O programa Observatório da Imprensa exibido na terça-feira (16/06) pela TV Brasil discutiu a cobertura dos meios de comunicação no Brasil e na França sobre o acidente com o voo 447 da Air France, ocorrido no dia 31/05. A aeronave, que percorria a rota Rio-Paris levando 228 pessoas a bordo, desapareceu dos radares em águas brasileiras horas depois de levantar voo. Autoridades da Marinha e da Aeronáutica afirmam que já foram encontrados 44 corpos e as buscas estão previstas para se estenderem. A tragédia ocupou manchetes dos jornais de todo o mundo nos primeiros dias após o acidente.
Participaram do debate ao vivo no estúdio do Rio de Janeiro o tenente-brigadeiro do Ar Mauro Gandra e o jornalista Paulo Motta. Mauro Gandra dedicou anos quase cinqüenta à Aeronáutica. Foi ministro de Estado da Aeronáutica no primeiro mandato do governo Fernando Henrique Cardoso e diretor-geral do Departamento de Aviação Civil. Contabilizou 6.700 horas de voo em diferentes equipamentos. Foi diretor-presidente do Instituto do Ar da Universidade Estácio de Sá. Paulo Motta é editor de Rio do jornal O Globo, onde também foi editor de Política. Começou a carreira no Jornal do Brasil, na editoria Geral e especializou-se em Meio Ambiente e Ciência e na área nuclear.
A Mídia na Semana
Antes do debate ao vivo, na coluna ‘A Mídia na Semana’, Alberto Dines comentou os fatos de destaque dos últimos dias. O assunto inicial da seção foi a coluna o presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), na Folha de S.Paulo. ‘Os primeiros a estranhar a duplicidade de funções e o conflito de interesses foram os críticos. Os leitores se animaram e começaram a cobrar o seu afastamento do jornal. No domingo, o mais antigo colunista da página 2 da folha, Clóvis Rossi, finalmente começou a atirar no colega’. Em seguida, Dines elogiou a proibição de celebridades participarem de propagandas de medicamentos.
Outro assunto da coluna foi a iniciativa da presidência da República de oferecer aos jornais impressos uma coluna semanal do presidente Luiz Inácio Lula da Silva com perguntas encaminhada por leitores. Para Dines, o presidente ‘tem o direito’ de ter uma coluna nos jornais, mas a atitude é imprópria. ‘O anúncio sobre a nova coluna veio em seguida à informação de que o governo aumentou substancialmente as verbas para os pequenos jornais. É louvável a intenção de fortalecer a pequena imprensa, mas não desta maneira’, censurou.
Dines também criticou o canal de televisão SBT por exibir um vídeo amador onde soldados que participaram de uma ação do Exército no morro da Providência, no Rio de Janeiro, no ano passado aparecem em um momento de descontração. As imagens grotescas mostravam os soldados fazendo gestos obscenos e foram exibidas durante o dia. ‘Um comportamento condenável e que merece ser denunciado. Como também é condenável a emissora ter exibido os detalhes mais sórdidos do vídeo sem qualquer preocupação de ocultá-los com recursos disponíveis na edição. Com isto, as imagens mais chocantes chegaram sem qualquer filtro a donas de casa, idosos e, principalmente, crianças’, reprovou.
Dilemas da imprensa
Em editorial sobre a cobertura do acidente aéreo, Dines comentou o enigma sobre as causas do acidente parecia insolúvel, mas a tese mais provável divulgada até o momento foi levantada discretamente pelo jornal francês Le Monde. ‘Segundo o jornal, apesar da sofisticação do equipamento do Airbus, teria havido uma falha na aferição da velocidade. O pequeno sensor chamado pitot foi convertido pela imprensa internacional em bode expiatório e a recomendação anterior do fabricante para que fosse substituído foi rapidamente implementada’, disse.
Dines destacou em este tipo de cobertura evidencia dilemas vivenciados por profissionais de imprensa. ‘De um lado, a comoção e a solidariedade forçam a manutenção do noticiário. Mas o imperioso respeito aos sentimentos dos enlutados impõe uma escrupulosa economia de informações. O jornalista tem um compromisso com a humanidade. A vida continua, mas a dor não pode ser esquecida, nem o compromisso de fazer justiça’, advertiu.
A reportagem exibida no programa entrevistou jornalistas estudiosos do setor da aviação civil. O coronel Henry Muñoz, porta-voz da Aeronáutica, comentou o fato de a imprensa não tido acesso à informação de que o governo francês cooperava nas buscas até o momento em a imprensa francesa noticiou que navios franceses encontraram corpos. Para o coronel, a instituição pode ter falhado ao não fornecer oficialmente este dado, mas a presença de aviões e navios enviados pela França – destacada pela imprensa desde os primeiros momentos – já deixava claro o trabalho em conjunto dos dois países.
As perguntas que a imprensa não fez
Para Respício do Espírito Santo, professor de Transporte Aéreo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a imprensa deixou de fazer questionamentos importantes e se ateve a detalhes de menor importância. ‘Se a imprensa tivesse um conhecimento mais específico a respeito da aeronave, a respeito de sistemas, a respeito de navegação aérea, outras perguntas estariam sendo feitas’. O professor lamentou que a imprensa e a sociedade só demonstrem interesse pelo setor aéreo quanto há um desastre.
Maurício Rabuffetti, chefe de redação da agência France Presse na América Latina relatou as maiores dificuldades na cobertura do acidente aéreo. ‘O mais complicado foi que tivemos muitas versões da mídia, tanto aqui no Brasil quanto em outros países, que tivemos que checar o tempo todo’. O jornalista destacou que os acidentes aéreos envolvem muita especulação porque as causas não são conhecidas imediatamente. ‘Tem muitos especialistas que começam a falar do que pode ter acontecido e isso faz com que muitos jornalistas sigam a opinião destes especialistas. É complicado porque tem muita gente que fala sem saber’, criticou.
Rabuffetti avalia que a cobertura da imprensa brasileira como positiva e completa e destacou que os meios de comunicação no Brasil têm rápida capacidade de mobilização para cobrir eventos de grandes proporções, como acidentes aéreos. O chefe de redação da agência de notícias criticou o fato de ‘grandes jornais’ brasileiros divulgarem dados sem revelar a fonte da informação, o que dificulta o trabalho de checagem das informações.
Compassos diferentes
‘Existe uma discrepância entre as necessidades da imprensa e as necessidades da apuração dos acidentes aéreos’ ressaltou José Gabriel Assis de Almeida, professor de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Este descompasso leva a imprensa a ficar ‘extraordinariamente angustiada’ à procura de novas informações. ‘Como se trata de uma matéria técnica, é sempre possível aparecer qualquer tipo de informação e as informações são dificilmente comprovadas’, alertou. José Gabriel destacou que a segurança do transporte aéreo só pode ser obtida através da experiência dos acidentes anteriores e que para isso as investigações podem se estender por até seis anos.
A correspondente do jornal O Globo em Paris, Deborah Berlinck,traçou um paralelo entre a cobertura feita no Brasil e na França. A jornalista comentou que o Instituto Nacional de Audiovisual da França ao analisar o noticiário das principais redes de televisão do país constatou que o acidente da Air France é uma das catástrofes ‘mais midiatizadas do país dos últimos 10 anos’. Para Berlinck, a diferença na cobertura entre os dois países foi ‘gritante’. ‘A imprensa francesa, mesmo com 61 franceses mortos entre as 228 vítimas do voo, e apesar da reputação da Air France estar em xeque, foi bem mais modesta na cobertura do que a imprensa brasileira’, avaliou.
A diferença mais marcante foi observada na imprensa escrita. ‘Quatro dias depois da catástrofe, o acidente caiu na banalidade do noticiário da França. Sumiu das primeiras páginas dos principais jornais do país, como Le Monde, Le Figaro e Libération‘. Passados os primeiros dias após a tragédia, o foco do noticiário voltou-se para outros assuntos internacionais, como o noticiário sobre o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama e a crise política na Inglaterra. ‘Um contraste brutal com as televisões e jornais brasileiros, que dedicaram páginas e páginas para discutir o assunto’, comparou.
Le Monde sai na frente
Berlinck comentou a atitude que prevaleceu entre os franceses foi a de considerar o acidente trágico, mas observar que ‘não há só isso acontecendo no mundo.’ Mesmo com uma cobertura mais contida, a imprensa francesa publicou um furo de reportagem. ‘ Foi o Le Monde, num artigo discreto no pé de página, que acabou dando em primeira mão a única notícia de relevância nas investigações até agora : de que houve problema na medição de velocidade do avião’, ressaltou.
Outra enorme diferença apontada pela jornalista foi o posicionamento em relação às famílias das vítimas. ‘Muitos franceses ficaram chocados com as imagens de parentes de vítimas sendo espremidos por repórteres quando chegavam ao aeroporto. Um jornalista da France 2 que conseguiu em Paris se hospedar no hotel tentava um contato com uma família por telefone. Ele via as famílias passarem no corredor, protegidas por funcionários da Air France e pela polícia, sem ousar abordá-las. Quase todas as histórias de vítimas publicadas na França eram reproduções das histórias que a imprensa brasileira levantou’, informou.
No debate ao vivo, Dines pediu para o brigadeiro Mauro Gandra comentar a cobertura da imprensa no acidente aéreo. O brigadeiro disse que, em geral, a companhia aérea e a empresa fabricante do avião têm receio de estabelecer alguma causa antes de um relatório preliminar. ‘A imprensa não tem que se preocupar com isso. Ela deve especular para que as pessoas sejam informadas. É papel da imprensa que ela faça isso’, avaliou. Mauro Gandra explicou que uma possível falha no pitot tem sido apontada como a causa do desastre, mas que a média de fatores que contribuem para um acidente aéreo é de quatro elementos. ‘É preciso que outros fatores tenham contribuído’, explicou.
Experiência acumulada
Paulo Motta afirmou que o primeiro problema enfrentado na cobertura foi a falta de imagens para publicar. Uma expressiva diferença em relação aos acidentes que envolveram as companhias aéreas TAM (18/07/07) e Gol (29/09/06). ‘Não havia uma imagem do acidente, de corpos. Nos outros acidentes você uma imagem do pedaço do avião, mas esse foi no meio do oceano. Nós do jornal saímos pela parte da emoção’, relatou. Outra diferença apontada por Paulo Motta foi a facilidade no campo especulativo. ‘Nós já estávamos mais calejados por causa dos outros acidentes’. Blogs internacionais de especialistas em acidentes aéreos foram consultados. ‘Editar um jornal era quase como fazer um jornal diário’, disse. Motta comentou que houve intensa troca não-oficial de informações entre jornais de todo o mundo. ‘Foi quase uma edição on-line’.
Dines levantou a questão da diferença entre o tratamento dado aos familiares da vítimas pela imprensa no Brasil e na França. Paulo Motta comentou que não havia lista oficial dos passageiros e que este fato dificultou o contato com as famílias. Para localizar os parentes dos envolvidos, os repórteres realizarem um trabalho de apuração paralelo, levantando com outras fontes os nomes de pessoas que estariam no voo. Já a imprensa francesa não revelou os nomes dos passageiros porque a lei local impede a divulgação. Motta contou que o jornal foi procurado por um repórter francês que pretendia localizar familiares das vítimas francesas. Para Motta, a pouca cobertura da imprensa francesa sobre os familiares pode estar relacionadas com a proibição da divulgação dos nomes.
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Um bode expiatório chamado pilot
Alberto Dines # editorial do programa Observatório da Imprensa na TV nº 507, no ar em 16/06/2009
Duas semanas depois o saldo da tragédia é a própria tragédia. Duzentas e vinte e oito vidas perdidas, famílias destroçadas, o luto nos dois lados do Atlântico aproxima novamente o Brasil da França, mas da forma mais dolorosa.
O mistério sobre as causas do acidente com o Airbus da Air France parecia insolúvel. No entanto, a hipótese que até agora conseguiu sustentar-se foi divulgada discretamente pelo prestigioso vespertino Le Monde em seguida ao desastre.
Segundo o jornal, apesar da sofisticação do equipamento do Airbus teria havido uma falha na aferição da velocidade. O pequeno sensor chamado pitot foi convertido pela imprensa internacional em bode expiatório e a recomendação anterior do fabricante para que fosse substituído foi rapidamente implementada.
As caixas-pretas poderão responder as dúvidas, mas a sua localização no fundo do oceano é improvável, quase impossível.
Em situações como esta é que se evidenciam as dificuldades para o exercício do jornalismo. De um lado, a comoção e a solidariedade forçam a manutenção do noticiário. Mas o imperioso respeito aos sentimentos dos enlutados impõe uma escrupulosa economia de informações.
O jornalista tem um compromisso com a humanidade. A vida continua, mas a dor não pode ser esquecida, nem o compromisso de fazer justiça.