Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Quando a guerra acabar…

Abre parêntese: há momentos – felizmente raros – em que a história pessoal se impõe às percepções conjunturais e o relato na primeira pessoa, embora singular, parcial, às vezes suspeito, sobrepõe-se à narrativa impessoal, ampla, genérica. Fecha parêntese.

O descaso e os indícios de esquecimento que na sexta-feira (8/5), rodearam os setenta anos do fim da fase europeia da Segunda Guerra Mundial sobressaltaram. O ano de 1945 pegou-me com 13 anos e a data de 8 de maio incorporou-se ao meu calendário íntimo e o cimentou definitivamente às efemérides históricas que éramos obrigados a decorar no ginásio.

Seis anos antes (1939), a invasão da Polônia pela Alemanha hitlerista – e logo depois pela Rússia soviética – empurrou a guerra para dentro da minha casa através dos jornais e do rádio: as vidas da minha avó paterna, tios, tias, primos e primas dos dois lados corriam perigo. Em 1941, quando a Alemanha rompeu o pacto com a URSS e a invadiu com fulminantes ataques, inclusive à Ucrânia, instalou-se a certeza: foram todos exterminados.

A capitulação da Alemanha tornara-se inevitável, não foi surpresa, sabíamos que seria esmagada pelos Aliados. Nova era a sensação de paz, a certeza que começava uma nova página da história e perceptível mesmo para crianças e adolescentes A prometida quimera embutida na frase “quando a guerra acabar” tornara-se desnecessária, desatualizada.

A guerra acabara para sempre. Inclusive para nós brasileiros, os únicos latino-americanos que foram ao Velho Mundo ensinar que o ódio não era a solução, sobretudo o ódio aos “diferentes” e “inferiores”. Enquanto os destacamentos da Força Expedicionária (FEB) e da Força Aérea Brasileira (FAB) retornavam da Itália e eram delirantemente recebidos na Avenida Rio Branco, da ex-capital federal, matutinos e vespertinos – mais calejados do que a mídia atual – nos alertavam que a guerra continuava feroz não apenas no Extremo Oriente, mas também na antiquíssima Grécia, onde guerrilheiros de direita e de esquerda, esquecidos do inimigo comum – o nazifascismo – se enfrentavam para ocupar o vácuo de poder deixado pela derrotada barbárie.

Sete décadas depois – porção ínfima da história da humanidade –, aquele que foi chamado Dia da Vitória e comemorado loucamente nas ruas do mundo metamorfoseou-se em Dia das Esperanças Perdidas: a guerra não acabou. Os Aliados desvincularam-se, tornaram-se adversários. A guerra continua, está aí, espalhada pelo mundo, camuflada por diferentes nomenclaturas, inconfundível, salvo em breves hiatos sem hostilidades, porém intensos ressentimentos.

Foto de  Alfred Eisenstaedt, captada em 14/8/1945, na Times Square, em Nova York, e publicada na revista americana 'Life'

Fim da guerra no Pacífico: foto de Alfred Eisenstaedt captada em 14/8/1945, na Times Square, em Nova York, e publicada na revista americana ‘Life’

Modelo de paz

Gerenciadora da memória, nossa imprensa deixou escapar um marco importantíssimo na história da humanidade. Deixou para o dia seguinte o registro álgido das solenidades, passou para as gerações seguintes a sensação de que nada de importante acontecera e que a História é um mero conjunto de histórias encerradas. Sabemos que não é.

A Guerra Fria foi quentíssima, continua acesa, sem ideologias, mas com bandeiras tacanhas, esfarrapadas, ainda mais ensandecidas. As Guerras Santas acirraram-se. A deportação de povos inteiros iniciada ainda na Primeira Guerra Mundial com o genocídio armênio e seu mortífero aperfeiçoamento na Segunda Guerra Mundial com o Holocausto dos judeus europeus continua até hoje. Os sucessivos extermínios na África por razões tribais ou religiosas liquidam milhões de inocentes e produzem êxodos e naufrágios que convertem o Mediterrâneo, berço da civilização ocidental, num silencioso memorial de calamidades.

Se a fugaz promessa e a brevíssima paz do 8 de maio não mereceram as devidas comemorações e revivescências, a certeza de que as guerras são contínuas, infindáveis, deveria ser constatada aos brados. Como advertência de que não basta suspender tiroteios ou obrigar vencedores e vencidos a sentarem-se juntos, em pé de igualdade, para assinar uma papelada inútil.

Indispensável extirpar os motivos que levam à loucura nações e civilizações aparentemente sábias e sossegadas. França e Alemanha são admiráveis exceções que não podem ser esquecidas. Compreenderam que conflitos entre nações são transbordamentos de conflitos internos que democracias desleixadas e a demagogia dos canalhas permitem magnificar e espalhar-se.

A Guerra Fria nos impôs a trágica experiência da ditadura militar. Outras guerras distantes poderão nos aproximar e enfiar em confrontos indesejados. Guerras podem começar como casos de polícia, vitrines quebradas e espancamentos – a Noite dos Cristais, a Kristallnacht, na Alemanha de 1938 está aí para nos lembrar que um quebra-quebra pode desembocar em catástrofes além-fronteiras.

Pivôs centrais de cinco catástrofes europeias e mundiais (a partir do século 17 até o 20), França e Alemanha deveriam servir de modelo para construir a paz efetiva, real, funcional.

“Quando a guerra acabar” é o título de um sonho cabível, perfeitamente realizável. Exige apenas a obrigação de lembrar e esperar.

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