Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Marcelo Beraba

‘O ‘Painel do Leitor’ da Folha recebeu, desde que o jornal noticiou a morte do menino João Hélio no Rio, no dia 9, até sexta à noite, 598 mensagens. É um recorde. São leitores indignados com a barbárie e empenhados em participar do debate sobre soluções para a violência e a criminalidade no Brasil. O ombudsman recebeu, no mesmo período, 24 mensagens. Poucas continham críticas, o que é raro.

Vejo dois méritos na cobertura do jornal e um problema sério. Os méritos:

– Dois leitores reclamaram da descrição da morte do menino (‘um horror’, ‘sensacionalista’) e uma leitora achou as capas dos primeiros dias ‘frias’ e ‘insensíveis’. Na minha opinião, o jornal fez uma cobertura sóbria, sem histeria.

– O jornal abriu espaço para o debate. A cobertura jornalística falhou vários dias ao não explicitar o teor dos projetos de lei que foram ressuscitados no Congresso, mas a omissão foi corrigida. As principais propostas foram debatidas nas páginas de opinião, no ‘Painel do Leitor’ e através de entrevistas. Houve estímulo para um debate pluralista sobre a maioridade penal.

E os Estados?

O jornal errou, no entanto, ao focar apenas os aspectos penal e carcerário e deixar de lado as políticas de segurança pública. Não é um problema só da Folha. A discussão que se seguiu à morte de João Hélio saiu dos subúrbios do Rio e foi deslocada para o Congresso. É evidente que o enfrentamento da criminalidade exige ações de Brasília, dos três Poderes. Mas também é certo que a responsabilidade principal de segurança é estadual.

Com a transferência da discussão, questões relevantes ficaram sem respostas: mudou a política de segurança pública no Rio (e a pergunta vale para São Paulo, Minas e todos os Estados) com o novo governo? A nova administração tem concepção e prática de segurança distintas da anterior? Não deveria o jornal aproveitar para fazer uma avaliação das políticas públicas dos novos governadores?

No caso do Rio, a situação de guerra civil e de barbárie nesses primeiros 50 dias parece igual aos oito anos dos governos Garotinho/Benedita/Rosinha. É provável que vá haver mudanças, mas o que vemos não tem diferença.

A região onde o menino João Hélio foi arrastado e morto está abandonada e conflagrada há muitos anos. É uma situação que as medidas legislativas não alterarão. Os jornais noticiam os crimes, mas têm dificuldade para analisar o fenômeno.

Por curiosidade revi, com a ajuda do Banco de Dados da Folha, a cobertura do assassinato do índio Galdino Jesus dos Santos em Brasília, em abril de 1997. (Como agora, foram jovens os que atearam fogo no pataxó: três rapazes de 19 anos, um de 18 e um de 16; a diferença é que eram de classe média e da elite e não se falava em baixar a maioridade penal.) A Primeira Página no segundo dia da cobertura é reveladora de como a situação está péssima há anos. Abaixo da manchete (‘Morre índio queimado em Brasília’), o título é parecido com o que saiu nos jornais nesta semana -’Tiroteio em morro do Rio mata 3’.

O morro referido é o do Alemão, onde morreram esses dias pelo menos seis pessoas. Não há novidades nem na guerra entre traficantes (bem armados desde ao menos 1985) e milícias (herdeiras reequipadas dos esquadrões da morte que infernizaram a Baixada Fluminense nos anos 70 e 80).’

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‘Emoção e histeria’, copyright Folha de S. Paulo, 18/2/07.

‘Masakata Ota, pai do menino Ives Ota, seqüestrado e morto em 1997 em São Paulo, avalia como ‘bom’ o trabalho da imprensa paulista no caso de João Hélio. Na sua opinião, os jornais têm cobrado mais providências das autoridades. Não considera a cobertura sensacionalista ou excessiva. As avaliações de dois observadores da imprensa são diferentes, principalmente em relação a alguns jornais do Rio.

Inácio Caño, sociólogo do Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro:

‘Estou achando a cobertura péssima. Em primeiro lugar, pelo excesso de exposição. Alguns jornais do Rio deram metade da Primeira Página para a notícia como se tivesse estourado a Terceira Guerra Mundial.

Em segundo lugar, a cobertura é muito emocional. Alguns jornais estão em campanha pela redução da maioridade penal. Há uma mistura entre uma posição editorial, a qual os jornais têm todo o direito, e uma cobertura jornalística que acaba influenciada pela posição editorial. Número três: há fatos graves que alguns jornais simplesmente omitiram por conta dessa cobertura tão emocional. Se você vê aquela foto dos acusados, tem um cara sendo esganado. E isso, na maior parte dos jornais nem sequer é comentado.

Com o passar dos dias, os jornais evoluíram para uma cobertura mais reflexiva, mas inicialmente a cobertura foi extremamente emocional.

Evidentemente não é um problema só da imprensa, mas a imprensa acaba estimulando essa reação emocional das pessoas e dos políticos. Várias propostas estão andando, depois vão parar até o próximo caso. Acho que a imprensa deveria fazer um pouco de autocrítica sobre a cobertura.

É claro que o jornal tem de mostrar a notícia, é uma notícia perturbadora e tem de ter difusão. Mas acho excessivo esse patamar de exposição. O ‘Jornal do Brasil’, do Rio, deu como manchete ‘O que eles merecem?’. Era um convite ao linchamento. E mostra muito claramente a diferença de uma cobertura emocional de uma cobertura mais objetiva’.

Silvia Ramos, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes:

‘Apesar dos problemas, a imprensa tem modificado, para melhor, o tratamento que dá aos temas associados à violência, criminalidade e segurança pública nos últimos anos. A mudança mais forte é o abandono, pela maioria dos jornais, de recursos sensacionalistas e noções apelativas, como a publicação de fotos chocantes e o estímulo ao uso de violência pelas forças de segurança, recomendando que a polícia elimine criminosos ou desrespeite direitos para combater o crime. Algumas coberturas são exemplos de que é possível fazer um jornalismo ao mesmo tempo investigativo e capaz de mudar a realidade, como a dos ataques do PCC em São Paulo, em 2006. A imprensa praticamente interrompeu a escalada de mortes provocada pela polícia em reação aos atentados.

Por isso foi surpreendente a resposta da maior parte dos jornais do Rio, com manchetes apelativas no caso do menino João Hélio. O acúmulo de experiência na cobertura de grandes crises foi abandonado. Para se identificar com a indignação de seus leitores, vários jornais perderam o tom e acabaram reproduzindo uma combinação de perplexidade e histeria. Algumas manchetes, mesmo dos principais jornais, entrarão para a história dos grandes erros da imprensa’.’