Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Quem tem legitimidade para defender a liberdade de imprensa?

Antes de discutir a questão do diploma é imperioso discutir a legitimidade dos autores da Ação Civil Pública acolhida pelo Supremo Tribunal Federal que resultou na extinção da sua obrigatoriedade para o exercício do jornalismo.


No recurso interposto pelo Ministério Público Federal, o SERTESP (Sindicato das Empresas de Rádio e TV do Estado de S. Paulo) aparece como assistente simples. A participação do MPF nesta questão é inédita e altamente controversa, tanto assim que o ministro Gilmar Mendes abandonou, numa parte substanciosa do seu relatório, o mérito da questão para justificar a inopinada aparição do órgão público numa questão difusa e doutrinal, suscitada aleatoriamente, sem qualquer fato novo ou materialização de ameaça.


Imaginemos que os juristas e o próprio MPF acabem por convencer a sociedade brasileira da legitimidade de sua intervenção. Pergunta-se então: tem o SERTESP credibilidade para defender uma cláusula pétrea da Carta Magna que sequer estava ameaçada? Quem conferiu a este sindicato de empresários o diploma de defensor do interesse público? Quem representa institucionalmente – a cidadania ou as empresas comerciais, concessionárias de radiodifusão, sediadas em S. Paulo?


Na condição de concessionárias, as afiliadas da SERTESP são dignas de fé, têm desempenho ilibado? Nunca infringiram os regulamentos do poder concedente (o Estado brasileiro) que se comprometeram a obedecer estritamente? Respeitam a classificação da programação por faixa etária? As redes de rádio e TV com sede no estado de São Paulo porventura opõem-se ou fazem parta da despudorada e inconstitucional folia de concessões a parlamentares?


Se este sindicato regional de empresas claudica em matéria cívica e não tem condições de apresentar uma folha corrida capaz de qualificá-lo como defensor da liberdade de expressão, por que não foram convocadas as entidades nacionais? Onde está a ABERT e a sua dissidência, a ABRA? Brigaram?


E por que razão a ANJ (Associação Nacional de Jornais) de repente começou a aparecer como co-patrocinadora do recurso contra o diploma depois da vitória na votação? A carona tardia teria algo a ver com as notórias rivalidades dentro do bunker patronal? Essas rivalidades empresariais não colocam sob suspeita o mandato de guardiã da liberdade que o SERTESP avocou para si?


Grupo minoritário se sobrepõe à cidadania


De qualquer forma evidenciou-se que numa sociedade democrática, diversificada e pluralista a defesa da Constituição não pode ser transferida para um grupo minoritário (o SERTESP) dentro de um segmento (o dos empresários de comunicação) dilacerado por interesses conflitantes e nem sempre os mais idealistas.


O Ministério Público Federal, como órgão do Estado brasileiro, para levar a bom termo a Ação Civil Pública, deveria ter organizado audiências públicas para ouvir as demais partes. Contentou-se em acionar a ré (a União) e suas assistentes simples (a Fenaj e o Sindicato de Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo, ambas com atuações abaixo do sofrível). Contentou-se com os interesses das corporações e deixou de lado a oportunidade de renovar e aprimorar o ensino do jornalismo.


Não se sabe o que efetivamente pensam os leitores, ouvintes e telespectadores sobre a questão do diploma e, principalmente, sobre as excentricidades do julgamento. Os jornais têm registrado algumas cartas simbólicas sobre o diploma em si para fingir neutralidade e passam ao largo dos demais aspectos.


Articulistas calados


O que chama a atenção é que nos cinco dias seguintes à decisão da suprema corte (edições de quinta-feira, 18/6, até segunda-feira, 22/6) dos 28 espaços diários reservados a articulistas regulares e colaboradores eventuais nos três principais jornalões apenas um jornalista manifestou-se de forma inequívoca a favor da manutenção do status quo. Dos 140 consagrados nomões que se revezaram todos os dias ao longo de quase uma semana, só Janio de Freitas (Folha de S. Paulo, domingo, 21/6) reagiu aos triunfantes editoriais da grande imprensa comemorando a morte do dragão da maldade, a obrigatoriedade do diploma.


Miriam Leitão, Gilberto Dimenstein e João Ubaldo Ribeiro discordaram da cortina de silêncio imposta pela ANJ, por meio dos comandos das redações, e não permitiram que o assunto fosse engavetado. Parabéns. Mas não se manifestaram a respeito da obrigatoriedade. Não quiseram ou não puderam.


A festa libertária acabou convertida numa festa liberticida. O cidadão recebeu um razoável volume de material noticioso e reflexivo, porém linear, esvaziado de qualquer elemento crítico ou, pelo menos, questionador.


Neste grande festival de hipocrisias, a imprensa aposenta o bastão de Quarto Poder e assume-se abertamente como lobby empresarial. Já o STF, obcecado pela idéia de tornar-se um petit-comité legislativo, no lugar de converter-se em coveiro do autoritarismo, é apenas o parteiro de um novo mandonismo cartorial.


***


Nessas notas preliminares, ainda antes de entrar no mérito da questão do diploma, é preciso embrenhar-se na remissão histórica. Parte deles está mencionada em O Papel do Jornal, Uma Releitura (Summus Editorial).


No apêndice ‘O jornalismo na Era do Cruzado e a cruzada contra o diploma de jornalista’, datado de 27/5/1986 (5ª edição, pp. 147-157, repetido nas edições seguintes), estão registrados os primeiros lances da história cujo desenlace ocorreu agora, mais de duas décadas depois.


A extinção da obrigatoriedade do diploma foi concebida nos primórdios da ANJ (1980), depois da malograda greve de 1979, quando os acionistas das empresas de jornalismo finalmente sentaram-se à mesa para traçar um projeto de longo prazo para o setor.


Sob o pretexto de renovar as redações e prepará-las para o fim do regime militar, a Folha de S. Paulo capitaneou um movimento para acabar de facto com a regulamentação da profissão. A primeira manifestação pública desta cruzada foi protagonizada por Boris Casoy, então colunista da Folha, na última página da Veja.


Constituição de 88


Em 1985, quando a Comissão Provisória de Estudos Constitucionais (planejada por Tancredo Neves e implementada por José Sarney) começou a preparar uma espécie de rascunho para a nova Carta Magna, o jornalista Mauro Santayana, na qualidade de Secretário Executivo, vazou para a Folha a informação de que nele constava um item que acabaria com a obrigatoriedade do diploma para o exercício do jornalismo. A intenção de Santayana era conseguir as boas graças da Folha, sempre arredia à Comissão de Sábios.


A Folha abriu as suas baterias e, assim, a questão do diploma ganhou uma notoriedade injustificada. Não era matéria constitucional, mas desde então se tornou aspiração máxima da corporação empresarial da comunicação.


Não a preocupam os demais controles, licenciamentos e limites impostos pelo Estado. O lobby da comunicação sabe entender-se com o ente governamental. José Sarney é a prova viva desta convivência-dependência. O que parece insuportável é o espírito crítico instalado nas redações. Ou perto delas. A exigência do diploma nunca constituiu uma ameaça concreta. Mas convinha prevenir-se.