Todo jornalista conhece uma história semelhante à do repórter que não tinha matéria porque o prefeito não havia discursado, nem podia discursar, no meio do fogo e da fumaça na prefeitura incendiada. Todo mundo riu de alguma piada parecida, achando que só um sujeito fora do comum cometeria um erro como esse. Mas será, mesmo, que nosso dia-a-dia não está repleto de tropeços desse tipo, com a única diferença de que talvez sejam menos evidentes?
Na terça-feira (19/4), chanceleres da Comunidade Sul-Americana de Nações concluíram dois dias de reunião, em Brasília, emitindo um comunicado com três itens. No primeiro, pediram às autoridades, à sociedade civil e aos políticos equatorianos que resolvessem a crise política nacional respeitando a ordem democrática. No segundo, afirmaram seu apoio à candidatura peruana a um assento não-permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidos. No terceiro, saudaram o aniversário da Declaração de Independência da República Bolivariana da Venezuela.
Nenhum dos grandes jornais brasileiros mencionou essa nota. Repórteres e editores devem tê-la considerado um não-evento, uma não-notícia, se é que a leram e, tendo-a lido, gastaram alguns segundos na sua avaliação. A reunião foi registrada, exceto no caso de um jornal, com base na entrevista de encerramento concedida pelo chanceler Celso Amorim. A entrevista continha algo que poderia ser notícia, pelos critérios mais comuns. O melhor componente era um telefonema do francês Pascal Lamy, ex-comissário de Comércio da União Européia e candidato, agora, ao posto de diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC).
Notícia possível
Só a Gazeta Mercantil destacou, baseada num despacho da Agência EFE, que os chanceleres haviam resolvido transferir de agosto para setembro a reunião presidencial da Comunidade, por falta de projetos para discussão pelos chefes de governo.
Nenhum jornal apresentou todos os fatos na mesma reportagem. Todos seguiram a noção mais convencional de notícia e deixaram de contar uma história politicamente saborosa e rica de informação. Para contá-la, seria preciso juntar vários fragmentos e levar em conta, antes de mais nada, que representantes de alto nível de 12 países se haviam reunido em Brasília aparentemente para coisa nenhuma. A notícia poderia ser:
‘Depois de dois dias de reunião em Brasília, chanceleres da Comunidade Sul-Americana de Nações saudaram o aniversário da Declaração de Independência da Venezuela, apoiaram a candidatura peruana a um assento não-permanente no Conselho de Segurança da ONU e pediram aos equatorianos que respeitem a ordem democrática. Além disso, transferiram de agosto para setembro a próxima reunião de cúpula do bloco regional, por falta de assunto.
‘A Comunidade Sul-Americana de Nações foi criada oficialmente em dezembro de 2004, por proposta do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com o objetivo declarado, entre outros, de constituir uma força capaz de se opor aos Estados Unidos na política hemisférica.
‘Durante o encontro, o chanceler brasileiro, Celso Amorim, recebeu um telefonema do francês Pascal Lamy, que pediu o apoio do Brasil à sua candidatura à direção geral da OMC. O candidato brasileiro, embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa, foi eliminado na primeira rodada, na semana passada, com a votação mais baixa. O nome indicado pelo Itamaraty não foi apoiado pelos países do Mercosul, nem pela maior parte dos outros latino-americanos, incluídos os membros da Comunidade Sul-Americana de Nações.
‘O chanceler Celso Amorim aproveitou uma visita dos ministros ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva para anunciar a criação do Programa de Apoio ao Pré-Investimento para América do Sul (Finep-Sul), resultante de um convênio de assistência recíproca entre o Itamaraty e a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep).’
Histórias desprezadas
Uma edição cuidadosa poderia destacar a história de Lamy sem esconder outros aspectos interessantes do assunto e sem negar ao leitor o conjunto dos fatos – porque havia, sim, um conjunto, emoldurado pela estratégia diplomática do Brasil. Mas a maior parte da imprensa desprezou como não-evento um componente politicamente significativo desse quadro: o resultado da reunião de chanceleres da Comunidade Sul-Americana de Nações, um dos projetos diplomáticos mais ambiciosos do governo brasileiro.
Não é costume da imprensa investigar fracassos e eventos furados, ainda que isso possa produzir informações importantes para o acompanhamento do dia-a-dia. É mais fácil noticiar em poucas linhas, como no ano passado, que os detalhes da política industrial ficariam para mais tarde, embora sua apresentação estivesse prevista para 31 de março.
Por que não foram apresentados no lançamento oficial do programa? Que problemas ocorreram?
Também era mais fácil apenas noticiar, de vez em quando, o desempenho medíocre do BNDES, sem tentar explicar o que ocorria. A explicação só apareceu em matéria de jornal quando Miriam Leitão descreveu, em sua coluna de O Globo, a devastação que havia ocorrido na administração de um dos maiores bancos de desenvolvimento do mundo.
Talvez a história do incêndio faça tanto sucesso porque qualquer um pode entendê-la e rir do repórter que não viu a notícia. Não é necessário uma grande argúcia jornalística para perceber a graça dessa fábula. Mas nem todas as boas histórias desprezadas pelos jornalistas são tão ostensivas quanto um incêndio num prédio importante. Os leitores talvez mereçam mais que a cobertura daqueles fatos que qualquer um pode enxergar.
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Jornalista