Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Plínio Bortolotti

‘Em Campo Grande, capital de Mato Grosso do Sul, o juiz substituto da 1ª Vara Criminal, Adriano Rosa Bastos, proibiu 12 veículos de comunicação do estado de divulgar informações sobre o processo contra um universitário, de 27 anos, acusado de ter cometido pelo menos cinco estupros entre julho e agosto deste ano. O ofício do juiz aos meios de comunicação proíbe a publicação de qualquer notícia sobre o caso, incluindo a data das audiências.

Na cidade de São Paulo, a juíza da 13ª Vara Cível, Tonia Yuka Kôroko, proibiu, por medida liminar, o jornalista Juca Kfouri de escrever textos que possam ser considerados ofensivos ao deputado estadual Fernando Capez (PSDB). Em caso de desobediência, a multa é de R$ 50 mil a cada ‘ofensa’. Kfouri recorreu, mas o desembargador Luiz Antônio de Godoy, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, confirmou a decisão. Antes de eleger-se deputado, Capez exercia a função de promotor de Justiça, tendo ganhado notoriedade na década de 1990 ao tentar afastar as torcidas organizadas dos estádios. Para mover a ação judicial contra o jornalista, Capez citou trechos do blog que Kfouri mantém no portal Uol.

Consultei três das principais entidades de jornalistas e empresários de jornais do país a respeito dessas medidas. Fiz as seguintes perguntas à Associação Brasileira de Imprensa (ABI), à Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e à Associação Nacional dos Jornais (ANJ): 1) Decisões desse tipo podem se tornar tendência na Justiça, de legislar sobre a liberdade de imprensa? 2) As ações configuram censura prévia? 3) Equivalem – no sentido de cercear a liberdade de imprensa – às indenizações desproporcionais aplicadas pela Justiça?

Para Maurício Azêdo, presidente da ABI, entidade que completará 100 anos em abril de 2008, as decisões ‘refletem a tendência da Justiça de primeira instância, por desinformação ou vocação totalitária, de restringir a liberdade de imprensa’. Segundo Azêdo, a Constituição foi ‘ofendida gravemente’, pois proíbe censura prévia. A mesma gravidade ele vê no ‘valor exorbitante das indenizações por dano moral decretadas pela Justiça’.

Júlio César Mesquita, vice-presidente da ANJ e responsável pelo Comitê de Liberdade de Expressão, diz que a entidade vê ‘com extrema preocupação esses casos em que o Poder Judiciário acata pedidos que visam a impedir previamente a divulgação de informações’. Mesmo que essas decisões venham a ser revogadas em instâncias superiores, como geralmente ocorre, ‘o mal já foi feito, pois a sociedade ficou privada de determinada informação durante algum período’. Para a ANJ, tais decisões são claramente inconstitucionais. Sobre as indenizações, Mesquita diz que ‘o verdadeiro jornalismo é responsável e deve se pautar pelo rigor na apuração das informações que divulga’. Se acontecer ‘de uma informação ou opinião divulgada pelos meios de comunicação se configurar numa calúnia ou ofensa, por decisão posterior da Justiça, é correto que haja algum tipo de penalidade’. Mas, ressalva, ‘o que não se pode admitir são indenizações absurdas, desproporcionais, que muitos meios de comunicação não têm condições de pagar’. Casos assim são chamados pela ANJ de ‘indústria do dano moral’, que, a exemplo da ‘censura prévia que vem sendo praticada pelo Poder Judiciário são extremamente danosas para a sociedade, pois induzem os meios de comunicação à autocensura’, conclui o vice-presidente da ANJ.

O presidente da Fenaj, Sérgio Murillo de Andrade, diz que, ‘infelizmente’, as decisões de São Paulo e Campo Grande podem indicar uma tendência da Justiça. Para ele, ‘na ausência de uma instituição de autocontrole, com a participação da sociedade e da própria imprensa, a Justiça assume indevidamente a tarefa de regrar a divulgação e o acesso público a conteúdos jornalísticos’. Ele diz que ‘a maioria dos países democráticos do mundo’ tem conselhos de imprensa, ‘semelhantes ao projeto da Fenaj, que defende a constituição de um Conselho Federal dos Jornalistas’. O Brasil, diz Sérgio Murillo, ‘precisa discutir, sem preconceitos, meios democráticos de assegurar a responsabilidade social da mídia’, ou o Judiciário continuará a ‘exorbitar suas funções constitucionais’. Para ele, a ‘Justiça vem reinstituindo o nefasto recurso da censura prévia’. Quanto às sentenças indenizatórias, Sérgio Murillo diz que os jornais e jornalistas têm de ter responsabilidade nas notícias publicadas, e que deve ser garantido ‘o direito constitucional de todo cidadão buscar reparar na Justiça eventuais danos morais ou materiais causados pela mídia e seus profissionais’. E conclui: ‘Somos contra a impunidade [para jornais e jornalistas], mas jamais iremos concordar com assédio judicial e muito menos com indústria da indenização, com valores arbitrários que, às vezes, inviabilizam a sobrevivência dos jornalistas ou das próprias empresas’.

Artigo 19

Estudo da ONG Article 19, divulgado em agosto, mostra o grande número de ações judiciais de indenização contra jornalistas e meios de comunicação no Brasil, que pode configurar ‘recorde mundial’. O levantamento teve como base pesquisa do portal Consultor Jurídico que, até o mês de abril, identificou 3.133 processos contra empresas e jornalistas. Segundo o relatório, vários casos de indenização por danos morais referem-se a investigações sobre corrupção, ‘tema de claro interesse público’, envolvendo políticos e juízes. ‘Essas são exatamente as pessoas que deveriam demonstrar maior tolerância ao escrutínio da mídia em razão da função que exercem’.

Criada em 1987, com sede em Londres, a Article 19 é uma entidade dedicada a lutar pela liberdade de expressão em todo o mundo. Seu nome remete ao artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos: ‘Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras’.

Veja aqui notas oficiais da ABI e ANJ sobre o assunto e trechos da Constituição Federal a respeito da liberdade de imprensa. O relatório completo do Article 19 poder ser lido aqui.