essa Anatel, eficiente em fechar rádios não autorizadas, nem deveria existir, mas se temos que engolir, pelo menos que se atualize. É preciso ensinar aos agentes sobre direitos humanos, por exemplo. O crachá, acreditam alguns, lhes dá o direito de humilhar os pobres.

A Polícia Federal também precisar aprender muito sobre a questão. Alguns agentes, diga-se a bem da verdade, se sentem constrangidos em fazer esse ‘trabalhinho’ de pegar rádio ‘pirata’; eles sabem que é uma covardia botar fuzil e metralhadora no peito de pobre de ficha limpa na polícia. Mas boa parcela da PF ainda usa e abusa do poder, humilha e constrange. São os que reproduzem a mentira de que rádio pirata derruba avião e tratam os que estão na rádio não autorizada como se fossem marginais da pior espécie. Na verdade, o grande crime dessa gente é querer exercer o direito humano de se comunicar.

Um relatório metafísico

Ainda com relação à Anatel, se o governo quer fazer algo pelas rádios e acabar com a enrolação, é preciso botar um freio nesta instituição transgênica. A agência tem feito de tudo para impedir o funcionamento das rádios comunitárias (vide ‘O fim da Anatel’ e ‘A lei troncha faz dez anos‘, aqui no Observatório). Ainda recentemente colocou para consulta pública (nº 27, com prazo até 22/08) proposta de exclusão das rádios comunitárias do dial. Isso mesmo, a Anatel considera que fica melhor para as comunitárias operarem abaixo da freqüência de 88 MHz – isto é, fora do espectro de radiodifusão, que vai de 88 a 108 MHz. Por que uma proposta como esta, que os tecnocratas da Anatel defendem publicamente (acredite, caro leitor, sem nenhum traço de vergonha na cara), não é feita a uma grande rede? Ora, porque nenhuma emissora se submeteria a isso. Claro. Empurraram essa sobre o povo porque ele não tem poder nem capacidade de enfrentamento. Taí, se o governo quer fazer alguma coisa, muda essa Anatel, muda a perspectiva da Anatel, muda a política da Anatel; não permita que coisas esquisitas e vergonhosas, como esta ‘consulta’, se tornem públicas.

O Executivo também tem que tomar juízo e aprender o mínimo sobre comunicação. Diz o professor Luiz Gonzaga Motta: ‘Não há poder sem imprensa, nem imprensa sem poder’ (Imprensa e poder, UnB, 2002). Mas isso é uma parte da lição. Ele também diz no mesmo texto: ‘É a imprensa que seleciona, tipifica, descontextualiza, estrutura e referencia o real’. Se é assim, se o monopólio da mídia constrói esse real, o real que lhe interessa, por que não investir nas mídias alternativas? Se o governo quer fazer algo de verdade, aproveite a primeira parte do Relatório do Grupo de Trabalho Interministerial (GTI), concluído em agosto de 2005, e conheça a realidade da radiodifusão comunitária. A segunda parte, onde estão as propostas do GTI, jogue no lixo ou mande incinerar – o que tem lá é ridículo. Ah, sim, este relatório tem um quê de metafísico – todo mundo conhece, mas ainda é tratado como sigiloso.

‘Função do Judiciário é fazer justiça’

O Judiciário. O Ministério Público Federal é uma instituição rachada: uma banda acha que a rádio não autorizada não deve ser criminalizada; a outra banda defende que o caso é de cadeia. Os ministérios públicos estaduais estão na mesma situação: uma turma para cá, a outra para lá.

Muitos juízes decidiram pela insignificância da atividade e arquivaram processos; eles não caíram no engodo de que rádio comunitária derruba avião ou atrapalha os serviços de segurança, como soam boatos insistentemente por aí.

Os legalistas não precisam se irritar. Afinal, é fato que a legislação tem tido diversas leituras: há juízes que consideram crime operar emissora sem autorização e outros que (com base na Constituição e nos direitos humanos) não vêem nada disso. Os dois seguem a lei. Ou alguém acredita que algum juiz desobedeça a lei? Portanto, é uma falácia dos agentes da Anatel ou da PF afirmarem que seguem a lei ao fazer a repressão. Fosse assim, muitos juízes deveriam estar na cadeia por não reconhecerem como crime a operação de rádio comunitária sem autorização. Na verdade, os atos da Anatel e da Polícia Federal são políticos. Se a Anatel fosse tão ciosa no cumprimento da lei, como diz, deveria fechar as centenas de emissoras de rádio e televisão com outorga vencida. Somente em São Paulo, conforme estudo feito pelo Intervozes, 90% das rádios comerciais são piratas. Mas a Anatel não parece interessada nesta ilegalidade. Ilegalidade de rico é diferente, meu caro leitor.

O fato é que o Judiciário, e em especial o Ministério Público, está sendo experimentado nessa questão. Se a lei é contra o povo, o Judiciário deve seguir a lei? O Ministério Público deve obedecer ao Estado mesmo quando seus agentes repressores são acionados para servir aos interesses de uma minoria? O juiz federal Paulo Fernando Silveira, de Uberaba, Minas Gerais, tem uma posição bem clara: ‘A função do judiciário não é seguir a lei, mas fazer justiça.’

Menos ganância e manipulação

Se queremos um novo país, temos que repensar a Justiça. Seguindo por este caminho, fica a pergunta: é justo que a comunidade tenha um veículo de comunicação? É justo que o povo seja excluído de um espaço (eletromagnético) que lhe pertence? É justo que homens e mulheres, trabalhadores ou aposentados, sejam presos e algemados como criminosos por quererem se comunicar? É justo que o Estado faça uma leitura da lei reproduzindo uma opressão de cinco séculos sobre esse povo?

As igrejas. Elas precisam ser mais cristãs. Isto é, reduzir a gula, a usura, a ganância, que as levam a acumular bens, em especial emissoras de rádio e televisão. Diz uma entidade da Igreja católica, a Associação Nacional Católica das Rádios Comunitárias, Ancarc, que possui mais de 200 rádios comunitárias autorizadas. A Ancarc está associada à CNBB. Isso mesmo, faz parte da tal linha ‘progressista’ da Igreja católica. Não me espanta. A ganância demoníaca pelo poder levou a Igreja a montar um dos maiores latifúndios da comunicação do Brasil. Os números são difíceis de obter porque a propriedade é camuflada junto ao Executivo.

Católicos e evangélicos disputam a posse sobre o que é do povo. Quem tem mais poder político leva mais vantagem. A Igreja católica ganha, por enquanto: ela possui emissoras comerciais, educativas e até ‘comunitárias’. Talvez por circular com desenvoltura em várias ideologias – é esquerda ou direita, conforme a conveniência – sempre está no poder e sempre usa este poder em seu benefício. Ah, em nome de Deus, claro. Machiavel escreveu O príncipe com base nas práticas da Igreja católica da época, sua luta pelo poder – que, como se percebe, continua até hoje. A ganância de poder da Igreja católica é tamanha que – não bastassem as inúmeras TVs e rádios que possui – ainda ocupa as manhãs de domingo da TV Brasil para transmitir a ‘santa’ missa.

Se as igrejas querem de fato democratizar as comunicações, o mínimo a fazer é uma ação humanitária e cristã: devolver as rádios comunitárias ao legítimo dono, o povo. Padres e bispos, cardeais e papas, escutem meu sermão do planalto central: sejam menos gananciosos, não manipulem o povo, entreguem o poder ao povo.

Um novo modelo de comunicação

Jornalistas e radialistas. Os colegas poderiam estudar mais o assunto. Quando se fala em rádios comunitárias, eles reproduzem o pensamento único dos patrões e associam a prática ao crime. Não se dão ao trabalho de investigar como a rádio funciona, questionar as autoridades, avaliar a repressão, procurar entender a conjuntura. Regra geral, as matérias nos jornais, rádios ou TVs, no Norte ou Sul do país, dizem a mesma coisa: relatam o fechamento da rádio, citam a legislação, reproduzem a fala da autoridade repressora. O repórter não se dá ao trabalho de pensar. Talvez porque saiba que este é o tipo de matéria que agrada ao chefe. E feita desse jeito: tendenciosa, ouvindo apenas uma fonte, sem questionamentos. Na verdade, ele faz textos de propaganda.

O que os jornalistas podem fazer? Apenas isso: buscar a verdade. Se fizer, isso o mundo já melhora muito.

As entidades. Por uma série de motivos, várias entidades da sociedade civil se aproximaram das rádios comunitárias. Elas perceberam que a democracia na comunicação tem nas rádios comunitárias um dos instrumentos-chaves. Nem todas essas entidades atuam diretamente com comunicação. Mas estão juntas no processo de transformação; acreditam na comunicação.

Para justificar sua enrolação, alguns do governo (praticantes do sindicalismo medieval) afirmam que o movimento das rádios comunitárias é confuso e não mobiliza. E cobram carro de som em frente ao Planalto. Como se rádio comunitária fosse movimento de massa. Infelizmente alguns dirigentes do movimento das rádios comunitárias ainda não aprenderam que rádio comunitária é mídia, e uma mídia diferente, que não tem dono, e que ela não é uma ‘base’, como existe nas categorias profissionais; e assim, mergulhados nesse equívoco, baixam a cabeça e ficam frustrados porque não conseguem juntar povo na Praça dos Três Poderes.

Não percebem que o governo erra ao cobrar isso. Como se para ter reconhecido o direito à comunicação (ou a respirar, ou à alimentação), o povo precisasse se organizar, fazer passeata, berrar em frente ao Planalto e levar bordoada da polícia. É claro que na cabeça dos sindicalistas jurássicos instalados no poder (qualquer poder) essa é a regra. Talvez pensando em manipular depois… Para eles, só se reconhece direito humano se tiver organização e mobilização. Em tempo: Marx, tão citado, não tem a nada a ver com isso. Em resumo, para estes dinossauros, um homem passando fome na rua não existe, ele não vai conseguir comida. Ele só existe quando fundar uma associação dos famintos na rua.

Em resumo, tá sobrando política e faltando cultura no governo. Deveria jogar menos o jogo da política (parar de olhar para as rádios comunitárias e para os que a fazem como peças do tabuleiro e, portanto, manipuláveis ou não) e pensar mais em como mudar a situação. Mais cultura significa aprender. Aprender com as rádios. Porque temos grandes e boas experiências em atividade. No sertão da Bahia – em Santa Luz ou Valente, Lençóis ou Itaberaba –, no interior do Goiás, nos pampas gaúchos (Pelotas, Santa Cruz, Alvorada), na baixada fluminense, em São Gonçalo ou Niterói ou Guapimirim (Rio de Janeiro), no Alto José do Pinho (Recife) ou na aldeia dos índios Xucuru (Pesqueira), em Manaus, em Planaltina (DF)… São rádios de qualidade, rádios decentes, rádios feitas pelo povo. Atenção, colegas jornalistas: elas estão construindo um novo modelo de comunicação – radiojornalismo, locução, participação comunitária, estética. Se o governo acordar para isso, o mundo pode mudar. Para melhor.

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Jornalista, escritor, pesquisador, autor do livro A arte de pensar e fazer rádios comunitárias