Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Por uma atitude transdisciplinar



‘Não podemos vir a ser o que precisamos ser quando continuamos a ser o que somos.’ (Max DePree)


A maneira de abordagem do assunto vez em quando recorrente lembra o sistema de religiões que aparece por volta do primeiro milênio antes de Cristo no Oriente Próximo – não no Extremo Oriente. Seu principal representante é o zoroastrismo. Nele, acredita-se que um bom criador fez um mundo bom e um mau criador jogou nele o mau. Temos assim a criação dual – bem e mal, luz e trevas, virtude e vício, e assim por diante. Traços perceptíveis do sistema estão presentes em toda a história bíblica, desde o momento do Jardim do Éden. O mitólogo Joseph Campbell entendia isso como um conflito entre uma força boa e uma força má, no qual somos convidados a tomar a decisão de nos aliarmos ao bem e não nos pedem que nos coloquemos em harmonia com uma natureza dividida dessa forma e, sim, que a corrijamos.


O mundo em que vivemos infelizmente ainda se mantém alimentando a combinação dessa dualidade. É um dos grandes problemas, inclusive para a realidade das organizações complexas, nas quais o sistema de legitimação se dá em boa proporção pelo universo simbólico subjetivo da transmissão de conjecturas lingüísticas das falas e escritas humanas. A jornalista e escritora Véronique Vienne diz que ao entrar nesse jogo de uni-duni-tê abstrato muitos tendem a tomar drásticos atalhos. O que parece bom, avaliam, é ilegal e o que parece ruim não é. Com a dicotomia moral como guia, muitos jovens profissionais são tirados da frigideira e jogados no fogo. Só mais tarde, e muitas vezes irreversivelmente, alguns chegam à conclusão de que ninguém resolve o destino alheio respondendo a uma série de sim-ou-não, certo-errado, bom-ou-ruim. Isso é uma grande ilusão. A vida não é um teste de múltipla escolha.


Esse sistema dual muitas vezes é abastecido por falácias, uma constante fonte de fascínio, sustentando elementos da cultura como mitos, heróis, ritos, rituais e valores. Segundo o pesquisador inglês Madsen Pirie é freqüente que aquilo que parece ser um argumento corroborante de uma determinada posição numa discussão não a corrobore em nada. Às vezes, ele pode ser apenas uma dedução extraída de evidências que não se sustentam. Algo que Schopenhauer caracterizou como a ‘dialética erística’, explicitada em uma obra instigante com o título Como vencer um debate sem precisar ter razão.


Olhares revigorados


Já passou da hora de avançarmos. Outras percepções são necessárias. Há uma limitação de tudo que somos capazes de experimentar. Não temos aproveitado as habilidades para percorrer criativamente caminhos ainda não trilhados. Novos olhares são fundamentais para o avanço. Proust disse certa vez que para seguir uma viagem de descoberta não precisamos de novas paisagens, mas de olhos revigorados. É preciso ir além do simples comunicar.


Paulo Freire nos legou a lição de que o dialogar é imprescindível, pois potencializa a vida. O educador e filósofo Sérgio Cortella diz que é preciso abrir a mente, e toma como exemplo o detetive fictício do cinema chinês Charles Chan, que usava o seguinte bordão: ‘Mente humana é como pára-quedas, funciona melhor aberta’. Ou seja, muita atenção as novas interações que surgem. Ainda mais que as organizações no mundo contemporâneo deixam de ser cada vez mais detentoras de seus próprios produtos e da comunicação, tarefa dividida intensamente com os ‘betaconsumidores’ usuários mutantes que se transformam, modificando simultaneamente sua maneira de consumir.


A expressão knowledge worker (trabalhador do conhecimento), cunhada pelo jornalista e guru da Administração Peter Drucker, pode ser interessante para estimular discussões nas empresas ao pensarem sobre as necessidades desse novo consumerista e nos devidos responsáveis pelas mediações entre suas estruturas e públicos. O trabalhador do conhecimento não é apenas aquele cuja atividade tem o conhecimento como produto, mas sim o que percebe e entende sua atividade ser modificada diariamente por inovações. Deve ser movido ainda por uma postura que envolva predominantemente moderação e prudência.


As metas devem ser buscadas pela sabedoria daqueles que não detenham apenas informações, mas saibam e vivam – de maneira autêntica – experiências calcadas em pilares que possuam condições e um contingente preparado para pronunciar juízos reflexivos e maduros, subtraídas tanto a paixão quanto a precipitação. Promover definitivamente a fusão do teórico com o prático, ao unir o conhecimento tácito (por meio das relações intuídas, perceptivas) e o explícito (declarado, mostrado, explicado) em busca do equilíbrio e da dosagem na mesma quantidade e qualidade nos dois tipos. Bem articulados, podem proporcionar avanços significativos e consistentes.


Expertise fora


As organizações e profissionais que ampliam suas possibilidades multidisciplinares com capacidade de buscar o novo, ou seja, com visão transdisciplinar para superar o que está posto em termos de conhecimento, são aqueles que notadamente avançam no cenário contemporâneo. O bom profissional de comunicação (independente da formalidade que determine as possibilidades de exercício) é aquele que Drucker aponta como capaz de não se limitar a um campo de atuação. Ele dizia que os grandes avanços em determinada área raramente são impulsionados por uma disciplina. Tinha costume de, em suas preleções, enfatizar que os progressos se davam em função de disciplinas desconexas, transplantadas para esfera totalmente diversa, em que os novos procedimentos, novas idéias ou novos métodos não eram conhecidos e à qual nunca tinham sido aplicados. Muitas vezes, a expertise fora da própria profissão pode conferir às pessoas visão estratégica mais ampla em qualquer situação.


Esse tipo de profissional é que tem impulsionado as empresas inovadoras. Conduz organizações que apostam na ousadia da mistura, através de um caldeirão de áreas; investem cada vez mais na ‘inteligência da comunicação’, nas experimentações cognitivas e cinestésicas; no desenvolvimento de pesquisas bem orientadas, principalmente qualitativas e bem auditadas, na realização de análises comparativas, com bem estruturados ‘reports media monitoring‘; aprimoram ou buscam outros modelos não-convencionais de mensuração.


Podemos observar, na prática, que essas organizações, ao adotar posturas de maior transparência, atitudes resilientes, rigor no acompanhamento das práticas empresariais e no combate aos desvios de conduta, ao desenvolverem pensamento sistêmico, planejamento estratégico e programas de prevenção e de gestão de crise, estabelecem conscientemente novos relacionamentos com públicos-alvo e promovem atuações preventivas ou rápidas intervenções restauradoras. Assim se destacam. Conseqüentemente, os setores de comunicação a elas incorporados ou associados, assumem atribuições e mais responsabilidades, centralizam e descentralizam estratégias, táticas e operações de acordo com cada situação; ampliam investimentos em outras ferramentas, cada vez mais inusitadas; procuram estimular a criação de equipes ecléticas e integradoras; buscam acesso às informações privilegiadas por meio de investigações amplas e singulares no ciberespaço; tentam manter canais desobstruídos e múltiplos com a mídia e sociedade; além de buscar experiências bem-sucedidas de outras organizações.


Ousadia seria falar em um novo paradigma que deve ou está a permear a comunicação nas organizações contemporâneas. Mas, inegavelmente, mudanças estão ocorrendo. A dinâmica da comunicação entre empresa e consumidor velozmente se modifica através das redes sociais, blogs e demais componentes do mundo digital, gerando milhares de influenciadores e multiplicadores, deixando cada vez mais distante a dicotomia que ainda alimenta irreparáveis e resistentes saudosistas.

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Jornalista, escritor, doutor em Comunicação pela UFRJ, coordenador de Pós-Graduação e professor do Programa de Mestrado da UFJF; com o jornalista e relações públicas Jorge Duarte lançará em breve o Dicionário Prático de Comunicação Empresarial