Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Abutres amadores e as continhas

Inventados para dar segurança aos trabalhadores e ao mesmo tempo financiar bons negócios, os fundos de pensão têm-se transformado no Brasil, com notável frequência, em sumidouros de dinheiro de associados e de patrocinadores. Vários dos maiores fundos são patrocinados por empresas estatais, comandados por diretores indicados politicamente e sujeitos a interferência governamental. “Déficit de 43 grandes fundos de pensão atinge R$ 22 bilhões”, informou o Valor Econômico na edição de 2, 3 e 4 de maio. “Fundos de pensão e bancos têm perdas de R$ 2,5 bi com a Sete Brasil”, noticiou o Estado de S. Paulo no sábado seguinte (9/5).

As 43 entidades citadas pelo Valor administram 42 planos públicos e 37 privados, sendo 44 com benefício definido e 35 baseados em contribuição variável. Um dos maiores fundos, o Postalis, criado para atender aos funcionários dos Correios, teve no ano passado uma perda de R$ 5,6 bilhões. Em sua carteira havia aplicações no Grupo EBX, de Eike Batista, e em papéis lastreados na dívida argentina e em títulos da empresa petrolífera venezuelana PDVSA.

Os bancos e fundos de pensão com recursos aplicados na Sete Brasil meteram-se numa aventura liderada pela Petrobras. A Sete Brasil foi fundada para atuar como parceira na exploração do pré-sal, produzindo sondas. Desde novembro do ano passado, segundo a reportagem do Estadão, a empresa suspendeu os pagamentos a estaleiros contratados para construir 28 sondas por R$ 25 bilhões.

O envolvimento de bancos privados nessa aventura é assunto deles. O envolvimento da Petrobras já é discutível. A exploração de petróleo e gás depende de sondas, naturalmente, mas nenhuma petroleira é obrigada a se desviar de sua atividade-fim para se meter na produção de equipamentos. A restrição vale igualmente para fundos de pensão.

Venturas e desventuras

Por que fundos de pensão brasileiros se metem nessas trapalhadas? Se fossem fundos abutres, algumas dessas operações – só algumas – seriam compreensíveis e tecnicamente justificáveis, Quando o governo argentino os chama por esse nome, qualifica os títulos emitidos por seu Tesouro. Esses papéis foram comprados por quase nada, com evidente interesse especulativo, precisamente por serem comparáveis ao cardápio dos abutres. Não se veem fundos carniceiros especulando com notas do Tesouro alemão ou mesmo do espanhol. Há pouco tempo o governo da Espanha conseguiu rolar papéis de sua dívida com juros negativos, embora o país mal tenha começado a vencer a crise.

Obviamente, abutres compram títulos considerados junk bonds da pior categoria para lucrar em cima de preços muito baixos. Não são instituições de caridade. Mas por que fundos brasileiros incluem nas suas carteiras títulos vinculados, direta ou indiretamente, à dívida pública argentina e à venezuelana?

Não sendo abutres, essas instituições têm comido carniça em troca de nada. Pior: têm aplicado nesse estranho negócio o dinheiro de seus associados e, pelo menos em alguns casos, de estatais controladas pela União. Usa-se aqui por mera precaução, por falta de informação mais detalhada, a restrição “pelo menos em alguns casos”. Há motivos para julgar desnecessária essa restrição.

O envolvimento de fundos de pensão brasileiros com papéis lastreados na dívida pública argentina e também na venezuelana é conhecido há meses. Mas tem sido explorado de forma insuficiente e ainda pode render muita reportagem de altíssimo interesse.

Contar como essas compras foram decididas pode ser tão fascinante quanto, por exemplo, reconstituir a história da Refinaria Abreu e Lima, concebida inicialmente como projeto conjunto da Petrobras e da PDVSA. Desde o ano passado os jornais têm publicado, de forma descontínua, matérias fascinantes sobre as aventuras e desventuras dos fundos de pensão vinculados a estatais. Eis um belo assunto para se manter no topo da pauta.

Continhas

Que tal uma inflação de 8,86%? Seria maior que a acumulada entre maio do ano passado e abril deste ano, 8,17%. Isso ocorrerá se a taxa de abril, 0,71%, se mantiver por 12 meses. Basta esse dado para uma avaliação nada otimista da última informação sobre o IPCA, o Índice de Preços ao Consumidor Amplo, recém-divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A variação de abril foi bem menor que a do mês anterior, 1,3%, mas essa redução foi insuficiente para reconduzir a alta de preços a um padrão civilizado.

Os jornais deram bom espaço aos últimos dados sobre a inflação, mas a cobertura deu pouca importância a essa questão simples e importante: o potencial devastador de uma inflação mensal de 0,71%, se mantida por vários meses. Uma das coberturas ainda mencionou a projeção de uma instituição financeira: a taxa de 12 meses deverá chegar a 8,7% em agosto e recuar para 8,35% no fim do ano.

São números enormes, pelos padrões internacionais. Mas foram apresentados sem destaque. Outros jornais nem isso ofereceram na cobertura. Matérias informativas podem ser facilmente enriquecidas se repórteres e redatores gastarem alguns minutos formulando perguntas simples e óbvias e fazendo continhas nada complicadas. Não há muito mistério em calcular porcentagem sobre porcentagem. Nem é preciso recorrer a fontes especializadas para explorar as potencialidades da aritmética.

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Rolf Kuntz é jornalista