Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

“Congresso dá concessões às escuras”

No terceiro mandato consecutivo, a deputada Luiza Erundina (PSB-SP) tornou-se uma das principais referências da Câmara no debate sobre a comunicação social. O diagnóstico da ex-prefeita de São Paulo sobre o assunto é desolador: o Congresso se omite do papel de fiscalizar os processos de concessão e renovação das emissoras de rádio e TV e favorece grupos políticos e conglomerados de radiodifusão.


Segundo ela, os parlamentares aprovam as concessões e renovações às escuras, sem observar o cumprimento dos requisitos legais mínimos, como o desempenho de sua função social, e legislam muitas vezes em causa própria.


‘O máximo que se consegue fazer é verificar o quanto os documentos, apresentados ao se requerer uma renovação de uma concessão, estão de acordo com as exigências formais, legais. É uma formalidade’, afirma. ‘São quatro, cinco grupos que detêm o oligopólio dessas concessões, com, evidentemente, a leniência e a conivência de quem concede, ou permite, ou fecha os olhos a essa concentração fantástica de controle sobre os meios de comunicação.


No ano passado, Erundina comandou uma subcomissão instalada na Comissão de Ciência e Tecnologia que propôs mudanças nos processos de concessão das outorgas de rádio e TV. Das discussões surgiu uma proposta de emenda constitucional (PEC) que proíbe expressamente parlamentares de serem donos de empresas de radiodifusão.


‘Lei não é taxativa’


De acordo com levantamento da Transparência Brasil, 29 senadores (36% do total de 81) e 62 deputados (12% do total de 513) têm concessões de rádio e TV. A maioria deles alega que a Constituição não é taxativa quanto à proibição. ‘Não se tem consciência de que isso é um patrimônio da sociedade. E é o Estado, em nome da sociedade, que confere ou não essas outorgas e essas renovações de concessões. Então, há um déficit de consciência política a respeito do tema na sociedade’, critica a deputada.


Com trajetória política ligada aos movimentos sociais, Erundina atribui à democratização dos meios de comunicação poder maior de transformar a sociedade do que a reforma agrária. ‘No dia que se fizer esse processo de democratização e de controle da sociedade sobre esses meios, nós teremos condições políticas de fazer a reforma agrária e qualquer outra reforma que se precisa fazer neste país’, defende.


Na entrevista a seguir, Erundina classifica como ‘absurda’ a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de derrubar a exigência do diploma para exercício do jornalismo e condena o que ela chama de ‘ditadura’ dos líderes partidários e da Mesa Diretora. Na avaliação dela, a crise que atinge o Congresso este ano reproduz uma crise da democracia participativa e direta.


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No ano passado, a senhora comandou uma sub-relatoria da Comissão de Ciência e Tecnologia que tinha como propósito costurar uma proposta que proibia taxativamente parlamentares de serem concessionários de empresas de rádio e TV. No que deu esse trabalho?


Luiza Erundina – Era para discutir e aperfeiçoar a questão dos procedimentos de outorga e renovação de concessões e tornar mais objetiva a condição do parlamentar dar parecer a respeito de renovação ou não das concessões. O que me incomodava desde o início do meu trabalho nessa comissão era ter de dar parecer sem condições objetivas de aferir o mérito de um pedido de concessão ou de renovação de concessão. A comissão e o deputado não têm condições de aferir ‘in loco’ sequer se as exigências legais estão sendo cumpridas. E, a partir daí, eu comecei a questionar que não era correto estarmos dando pareceres no escuro. E, no final de 2006, conseguimos aprovar a criação de uma subcomissão. Mas ela só funcionou em 2007, depois de muita resistência do ministério e de outros setores que não tinham interesse em enfrentar esse debate. E aí, em 2008, nós conseguimos instalar essa subcomissão, fizemos mais de 20 audiências públicas, tratando de todas as questões, de todo o marco legal que está obsoleto. Do próprio Código Brasileiro de Telecomunicações, que é de 1962, à Constituição de 1988, que avançou de forma significativa em seus artigos 220 e 224, repassando todos os temas relacionados à questão do sistema de comunicação social. E que até hoje não foram regulamentados, embora alguns sejam auto-aplicáveis, mas mesmo assim não foram regulamentados. E a questão do Artigo 54, da Constituição, que é o que proíbe que detentores de cargos públicos, de mandatos, tenham concessão de rádio e TV.


Quantos são os detentores de cargos públicos que têm concessão de rádio e TV?


L.E. – Hoje eu não saberia te dizer, porque todo dia eles obtêm novas concessões. São dezenas de deputados e senadores que há muitos anos detêm concessões. É tradicional.


A senhora falou de ‘pareceres no escuro’. E hoje? As concessões ainda são ‘no escuro’?


L.E. – São, porque não temos condições de aferir. Nós também introduzimos alguns mecanismos de transparência e controle no ato normativo, que estava vigendo há mais de dez anos. Por exemplo, um sistema informatizado que quem acessar esse programa pode saber quem recebeu a outorga, há quanto tempo, quantas outorgas estão vencidas, quem são seus proprietários. Antes nem se tinha isso. E, a partir desse ato normativo, a gente conseguiu que se desse maior transparência, não é total transparência, em relação ao que tinha antes. E temos um grau menor de erros sobre esses pareceres porque o sistema é centralizado. O próprio ministério é altamente centralizado. A gestão da política pública de comunicação não é descentralizada. Havia órgãos regionais, que depois acabaram. Ficou tudo centralizado no ministério, que não tem estrutura para dar conta da fiscalização. A Anatel só fiscaliza parte do espectro eletromagnético. A radiodifusão não tem a necessária fiscalização… Então, nós já detectamos todo esse vazio legal. Essas foram as conclusões. Fizemos um relatório completo com o diagnóstico de todo esse sistema, pegando onde estão as falhas, qual o caminho para se resolver, etc. E colocamos, inclusive, anteprojetos de lei para corrigir distorções ou vazios, inclusive uma proposta de emenda à Constituição para dar maior clareza ao Artigo 54, para que não haja possibilidade de interpretação como eles dão, para justificar que detentores de cargo continuem tendo ações, direção, ou a outorga mesmo desses veículos de comunicação.


Como atua o lobby, dentro do Congresso Nacional, dos grandes grupos de comunicação?


L.E. – Eles têm seus assessores parlamentares muito bem preparados, muito atentos, e acompanhando permanentemente a atuação do Congresso, da Câmara e das comissões. E a composição das comissões… Não é só da Comissão de Comunicação. Todas as comissões temáticas da Casa têm um viés muito orientado a um interesse corporativo de determinados setores. Você vai na saúde, tem o setor que atua nesse área. Não é diferente na Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática… Que é onde os grandes grupos atuam no sistema de comunicação social, de massa, radiodifusão, telefonia… E há uma contradição de interesses. Por exemplo, a convergência que ainda não foi regulamentada. Como administrar a convergência tecnológica? Essas questão todas estão em aberto do ponto de vista formal, legal. E precisa se enfrentar isso, seja suprindo as lacunas que existem na atual legislação, seja criando novas legislações para dar conta das inovações que foram surgindo no curso dessa revolução tecnológica no campo das informações da comunicação.


Esse sistema é indefinido, para não dizer obscuro?


L.E. – Sim, com certeza. Vai se fazer a primeira Conferência de Comunicação Social neste ano, com muito esforço, com muita dificuldade, com muita resistência por parte da área do governo que gerencia essa política de comunicação. A conferência nacional tem de ser precedida de conferências estaduais e municipais, a exemplo das outras. Em 1941 já se fez a primeira Conferência Nacional de Saúde. De lá para cá, já houve 12 ou 13 conferências de saúde, que é onde a sociedade civil se expressa, controla, fiscaliza, decide a política de saúde. Enquanto que na comunicação social não existe absolutamente nenhuma instância de representação da sociedade civil, a não ser o Conselho de Comunicação Social, que está desativado há quase três anos. E, a propósito, realizamos na última semana uma audiência pública, à qual o Senado não se fez presente, nem por meio de senadores ou representantes. E cabe ao presidente do Senado convocar sessão do Congresso para eleger os conselheiros cujos mandatos estão vencidos há quase três anos.


O senador José Sarney, presidente do Congresso, está relutando em instalar o Conselho de Comunicação?


L.E. – Não é só ele, os outros presidentes também. Eu já peguei três presidentes nesse tempo em que batalho por essa questão. Batalho desde 1999, quando consegui que o então presidente, senador Antonio Carlos Magalhães, aprovasse a lei que estava no Senado e que já tinha sido aprovada na Câmara, para que se regulamentasse o Artigo 224, do Capítulo V da Constituição, para que fosse regulamentada a criação do conselho. O colegiado já constava da Constituição de 1988. Só em 2001 foi feita a eleição dos primeiros conselheiros e em 2002 foi instalado o primeiro conselho. Contudo, com um caráter diminuído em seu poder, em relação àquilo que se pretendia na época da Constituinte de 1988. A deputada Cristina Tavares, de Pernambuco, foi quem liderou esse movimento junto com outros deputados. Pretendia um conselho deliberativo, um conselho fiscalizador, um conselho no qual as outorgas também passariam, percebe? Não só passariam nas comissões do Senado e da Câmara, mas também deveriam passar no conselho onde tinha a representação da sociedade civil, sobre a decisão de se conceder ou não outorga, de se renovar ou não a outorga. E, mesmo diminuído, esse conselho foi instalado só em 2002. Funcionou relativamente bem com esses limites de poder, com mandatos de três anos, e de lá para cá não fez nenhuma eleição de um novo conselho. O conselho está absolutamente desativado e ausente desse debate todo que se faz no país inteiro sobre a política de comunicação, que vai ser o eixo da primeira Conferência Nacional de Comunicação.


A concessão de rádio e TV não é vista como um bem público?


L.E. – Não é vista. Ou, pelo menos, se fala isso, não tem consciência de que isso é um patrimônio da sociedade. E é o Estado, em nome da sociedade, que confere ou não essas outorgas e essas renovações de concessões. Então, há um déficit de consciência política a respeito do tema na sociedade. Por isso que a sociedade se mantém passiva diante das coisas todas que ocorrem, como por exemplo, concessões ilegais e inconstitucionais que ocorrem por aí. Isso de um lado. Do outro lado, os interesses pessoais de grupos, de setores que têm o controle desse poder. Que é um poder maior do que qualquer outro poder. Mesmo o poder do Estado, do ponto de vista do quanto esse poder interfere na vida da sociedade, na economia do país, na cultura, na ideologia, nos valores, no comportamento, nos interesses econômicos. É uma coisa fantástica esse poder. E tem os oligopólios. São quatro, cinco grupos que detêm o oligopólio dessas concessões. Com, evidentemente, a leniência e a conivência de quem concede, ou permite, ou fecha os olhos a essa concentração fantástica de controle sobre os meios de comunicação. Se naquele tempo já era muito poder nas mãos de poucos, imagine com a digitalização, com a convergência tecnológica, com a internet, com a propriedade cruzada que detém a concessão de rádio, TV, telefonia, etc. Portanto é uma selva, que interessa a muito poucos reforçar privilégios em detrimento inclusive da democracia.


Isso colabora para que o Parlamento continue a conceder outorgas em um processo automático?


L.E. – Com certeza. O máximo que se consegue fazer é verificar o quanto os documentos, apresentados ao se requerer uma renovação de uma concessão, estão de acordo com as exigências formais, legais. É uma formalidade. Você não tem condições de ir lá e verificar se aquelas metas, aqueles percentuais que obrigam um determinado concessionário em termos de tempo de informação, conteúdos culturais, a regionalização, a produção independente, a diversidade, a universalização da informação em um país tão diversificado, tão culturalmente plural… Isso não é respeitado. Há 48 anos existe o Código Brasileiro de Telecomunicações. De lá para cá, teve a Constituição de 1988, cujo capítulo sobre o tema não foi regulamentado até hoje. E teve recentemente a incorporação de um novo sistema, o sistema digital, que multiplica por mais de três o potencial do espectro eletromagnético desses veículos de transmissão de informação, de imagem, de conceito, de valores, de cultura, etc. Por isso que eu tenho dito: sou uma militante da luta pela reforma agrária, porque venho de lá, dos cafundós do Judas, lutando pela democratização da terra no campo. Por isso sofri repressão política e tive de vir ao Sul por conta disso. E eu digo hoje, com o conhecimento que adquiri nestes 12 anos de mandato, militando nessa área, que mais importante do que a reforma agrária é a democratização dos meios de comunicação. No dia que se fizer esse processo de democratização e de controle da sociedade sobre esses meios, nós teremos condições políticas de fazer a reforma agrária e qualquer outra reforma que se precisa fazer neste país.


Essas concessões públicas são confundidas com propriedades privadas?


L.E. – Lógico. O setor comercial é isso. Por exemplo, como é que se afere a audiência? É em cima de espaço destinado à publicidade. E a publicidade vem na razão direta de quantas pessoas assistem àquele programa. É um cálculo meramente econômico para aferir a repercussão de determinado conteúdo programático.


A política de comunicação melhorou no governo Lula?


L.E. – Está a mesma coisa, porque o controle desse setor está nas mãos das mesmas pessoas. Não é verdade? E os órgãos de governo, por onde passam essas decisões, não estão devidamente articulados. Não há uma política unitária. Por exemplo, uma concessão passa pelo Ministério das Comunicações, pela Casa Civil, vem a mensagem pública para a Câmara, na Câmara passa por duas comissões, depois vai para o Senado… E mais, se a fiscalização do ministério, ou seja lá de quem for, identificar alguma irregularidade e propuser a cassação de uma concessão; são tantos os direitos que esse concessionários têm. Primeiro, ele pode recorrer à Justiça. Além disso, é preciso uma sessão do Congresso com 3/5 para poder decidir sobre um veto de uma concessão. Enquanto que os outros serviços não passam por esse trâmite. Um eventual veto, a proposta de anulação de uma concessão comprovadamente irregular, passa por todos esses trâmites, que vão levar outros dez anos… E isso não impede o funcionamento do canal, da emissora. Até ele aguardar a decisão do Congresso, a decisão da Justiça, ele continua operando 15 anos no rádio e dez anos na televisão, que é o tempo que dura uma concessão.


O que a senhora achou da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de acabar com a exigêcnai de diploma para exercício do jornalismo?


L.E. – Acho isso um absurdo. Isso favorece os donos de jornal, rádio e televisão. Isso há 30 anos era admissível, porque não tinha faculdades, os meios de comunicação não tinham o nível de complexidade, exigência e modernidade que têm hoje. Agora, o que me admira é que não há nenhuma reação, como se aquilo fosse tranquilo. E isso a gente sabe a quem interessa, basicamente.


Essa decisão faz parte desse sistema obscuro?


L.E. – É lógico. É evidente que alguém podia exercer quando, em seu tempo, não havia uma exigência de formação especializada naquele campo. E isso vale para qualquer outra profissão. E essa é uma profissão que forma opinião, forma consciência, ou deforma consciência, dependendo do que se faça com a informação. A falta da exigência do diploma não significa democratizar o acesso, absolutamente. É você tornar os lucros mais fáceis para os donos de veículos, porque eles agora contratam qualquer um.


Qual a análise que a senhora faz da crise que assola a Câmara e o Senado?


L.E. – Acho que é uma crise de representação, da dimensão da democracia representativa. Isso ocorre no mundo inteiro. A sociedade civil tem de ter soberania popular, até porque a fonte do poder é o povo, é o cidadão e a cidadã. É o eleitor que delega a esses representantes o poder de representá-lo, de legislar por ele. As identidades ideológica e doutrinária de projeto político estão completamente perdidas. Você não sabe quem é quem. Você vê indivíduos que podem ser identificados como sendo de uma orientação ideológico-política, mas hoje é uma confusão geral com essa base tão heterogênea de sustentação do governo. Há uma crise de representação, há uma crise de legitimidade, e há uma crise de democracia participativa e democracia direta.


A crise também é do senador José Sarney?


L.E. – É da disputa de poder entre as instituições políticas. Os problemas, muitos deles, são crônicos e vêm de muitas décadas. E as coisas vão aflorando de forma mais aguda, mais explícita e mais grave dependendo da conjuntura da disputa de poder que se dá. Não é uma coisa que se faz naturalmente, dentro de um processo democrático. Ele se faz nos bastidores, nas lideranças, nos caciques políticos. Então não há uma democracia partidária. Há uma ditadura do colégio de líderes e das mesas diretoras das Casas. Que sequer se tem clarezas de onde estão as responsabilidades em relação a quem tem o poder para determinadas decisões. Então, é preciso uma revisão estrutural.


Qual sua opinião sobre o presidente Lula ter afirmado que afirmou que o senador Sarney não pode ser tratado como ‘uma pessoa comum’?


L.E. – A conjuntura partidária, eleitoral e política desvirtua a realidade. Nós que estamos aqui, e que de certa forma vivenciamos essa realidade, temos dificuldade de saber o que é o quê e quem é quem; imagine o cidadão comum. Como é que ele entende que pessoas e grupos e partidos que, no passado, foram responsáveis pelo arbítrio, pela ditadura, por essa política econômica que sacrificou a imensa maioria do nosso povo. Todas as mazelas da sociedade brasileira são de responsabilidade desses grupos que hoje partilham o poder igualmente, de uma composição de forças que no passado estava antagonicamente colocada no espectro político eleitoral. Isso também, a meu ver, é parte da crise. Sarney esteve no foco de sustentação de um regime discricionário, que retirou as liberdades democráticas, comprometeu a democracia, fez políticas que não foram de distribuição de renda e de respeito à justiça social, aos direitos sociais. Então, quero dizer o quanto o componente conjuntural da disputa de poder, a meu ver, é parte da crise. Está na raiz dessa crise. Enquanto não se resolver isso por meio de uma reforma política que passe pela discussão com a sociedade, essa crise não se resolve com medidas pontuais, administrativas e algumas tentativas de resolver ali e acolá. É uma crise estrutural em todos os seus aspectos.