Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Uma batalha perdida e uma guerra por travar

A decisão do Supremo Tribunal Federal, derrubando a exigência de diploma específico para o exercício da profissão de jornalista, foi o coroamento de uma comédia de erros que merecia ser filtrada pelo talento superior de um Sérgio Porto. Infelizmente, já não existe quem consiga dar o tratamento adequado ao Festival de Besteiras que Assola o País, como fazia seu heterônimo Stanislaw Ponte Preta. Nem alguém capaz de transmitir fielmente o horror e o nojo que o Brasil oficial inspira nos homens civilizados, como o grande Glauber Rocha fez em Terra em Transe.

Reconhecendo de antemão não estar à altura da tarefa, tentarei cumpri-la assim mesmo. O pior é sempre a omissão.

Em tese, concordo plenamente com a avaliação feita há décadas por Paulo Francis: o jornalista precisa é de uma sólida formação cultural, principalmente nas áreas de história, sociologia, psicologia, política, antropologia, filosofia e artes. Já para o aprendizado das técnicas jornalísticas, bastaria um mês (dois, no máximo, para os menos brilhantes) num liceu de artes e ofícios.

Só que a formação de cidadãos, no sentido maior do termo, há muito deixou de ser priorizada pelas universidades brasileiras. Ensinam-se, exatamente, as técnicas, as ferramentas, as ninharias.

Por quê? Pelo óbvio motivo de que ao capitalismo atual não interessa formar indivíduos com capacidade crítica e visão universalizante, aptos a refletir sobre o conteúdo e as consequências de sua atuação, mas tão-somente apertadores de parafusos que cumpram as tarefas que lhes são designadas sem as contestarem.

O risco de ter o nome queimado

Então, não vejo o motivo de tanta obstinação da federação e dos sindicatos de jornalistas em defenderem diplomas que hoje são fornecidos a granel por instituições mercenárias.

Muito mais danosa aos jornalistas profissionais é a falsa terceirização contra a qual a federação e os sindicatos nem de longe mostraram empenho semelhante. Hoje, são raras as empresas de comunicação que registram seus funcionários fixos como os assalariados que são. Dão-nos como prestadores de serviços, obrigando-os a emitir mensalmente notas fiscais para receberem seus pagamentos. Um novo artifício é apresentá-los como sócios, com uma participação irrisória (coisa de 0,1%) no capital da empresa servindo para justificar retiradas (pro labore) de milhares de reais.

Esses acordos fraudulentos são simplesmente impostos a quem quer trabalhar em tais empresas, sob o pretexto de que as duas partes lucrarão com a burla à legislação trabalhista. É pegar ou largar. Quem pega, acaba recebendo um pouco mais do que auferiria com o registro em carteira, mas fica totalmente vulnerável aos caprichos da empresa. Pode ser expelido quando bem entenderem os patrões; quanto muito, pagam-lhe um mês a mais. E, se sofrer um acidente ou doença incapacitante, terá de se virar por sua própria conta. Capitalismo mais selvagem, impossível.

As vítimas dessas chantagens e arbitrariedades podem, é claro, recorrer à Justiça trabalhista. Eu o fiz, em fevereiro de 2004. Estou esperando há exatos 64 meses que a burocracia insensível e letárgica faça valerem meus direitos; ainda não existe solução à vista. Se dependesse unicamente disso, estaria morando debaixo da ponte.

Ademais, quem faz o que é certo corre sempre o risco de ter seu nome queimado no mercado. A informação é repassada às outras empresas que atuam naquele segmento e as portas se fecham.

Disto decorre que dificilmente os profissionais jovens ousam buscar seus direitos na Justiça, embora na maioria dos casos a sentença favorável seja favas contadas – mas, claro, somente no final da linha, após mil e umas manobras protelatórias.

E a insegurança quanto à continuidade de sua atuação na empresa faz com que a maioria dos jornalistas se submeta a trair seu compromisso com o resgate e a disponibilização da verdade, limitando-se a servir como correia de transmissão das mentiras patronais (ditabrandas, fichas falsas, unilateralidade no tratamento de episódios como os de Cesare Battisti e da bestialidade policial na USP etc.).

O medo é mau conselheiro

Afora acumpliciarem-se com a verdadeira blindagem que foi estabelecida contra as versões/visões alternativas e aqueles que as expressam, os jornalistas amedrontados estão também consentindo com a superexploração da sua jornada de trabalho.

No caso da grande imprensa, isto prejudica tanto a eles quanto aos leitores:

– os repórteres cumprem pautas demais;

– não as apuram devidamente;

– fazem quase todas as entrevistas por telefone ou e-mail, sem o olho-no-olho que facilita o desmascaramento dos mentirosos e manipuladores;

– comem na mão de assessorias de comunicação, aproveitando o material que delas recebem e os serviços por elas prestados, sem levarem em conta que tais empresas estão longe de ser confiáveis, pois defendem os interesses dos seus contratantes e não o interesse público;

– cumprem horas extras que dificilmente são pagas e que, com a sequência e o acúmulo, acabam acarretando perda de qualidade do seu trabalho.

Chega a ser um escárnio que, depois de não reagirem à altura quando nossa profissão marchava para tal aviltamento, a federação e os sindicatos estejam agora movendo céus e terras para tentarem preservar um diploma cuja obrigatoriedade não impediu que chegássemos ao fundo do poço. Por outro lado, isso é compreensível. A proporção de jornalistas sindicalizados diminui ano a ano, mesmo porque a categoria está preferindo aceitar os descalabros do que lutar contra eles onde a luta tem de obrigatoriamente começar: no ambiente de trabalho. O medo é mau conselheiro.

Um exército de reserva permanente

Então, se não conseguem levantar os jornalistas contra a falsa terceirização, as péssimas condições de trabalho e o descumprimento de seu compromisso com a verdade por força das imposições e intimidações patronais, os sindicatos sabiam que todos os apoiariam nessa cruzada para limitar o ingresso de mais competidores num mercado que já tem oferta excessiva de mão-de-obra.

Quem luta pelo pouco acaba conseguindo nada. Bem melhor era a postura dos estudantes parisienses em 1968: ‘Sejamos realistas, peçamos o impossível!’

Quanto aos motivos dos patrões, também são tudo menos nobres. O que o Sindicato das Empresas de Rádio e Televisão de São Paulo visava, ao acionar o STF, era a fragilizar ainda mais a categoria, não só para que aceitasse menor remuneração e piores condições de trabalho, como também para que admitisse resignadamente a presença cada vez mais acentuada de celebridades (mesmo que boçais e analfabetas) exercendo funções restritas a jornalistas.

As entidades que hoje comemoram a decisão, como a Associação Nacional de Jornais e a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV, dão um bom referencial do que sejam os donos da mídia: não só dizimaram o jornalismo, como agora salgam a terra que o produzia, na esperança de que nela nada mais brote. Apesar de já terem quebrado a espinha da categoria, fazem questão de reduzi-la a uma situação mais degradante ainda. Querem ter um exército profissional de reserva permanentemente à sua disposição, para manterem ainda mais aterrorizados e submissos os que os servem.

O ‘especialista em ser jornalista’

E é chocante que ministros do STF tenham engolido, ou fingido engolir, a falácia de que a exigência do diploma atentava contra a liberdade de expressão. A imprensa burguesa sempre concedeu todos os espaços possíveis e imagináveis aos porta-vozes da burguesia e aos defensores das posições sintonizadas com os interesses capitalistas. Quanto aos inimigos, nunca a tiveram. Até mesmo os direitos de resposta e de apresentar o outro lado não vêm sendo verdadeiramente respeitados há muitos anos.

A liberdade de expressão é concedida pela grande imprensa a quem expressa aquilo com que ela concorda. Trabalhar ou não em seus veículos dá no mesmo. Neles, o jornalista escreve o que lhe mandam ou o que lhe permitem, não o que ele quer.

Outra bobagem foi a afirmação do procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, segundo o qual ‘muitas notícias e artigos são prejudicados porque são produzidos apenas por um jornalista especialista em ser jornalista, sendo que em muitos casos essa informação poderia ter sido produzida por um jornalista com outras formações, com formação específica em medicina, em botânica’. Nada impedia que, havendo um acontecimento relevante na área de medicina ou botânica, um especialista fosse contratado para escrever um artigo a esse respeito, apresentando o seu ponto-de-vista de autoridade no assunto.

Quanto a uma reportagem, envolvendo entrevistas, pesquisas, estatísticas, checagens etc., um ‘especialista em ser jornalista’ certamente se desincumbirá melhor da tarefa, pois tem o hábito de dar peso equivalente às várias correntes com avaliações diferentes de um mesmo fato ou fenômeno. Ou seja, o médico e o botânico tendem a, até involuntariamente, favorecer a posição que compartilham. O jornalista só se preocupa em expor corretamente as várias posições existentes, deixando ao leitor a conclusão.

Porque nada tenemos, lo haremos todo!

Piores ainda foram os disparates ditos pelo relator Gilmar Mendes (logo quem!). Por exemplo:

‘A profissão de jornalista não oferece perigo de dano à coletividade tais como medicina, engenharia, advocacia. Nesse sentido, por não implicar tais riscos, não poderia exigir um diploma para exercer a profissão.’

O que acontece à coletividade se um jornalista incompetente cria pânico no mercado? Milhares e milhares são lesados, empresas quebram, trabalhadores ficam na rua da amargura, velhinhos perdem seu pé-de-meia. E mesmo quando a honra de um cidadão é injustamente atingida, isto não é grave? Os proprietários da Escola Base não estiveram próximos de ser linchados devido ao estardalhaço feito a partir de meras suspeitas de pedofilia? Não há pessoas que morrem ou se matam quando são vítimas desses enganos?

Enfim, a constatação de que a má-fé e/ou inconsequência permearam essa decisão não vai alterá-la nem aumenta as chances de que venha a ser revogada. Pelo contrário, tudo indica que esteja aí para ficar. Mas, a luta para restabelecermos a dignidade da profissão de jornalista não terminou, mesmo porque essa nunca foi a principal trincheira. Importante mesmo é nos compenetrarmos de que jornalismo, muito mais do que profissão, sempre foi missão: um compromisso de tornar a verdade acessível aos que não têm os meios para buscá-la por si mesmos.

Num país com carências tão dramáticas e situações tão aflitivas, conta muito mais o destino do nosso povo que o de nós mesmos. Ou deveria contar. Fomos impedidos de cumprir nossa missão e nos resignamos à impotência. Com isto, nossa profissão também foi levada de roldão e está cada dia mais desvalorizada. Se quisermos reverter esse processo, teremos de dar os passos certos. Não olharmos para nosso umbigo e tentarmos sensibilizar a comunidade para nos ajudar a defender nossos interesses. Mas sim, fazendo que os interesses da comunidade e os nossos voltem a coincidir.

Quando um terremoto destruiu a infra-estrutura com que o Chile contava para a realização do Mundial de futebol de 1962, o grande dirigente Carlos Dittborn Pinto descartou a desistência, lançando a frase célebre que motivou seu povo a empreender um esforço descomunal para honrar o compromisso assumido: ‘Porque nada tenemos, lo haremos todo!

Os jornalistas, nada temos agora, mas podemos reconstruir tudo se reencontrarmos a dignidade e a combatividade que não nos faltou na luta contra a ditadura militar – quando, aliás, nossos inimigos diferiam nos métodos, mas eram, essencialmente, os mesmos.

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Jornalista e escritor, mantém os blogs http://naufrago-da-utopia.blogspot.com/ e http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/