Aos 22 anos, El Mago trabalhava como linotipista e gostava de guardar pássaros nos bolsos. Quando chegava à Redação do “El Universal”, em Cartagena, escondia a ave na gaveta. Dali a meia hora anunciava: “Vejam, vou fazer aparecer um passarinho!” Dizia, então, palavras mágicas, fazia um gesto – e o pajarito saía voando pela Redação, para deleite dos colegas. Um deles era o futuro Nobel de literatura Gabriel García Márquez (1927-2014), então um jovem repórter de 24 anos. O nome de El Mago, hoje com 86 anos, é Guillermo Dávila. Encantado pelo universo mágico, assim como Gabo, ele e o autor logo ficaram amigos. E, juntos, criaram em Cartagena o “Comprimido”, o “menor jornal do mundo”, que durou seis dias, em 1951.
Numa noite fria de Bogotá, Dávila encontrou O GLOBO para contar essa história – e já chegou com quatro dados num saco de veludo, para fazer um truque. Mais de 60 anos depois de lançar o “Comprimido”, ele se tornou uma celebridade local. Tanto que foi atração da Feira do Livro de Bogotá, encerrada ontem, após homenagear pela primeira vez um lugar imaginário, a Macondo de “Cem anos de solidão”.
– Gabo era um mago da palavra. E as coisas têm uma dimensão mágica. Um romance também é um truque – afirma Dávila.
A Colômbia descobriu o mago em 2002. Em seu livro de memórias, “Viver para contar” (Record), García Márquez relembrava seus dias em Cartagena: ao fim do expediente, bebia rum contrabandeado com Dávila e outros tipógrafos, que eram “gramáticos dramáticos”. Saudava o amanhecer cantando com os bêbados nas muralhas da cidade velha. Tomava sopa de tartaruga. E se deslumbrava quando, perto da hora de o jornal ir para a gráfica, El Mago fazia desaparecer textos das páginas. O chefe pedia palmas para os truques, mas alertava – pela milésima vez – que aquela seria a última.
– Proibiram truques na redação! – ri.
“Dividir com um mago a rotina diária foi como descobrir a realidade”, escreveu García Márquez. Mas, apesar da menção no livro, ninguém sabia quem era o linotipista mágico de Cartagena ou se estava vivo. Dávila seria uma nota de rodapé na biografia do escritor até que… num congresso da Fundación Nuevo Periodismo Iberoamericano, criada por Gabo, o diretor executivo da instituição, Jaime Abello Banfi, resolveu falar do “Comprimido”. Foi corrigido por um homem na plateia. Banfi quis logo saber como aquele sujeito sabia tanto sobre o assunto. E ouviu a resposta: “Yo soy El Mago!” Guillermo Dávila subiu enfim ao palco. E, desde então, vem contando sua história.
O amigo de García Márquez é filho de um tipógrafo e começou a trabalhar com os linotipos aos 13 anos. Foi sua primeira experiência mágica. Fascinava-lhe o chumbo derretido a 360 graus reluzindo antes de virar letras, que depois se alinhariam para formar palavras. Adolescente, viajou a Colômbia toda trabalhando para jornais.
– O chumbo derretido tem vida própria. Depois de gravada em chumbo, a ideia se eterniza. E isso me fascinava – relembra Dávila.
El Mago conheceu “a rainha das artes” – como se refere à magia – com um mexicano, que lhe ensinava os truques por carta e lhe enviava livros. Mais tarde, foi discípulo de um colombiano chamado Lórea. Encantado com o faquirismo indiano, queria perfurar-se com agulhas e espadas. E aprendeu a serrar uma mulher ao meio.
– Se faço uma mágica e te explico como ela funciona, você vai rir de si mesmo. E isso te ajuda a resolver os problemas da vida, que também são truques de ilusionismo. Qual seria a fórmula para resolvê-los? Como desfazemos os encantos de todos os problemas? – questiona Dávila, fundador da hoje extinta Sociedade Colombiana de Magos.
Na brisa da Calle San Juán de Dios, El Mago e Gabo conversavam sobre bruxaria, hipnose, paranormalidade, mortos que se levantavam e iam festejar, curandeiros que mandavam o sapato para curar alguém doente. Muitas dessas histórias povoaram a obra do escritor. Dávila lembra que García Márquez absorvia tudo como uma esponja. E El Mago guardava o que o amigo escrevia, porque já sentia que ele estava destinado ao sucesso. Por isso, diz que não se surpreendeu com o Nobel.
“Era como o Twitter”
Foi numa dessas conversas que surgiu a ideia do “Comprimido”, ambicionando ser “o menor jornal do mundo com a mesma intensidade com que alguns ambicionam ser os maiores”. El Mago bancou a publicação com sua poupança. Era do tamanho de meia folha A4, com até oito páginas e tiragem de mil exemplares. Suas notícias saíam em cápsulas. Gabo as escrevia em uma hora, às 11h, e o periódico levava duas horas para ser impresso – ao preço de 28 pesos. Os dois amigos eram os únicos funcionários: o linotipista era gerente; o escritor, diretor de redação.
– Era como o Twitter! – brinca Dávila.
Logo o jornal fez sucesso. E virou notícia. Alguns o chamavam de “jornal liliputiano”, elogiando a graça de seus textos. Numa de suas curtas notícias, uma autoridade anunciava: iria exterminar os tubarões da cidade. Para fazê-lo, queria espalhar peixes-espada pelas águas, único animal supostamente capaz de pôr fim à fera. O repórter qui saber: “E depois o que fazemos com os peixes-espada?” “Procuramos um predador que acabe com eles”, rebateu a autoridade.
Dávila distribuía a publicação e, quando encontrava Gabo, dizia que tinha vendido tudo. Os dois morriam de rir: o “Comprimido” era gratuito. A vida do jornalzinho, porém, foi tão curta quanto suas dimensões. Depois de seis dias, Dávila avisou ao amigo: “Maestro, o dinheiro acabou”. E, em seu último editorial, García Márquez escreveu:
“Não encontramos recurso mais digno que não o de reduzir este periódico ao limite da invisibilidade. (…) Como consequência, ‘Comprimido’ (…) passa a ser o primeiro periódico metafísico do mundo”.
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Maurício Meireles, do Globo