No encalço do pertinente editorial do GLOBO de 23 de abril (“Internet não pode atropelar direitos autorais”) e na condição de cineasta, gostaria de sublinhar, justamente, a última frase do texto, que vai na jugular do tema, ao condenar esse contumaz expediente da internet em violar os sagrados (não existe palavra melhor!) direitos autorais – sejam de diretores, músicos ou roteiristas. Sim, de quem cria e assina o que ela, como horrível tsunami, veicula, impunemente.
Cineastas, autores e diretores de telenovelas, minisséries e documentários, somos uma ativa população de centenas de criadores, a maior da América Latina, com um espectro consumidor que ascende a 150 milhões de espectadores e telespectadores que, diuturnamente, nos assistem. Inalienáveis e irrenunciáveis por lei, sim, direitos autorais são mercado no seu mais nobre sentido. Um não subsistiria sem o outro.
Daí que a crescente consciência, tanto moral quanto patrimonial, de essa prevalência estar provocando uma férrea defesa dos direitos do diretor, cujo espectro reivindicatório cobre, a todo vapor, Europa, América Latina, Ásia e África. Reconfigurar, de forma pacífica e solidária, o caráter predador da internet é o escopo de emergentes sociedades de gestão coletiva, encabeçadas pelos próprios autores das obras; portanto, ninguém melhor!
Diante da voraz e insaciável atividade dela, organismos especializados em direitos de audiovisual, música, dramaturgia ou em multirrepertórios – como a Cisac (Confédération Internacionale des Sociétés de d’Auteurs et Compositeurs), fundada em 1926 na França, abrangendo mais de 120 países, e seu braço audiovisual, Writers & Directors Worldwide; ou a Adal (Alianza de Directores Audiovisuales Latinoamericanos), focada na cooperação e no incentivo à criação de entes de gestão coletiva no continente – mobilizam-se para transformar a internet, autêntico ogro da globalização, em parceira inestimável de sua própria sobrevida como canal de vocação massiva.
Da espantosa tecnologia que, gratuita e agressivamente, canibaliza o cinema e a TV mundo afora, é preciso trazer a internet para o marco civilizatório da interlocução entre autor, intermediário e consumidor. O que, na prática, deveria ser isonômico, mas só ela fatura de forma ampla e irrestrita, enquanto nós, primevos responsáveis pela obra, somos lesados e ignorados. O próprio público, muitas vezes, nem se dá conta da brutalidade dessa sórdida equação.
Não existe audiovisual sem investimento, gastos e riscos – abandonado ao deus-dará, que é pegar e largar no éter sem outro compromisso pecuniário, quanto mais moral. Além do produtor, distribuidor e exibidor, há quem escreva, interprete, dirija, componha a música, edite o filme ou sua plataforma equivalente. E cujos direitos autorais devidos transcendem ao lugar e ao tempo e simbolizam, em última análise, uma agressão aos próprios e imprescritíveis direitos humanos.
São bens materiais embutindo bens imateriais que harmonizam talento, expertise e cultura, um bem com autor e proventos a receber pela sua consecução física e comunicação pública, e nas reprises a vir e porvir. Sejamos cineastas, músicos ou roteiristas, essa criação é o nosso único patrimônio, pois os fotogramas e frames, textos e pentagramas grudam no cotidiano como uma segunda pele. E deles depende nossa sobrevivência, digna e virtuosa. E, também, a vitalidade, abrangência e renovação da cultura e da arte de um país.
Ao passar o rodo nos direitos de autor (no nosso caso, do diretor), em quase todo o conteúdo que lhe dá substância nos bilhões de acessos e, em sendo a existência e otimização da internet irreversíveis, fulcro do próprio mercado e do negócio audiovisual em si, há que se encontrar mecanismos que remunerem, de forma justa e irretratável, ambos os protagonistas do evento – para que amanhã, tão grave quanto agora, não continuemos nessa servidão voluntária de nuvens cada vez mais aziagas.
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Sylvio Back é cineasta