A última vez que se escolheu um papa – aliás, dois, porque o primeiro morreu aos 33 dias de pontificado – foi em 1978, quando a maioria dos atuais jornalistas brasileiros que participaram de alguma forma da cobertura da eleição de Bento 16 provavelmente ainda não eram nem projeto de foca.
Começou por aí o desafio de contar da melhor forma a história de um evento de interesse mundial cuja mais recente versão se deu há 27 anos – e ainda por cima para um país onde o catolicismo, embora em queda ininterrupta desde 1950 e acelerada desde 1980, ainda é, de longe, a religião predominante, com o maior número de fiéis do mundo.
Sem falar que o trabalho da mídia passou nessas quase três décadas por uma mudança muito mais radical do que a substituição da pena pela máquina de escrever, nas redações, ou do advento do fotolito e da composição a frio, nas oficinas.
‘Quando João Paulo II foi eleito’, comentou David Carr sábado passado, 23, no New York Times, ‘não havia imprensa livre na Polônia, muito menos a internet e a cobertura 24 horas por dia das TVs a cabo, obrigando a mídia a confiar nas biografias oficiais do Vaticano, acompanhadas de entrevistas aparentemente aleatórias com cidadãos poloneses’. ‘Muito diferente é o mundo da mídia que saúda Bento’, escreveu ele no artigo ‘A mídia e o Vaticano: metas opostas’.
As implicações são claras. Daquela vez se tratava de descobrir, com as mencionadas limitações políticas e técnicas, quem era esse tal de Karol Wojtyla – a respeito de quem a desinformação geral era agravada por ser ele polonês e não italiano –, por que o colégio cardinalício tomou tão extraordinária decisão e o que se poderia esperar do seu pontificado.
Desta vez, a imprensa banhada em olor de tecnologia – os repórteres credenciados recebiam os alertas do Vaticano nos seus celulares – tinha diante de si um ilustre conhecido, ‘que entrou papa e assim saiu do conclave’, conforme o fecho glorioso, como se diz em jornalês, de um texto de Marcelo Godoy, no Estado de S.Paulo de quarta-feira, graças a uma votação em que ‘deu ao mesmo tempo a lógica e a zebra’, na bem empregada terminologia esportiva do colunista Luis Fernando Verissimo, no Globo de domingo.
Avaliação e garimpo
O muito que já se sabia sobre o bávaro Joseph Ratzinger – as expressões Panzerkardinal e Rottweiler aus Gott (‘cardeal-tanque’ e ‘rottweiler de Deus’), cunhadas por seus opositores da geralmente arquiliberal Igreja alemã, têm extensa quilometragem – empurrou a grande imprensa estrangeira a duas principais e complementares direções.
De um lado, privilegiar a avaliação crítica desse muito-que-já-se-sabia, no plano das origens, formação intelectual e carreira acadêmica do agora Bento 16; de sua ascensão na Cúria; de suas palavras e atos como braço direito do papa que o nomeara prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (sucessora, todo mundo lembrou, da Santa Inquisição).
Isso, entre outras coisas, porque as suas idéias sobre a religião e o mundo, quando foi levado a Roma pela primeira vez, em 1962, para ser uma espécie de consultor teológico do seu compatriota quase cego cardeal Josef Frings, no Concílio Vaticano II, ele próprio excomunhou, aterrorizado pela rebelião estudantil de 1968 contra a Autoridade.
E porque o Ratzinger pós-1968, já crítico militante dos ‘excessos’ conciliares, disse, escreveu e principalmente fez coisas que o indispuseram profundamente com a parcela do catolicismo aggiornata em face das normas clericais, do conflito social ou dos novos padrões relativos à família e à sexualidade.
Ao liderar a reação conservadora da Santa Sé e ao concentrar ali o poder sobre essa que é a maior corporação do globo, o cardeal entrincheirou o politburo de João Paulo II – de quem, já se disse, era o ‘tira mau’ – e dividiu os católicos pelo mundo afora.
Nada mais notícia, em sentido amplo, do que isso, na hora em que, por maioria esmagadora de votos, em apenas dois dias e quatro escrutínios, chega a papa um fundamentalista assumido, prometendo liderar uma cruzada contra ‘uma ditadura do relativismo que não reconhece nada como definitivo e deixa como última medida somente o próprio eu e as próprias vontades’ – ou seja, as condutas fundadas no livre-arbítrio e na consciência de cada qual.
O segundo caminho da imprensa foi garimpar, ou revisitar, como se diz hoje em dia, o muito-que-já-se-sabia, a começar da adolescência de Ratzinger, como membro da Juventude Hitlerista e soldado da Wehrmacht – embora só a talentosa torpeza dos mancheteiros do Sun de Londres, para provável desgosto até de seu inescrupuloso dono, Rupert Murdoch, tenha incluído a passagem do futuro cardeal pela ‘Hitler Youth’ no título que anunciava o ‘Papa Ratzi’.
Detalhe revelador
Eis, em suma, a pauta que o passado, menos ou mais recente, praticamente impôs aos jornais na terça-feira da fumaça que custou a branquear no Vaticano. Se assim é, ela contém os critérios talvez mais apropriados para avaliar as 40 páginas de cadernos especiais – sem contar, portanto, as primeiras páginas, os editoriais, as cartas de leitores e demais textos em outros espaços – oferecidos no dia seguinte pelos três grandes: Folha de S.Paulo (14 páginas), Globo (16) e Estado (10).
Dessa tentativa de saber se o leitorado brasileiro recebeu a mercadoria a que os seus reais lhe dariam direito se exclui um jornal de relevo, o Valor, mas não a ponto de deixar de registrar que em uma única página e três textos, um dos quais do Financial Times, o diário econômico deu conta do recado, com admirável poder de síntese.
Por maior que seja o respeito com que a imprensa deve tratar as religiões, escreveu o já citado David Carr, no NYT, ‘ela também tem que fazer o seu serviço: discernir e descrever os pés de barro de toda figura pública’. Ainda mais, acrescente-se, quando a megainstituição que essa figura comanda aprendeu a competir com qualquer outra em matéria de uso da mídia para se promover a si e aos seus.
A propósito, o chamado detalhe revelador, captado sem querer pela câmara do cinegrafista do Vaticano que acompanhava Bento 16 aos aposentos papais, fechados desde a morte de João Paulo II. O mundo inteiro pôde ver a solene abertura, a chave, da porta que lhes dá acesso. Destrancada a porta e enquanto por ela entrava o novo pontífice, foi possível ver de relance ao fundo, desprevenido, o fotógrafo do Vaticano que registrava a cena do lado de dentro – onde não deveria haver viva alma.
De quebra, lembre-se ainda que em 2002 o guardião da fé católica disse o seguinte sobre os escândalos de pedofilia na Igreja: ‘Estou pessoalmente convencido que a constante presença na imprensa dos pecados de padres católicos, especialmente nos Estados Unidos, é uma campanha planejada já que a porcentagem dessas ofensas entre padres não é maior do que em outras categorias e talvez seja até menor’. Vai ver vem daí a leniência com que Ratzinger tratou os pedófilos da categoria eclesiástica.
Segundo a repórter Laurie Goodstein, no NYT de sábado – numa demonstração do que pode significar para um jornalista americano, no caso, descrever os pés de barro de uma figura pública – ‘durante os últimos quatro anos o homem que agora é o papa Bento XVI teve mais responsabilidade do que qualquer outro cardeal de decidir se e como seriam punidos os padres católicos acusados de abuso sexual’.
Editoriais divergentes
Em geral, nenhum dos jornalões brasileiros fez feio ao apresentar o sucessor de João de Deus com os devidos pertences. Mas houve importantes variações de abordagem e ênfase. Começando pela primeira página: enquanto a Folha falou em ‘conservador alemão’ já na manchete, e o Globo em ‘conservador puro e duro’, além de ‘Panzer Kardinal’ no título de uma chamada e ‘Divisão no Brasil’ em outro, o mais perto da controvérsia que o Estado se permitiu chegar está na última frase da chamadona: ‘Na Alemanha, a nomeação foi recebida com considerável reserva’.
Já o Globo não precisava dizer logo de saída que Ratzinger fala 10 línguas como exemplo de sua ‘consistência intelectual’. Por esse critério, Silvia Broome, a personagem vivida por Nicole Kidman no filme A intérprete teria um intelecto mais notável do que o seu rosto.
As discrepâncias das primeiras páginas se repetiram nos editoriais. A Folha (‘Bento 16, opção ortodoxa’) disse que a sua eleição ‘representa uma inequívoca vitória da ala mais conservadora da Igreja Católica’. Já o Estado (‘O sucessor natural de Wojtyla’) não viu no conclave ‘vencedores e vencidos’. O Globo (‘Enigmas romanos’) se perguntou ‘se este seria o nome mais indicado para atender às atuais expectativas de católicos e não católicos em face da Igreja de Roma’.
Nessa mesma linha, a Folha sustentou que os cardeais fizeram ‘uma aposta de risco’, ao escolher um ‘europeu, centralizador, arquiconservador’, responsável pela ‘grande proximidade (de João Paulo II) com prelazias tradicionalistas, como o Opus Dei’.
Se dos três diários a Folha foi o mais crítico – lembrando ainda que Ratzinger, além de próximo de um ‘fundamentalismo católico’, acredita que o catolicismo é superior às outras igrejas cristãs, ‘e mais ainda sobre outros credos’ –, o Estado foi o mais ‘católico’.
Afirmando que em 1978 foi Ratzinger quem propôs o nome de Wojtyla, como ‘alguém com autoridade moral para conter os excessos e capaz de produzir uma nova evangelização’, o jornal opinou: ‘O rebanho católico quer um timoneiro de mão firme no comando da barca de Pedro’.
No entanto, uma enquete do Portal Estadão, na véspera, deu que 68% dos respondentes não gostaram da escolha do papa (32% gostaram).
Dezessete a sete
Valham o que valerem como termômetro da opinião dos brasileiros, as cartas dos leitores publicadas na quarta-feira foram pelo mesmo caminho. No Estado, 4 a 3 contra Ratzinger. Na Folha, 3 a 1, também contra. No Globo, que dá mais espaço a quem o lê, 10 a 3. Ao todo, 17 a 7. A frustração com o fato de D. Claudio Hummes ter saído do conclave tão cardeal como entrou deve ter ajudado.
Fora dos cadernos especiais, a Folha publicou um artigo do professor gaúcho Denis Lerrer Rosenfield – mais conhecido do público por seus textos antipetistas – favorável a Ratzinger, enquanto, no Globo, Miriam Leitão traçou na sua coluna diária ‘Panorama Econômico’ um sombrio panorama da Santa Sé e do seu novo ungido.
Diferentes como água e vinho, os dois textos mereciam sair lado a lado em algum lugar, para o leitor vislumbrar algumas das coisas que vão pela cabeça de partidários e adversários do ‘pastor alemão’, como o apelidou esses dias, com requintada contundência, um jornalista inglês. (No gênero, ninguém os supera.)
Mas foi nos artigos e reportagens dos especiais que cada matutino disse a que veio – sempre pelo critério de usar o tal do muito-do-que-já-se-sabia como ponto de partida para uma incursão jornalística ao mais longe e ao mais fundo da momentosa personagem.
Desse ângulo, o forte do alentado e informativo caderno do Globo foram os artigos de Renato Galeno, um sobre ‘a formação de um papa’, outro sobre a ‘linha-dura’ do interlocutor intelectual mais próximo de João Paulo II, além das entrevistas com os suspeitos de sempre – os teólogos Hans Küng e Leonardo Boff, à esquerda; o cardeal D. Eugenio Salles, à direita; e o vaticanólogo Juan Arias, ao centro. [Arias foi entrevistado também pela Folha. Ela e o Estado deram matéria com Küng e Boff.] Palmas ainda pela idéia de transcrever o excelente artigo ‘Defensor do anti-relativismo’ do colunista E. J. Dionne, Jr., do Washington Post.
A Folha foi quem mais se empenhou em apontar o que seriam, para um liberal, os ‘pés de barro’ de Ratzinger. Vejam-se, por exemplo, os títulos ‘Homilia de Ratzinger defende o fundamentalismo’ e ‘Conservadorismo nunca foi dissimulado’, e o destaque dado à reação da Opus Dei, sob o título em 3 colunas ‘Grupo Opus Dei manifesta ‘grande felicidade’ pela eleição de Bento 16’. O melhor do caderno está no perfil de Ratzinger assinado pelo correspondente do La Repubblica no Vaticano, Marco Politi, e na pensata do seu enviado especial Igor Gielow sobre as afinidades ideológicas entre Ratzinger e George W. Bush (‘Onda conservadora ocidental é reforçada’).
O Estado fez uma festa editorial e gráfica com Bento 16. ‘Entusiástico’ talvez seja um bom adjetivo para qualificar o seu caderno, embora ali se registrasse que a indicação ‘surpreende’ a Alemanha, que os franceses esperavam um papa ‘mais ligado a questões sociais’ e que ‘Ratzinger presidia a versão moderna do Tribunal do Santo Ofício’. À maneira da Folha com Dionne, o Estadão teve a boa idéia de tomar do Guardian o comedido comentário do seu especialista em religião Stephen Bates (‘Uma aposta no fim da ditadura do relativismo’), que por sinal já estava na edição online do jornal londrino quando ainda se ouvia o eco dos sinos do Vaticano.
Letras garrafais
Seis palavras – ‘Eu não sou o grande inquisidor’ – deram o tom da abordagem do Estado. Não apenas por endossar a imagem positiva que Ratzinger quis que se tivesse dele, no sermão de Sexta-Feira Santa do ainda cardeal, mas por compor o mais exuberante (e definitivamente extravagante, para os padrões da casa) título que se há de ter visto naquele dia em toda a imprensa mainstream do mundo.
Dele se diria, no tempo em que Ratzinger ainda estava no seminário, que era ‘berrante’, ‘estampado em letras garrafais’. Ou não? Atravessando a dupla central, tem 6 cm de altura na caixa alta (alguns pontos a mais do que a manchete do caderno, maior, por sua vez, do que a da primeira página). O texto que se lhe segue é equilibrado e objetivo. Mas vale o que está escrito no titulaço.
A simpatia pelo novo papa se faz sentir no caderno do começo ao fim. Na última página, sob o título ‘O dia em que conheci Ratzinger’, e abraçando uma foto de bom tamanho, o leitor encontra um depoimento pessoal do ex-correspondente da Veja em Roma e atual colunista de gastronomia do Estado, J. A. Dias Lopes. Depois de descrever o seu encontro fortuito com o cardeal, na Áustria, em 1996, o jornalista conclui: ‘Sendo homem inteligente e culto, além de grande teólogo, deverá ser um bom papa’.
A previsão não passaria sem o elogio de outro colaborador do jornal, Carlos Alberto Di Franco, que mesmo quando escreve sobre religião, como no artigo de segunda-feira (‘Bento XVI, o papa da continuidade’) em que cita Dias Lopes, não se identifica como adepto da Opus Dei.
Não é importante, mas não custa mencionar, até em honra do ditado de que Deus está nos detalhes. No seu texto, Dias Lopes lembra que pediu ao fotógrafo que o acompanhava, Gladstone Campos, que documentasse o encontro com o cardeal. Uma das fotos que Gladstone fez ilustra o artigo. Mas o jornal a creditou a ‘Eduardo Nicolau/AE’.
A Turquia distante
Fecha parêntese. Os três jornais deram, cada qual a seu modo, as informações essenciais sobre o pensamento de Ratzinger. A Folha e o Estado, especialmente, deram ao todo, com destaque, 33 aspas do cardeal. Elas justificam a matéria da Folha ‘Conservadorismo nunca foi dissimulado’.
Permitem saber que ele acha que o mundo muçulmano não está totalmente errado quando censura o Ocidente pela decadência moral; que o homossexualismo é, ‘mais ou menos’, uma maldade moral intrínseca; que o uso da camisinha para prevenir a Aids seria um caminho ‘não suficientemente comprovado no aspecto técnico’; que a clonagem é uma ameaça mais perigosa que as armas de destruição em massa; que as outras igrejas cristãs não devem se considerar irmãs da Igreja Católica porque esta é a mãe de todas; que os shows de rock se opõem ao culto cristão.
Mas nenhuma dessas citações soltas e íntegras de textos de Ratzinger têm importância política comparável, agora que é papa, ao seu ‘veto’ ao ingresso da Turquia na União Européia, para ele ‘um erro enorme’ e ‘uma decisão contra a história’. Os turcos, sugeriu, melhor fariam se se alinhassem a outras nações muçulmanas (declarações de 2004).
O pano de fundo disso é a concepção da Igreja de que a Europa é filha do cristianismo, daí a famosa ‘civilização ocidental e cristã’, cujas origens remontam a Carlos Magno, coroado pelo papa Leão III imperador da Europa, no ano 800, a que se seguiu o Sacro Império Romano Germânico. Se dependesse dos partidos democrata-cristãos, a Constituição da União Européia consagraria o seu caráter cristão.
A questão está mencionada, pelo menos uma vez, nos cadernos papais da grande imprensa brasileira, mas, aparentemente, nem a Folha, nem o Globo, nem o Estado acharam que ela merecia mais do que teve. Já o NYT dedicou-lhe todo o segundo e robusto parágrafo do seu editorial sobre Bento 16.
Quando poucas coisas são mais importantes do que reconciliar o mundo islâmico com o Ocidente não-islâmico, ‘seria extremamente perturbador se o papa se tornasse uma cunha desnecessária’, observou o Times. ‘Seria também um distanciamento da herança de João Paulo II – o qual, com todo o seu conservantismo doutrinário, era conhecido por estender a mão aos povos de outras crenças.’
À primeira vista, o leitor brasileiro está a anos-luz do problema da entrada da Turquia na União Européia. Mas uma das funções da imprensa em países como o Brasil é encurtar, pela informação e a análise, as distâncias entre o seu público e o mundo exterior. E nada melhor do que um acontecimento do porte da sagração de um novo papa para pôr no radar do noticiário assuntos tidos como remotos.
Afirmação contestada
O que remete ao nazismo na biografia do papa – filho de um policial do reduto nazista da Bavária que tinha a peculiaridade de não gostar de Hitler.
O Estado tratou do assunto em dois parágrafos no perfil achatado pelo megatítulo que já se comentou. No rodapé cronológico, deu a conhecida foto do recruta Ratzinger, em 1943, mas omitiu o ano de 1941 de sua falada filiação à Juventude Hitlerista. A omissão se repete na cronologia da Folha.
No Globo, a ‘polêmica’ mereceu matéria à parte. Nela se lê, como em toda parte, que, sob o nazismo, todo alemão ao completar 14 anos tinha de se inscrever na Hitlerjugend, onde se ensinava aos rapazes o culto ao Fürher e o credo monstruoso do regime. O texto acrescenta, porém, que segundo John Allen Jr., o biógrafo de Ratzinger, ele jamais participou de uma reunião do movimento. Faria diferença se ele tivesse participado?
Já a Folha, na matéria ‘Na Alemanha, de soldado a teólogo’, informa que ele ‘foi dispensado do movimento por causa de sua intenção de se tornar padre’. De fato, em 1939, aos 12 anos, Joseph tinha entrado para um seminário. [Nas edições dessa quarta-feira, nenhum jornal explicou direito o que o fez querer ser padre. No sábado, o Estado publicou um resumo da matéria do NYT segundo a qual tudo começou com o deslumbramento do menino Joseph, de 5 anos, com os trajes principescos de um cardeal que visitava a sua aldeia.]
A Folha lembra que ‘Ratzinger disse em entrevistas subseqüentes que, embora fosse contrário ao nazismo, ele não pôde opor-se ao regime abertamente – uma afirmação contestada por alguns especialistas em Segunda Guerra Mundial’.
Está-se em terreno pantanoso. No dia da eleição, o jornal israelense Haaretz ouviu de entrevistados que não passaria pela cabeça de um judeu que Ratzinger tivesse simpatizado com o nazismo ou sido anti-semita. Mas os mesmos entrevistados contrastavam a militância antinazista do polonês Karol Wojtyla com o fato de seu sucessor ter servido o exército alemão [do qual desertou pouco antes do fim da guerra, correndo o risco de ser fuzilado sumariamente].
Rígida ortodoxia
O especialista em religão do Guardian, Stephen Bates, diz no artigo transcrito pelo Estado não ser estritamente verdadeira a alegação de Ratzinger de que não poderia ter evitado o serviço militar naquelas circunstâncias. ‘Outros o fizeram’, pondera Bates, ‘e talvez ele pudesse ter invocado a sua condição de seminarista’ para ser dispensado.
Talvez. Para julgar o comportamento alheio em situações-limite, só passando por elas – o que os jornalistas às vezes parecem ser os primeiros a esquecer. Têm razão, por isso, os alemães furiosos com a ‘nazificação’ de Ratzinger na imprensa inglesa, citados pela correspondente do Globo em Berlim, Graça Magalhães-Ruether.
Uma coisa, porém, se podia dizer – não propriamente sobre o que o papa fez ou deixou de fazer, debaixo da mais feroz das tiranias, mas sobre como a teologia de Ratzinger julgaria o seminarista Ratzinger.
E quem o disse não foi nenhum jornal brasileiro, mas o Independent de Londres: ‘A rígida ortodoxia católica que ele defende ensina que não existe justificativa para a ausência de culpa por cometer um pecado, mesmo que seja o da omissão’.
Eis um juízo sobre o papa de 78 anos que recusa a pecha de ‘inquisidor’. Outros juízos, mais benignos, têm saído na imprensa brasileira. Por isso, se é verdade que, apesar do muito-que-já-se-sabia sobre Ratzinger, ‘ainda não sabemos o que habemus’, na expressão magistral de Verissimo, domingo no Globo, durante longo tempo ainda a imprensa terá o que garimpar e avaliar a respeito de Benedictus XVI. Melhor que o faça a frio.
[Texto fechado às 17h59 de 25/4]