O saudoso economista e senador Lauro Campos (PT-DF) em seus discursos no Congresso Nacional ressaltava que enquanto a ética do capital estiver desligada da ética do trabalho a escravidão continuará. Quem está disposto a desarticular esse círculo vicioso costuma ser persona non grata, considerando a ótica hegemônica fundamentada ideologicamente pelos “donos do poder”. Para tanto, uma das atitudes políticas mais decisivas para qualificar democraticamente as relações trabalhistas atende pelo nome de greve. A greve surge quando o grave impera tiranicamente. A repulsa autoritária à greve é antiga, o que demonstra uma tradição de censura gritante. A origem do vocábulo “greve” remonta ao século 18, em Paris. Era numa praça chamada “Place de Grève” que os operários franceses se reuniam para pleitear melhores condições de trabalho. Recebeu esse nome, pois era um local de acúmulo de gravetos trazidos pelo rio Sena.
Entende-se por greve a suspensão coletiva, temporária e pacífica, total ou parcial, da prestação de serviços ao empregador. Cabe aos trabalhadores a decisão de aderir à greve como instrumento de pressão para que a fonte empregadora ou o governo atendam às suas reinvindicações. Por este motivo, ninguém pode ser punido por realizá-la. No Brasil, está prevista na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 9º, a seguinte orientação legal: “É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devem por meio dele defender.”
Lamentavelmente, o dia 29 de abril de 2015 ficará para a história brasileira como página tenebrosa. A “pátria educadora” foi recebida com tropa de choque no Paraná trinta anos depois do fim da ditadura militar. Infelizmente, as tentações autoritárias ainda persistem em nosso país. Cena típica de um subdesenvolvimento reinante. “Subdesenvolvimento”, costumava repetir o senador e diplomata Roberto Campos, “não se improvisa. Cultiva-se.” O jornal Correio Braziliense, de 30/04/2015, destacou em sua capa o triste episódio com os seguintes dizeres: “A Polícia Militar usou bombas de gás, balas de borracha, spray de pimenta e cães contra manifestantes – a maioria, professores em greve – que protestavam em Curitiba, contra mudanças na previdência dos servidores do estado. Pelo menos 200 pessoas ficaram feridas, oito em estado grave. As imediações da Assembleia Legislativa, onde o projeto estava sendo votado, se transformaram numa praça de guerra.”
A razão do imbróglio está na aprovação do polêmico projeto de autoria do governo Beto Richa (PSDB-PR) por parte da Assembleia Legislativa. Segundo cálculos do Executivo local, a medida “deve aliviar o caixa do governo em R$ 1,7 bilhão ao ano”. Porém, como bem noticia o Correio, “na prática, o governo quer passar a dividir a conta com os servidores. Os funcionários do estado alegam que a mudança comprometerá a saúde financeira da ParanaPrevidência”. Mais além chegamos a constatar que o descaso governamental em tela reproduz a velha mania de desrespeitar o professor, referindo-se a ele como rebelde sem causa ou um vagabundo que não gosta de trabalhar. Ecoa tragicamente na atitude neonazista do governador Beto Richa a infeliz declaração do ex-presidente da República e sociólogo Fernando Henrique Cardoso feita, em 27/11/2001, durante a cerimônia de entrega do prêmio nacional do Finep de inovação tecnológica: “Se a pessoa não consegue produzir, coitado, vai ser professor. Então fica a angústia: se ele vai ter um nome na praça ou se ele vai dar aula a vida inteira e repetir o que os outros fazem.”
O poder alienado e o saber consciente
Enquanto a visão distorcida do educador como “coitado” se espalha socialmente que nem vírus, o antivírus eficaz para combater este dano traiçoeiro se faz presente no artigo “Diversidade cultural, mídia e docência”, publicado na revista Caminhos (no. 28/2011). O primoroso texto, assinado pelo jornalista, pesquisador e professor da Fafich/UFMG, Dalmir Francisco, sugere um norte de excelência interessante para ressaltar o amplo papel social exercido pelo corpo docente:
“Docência, docente – eis duas palavras que nos identificam e nos qualificam – e que tem em sua raiz doc e docére, com o significado de ensinar, indicar, instruir, mostrar ou possibilitar entendimento. Como tal, docência tem a ver com documento e documentação (documentum, documentati), e, em consequência, docência está ligada à memória viva do saber a serviço da sociedade e da própria possibilidade futura da humanidade (história e cultura). E memória não se confunde com lembrança. Memória está ligada às musas e, ensinam os filósofos e a etimologia, memória vem de mne e está ligada à força de explosão, de coragem, de fúria e de furor. Memória – mne – se liga à força de criação, de impulsão, de ousadia e de vigor, de criação, de ‘aplicar o espírito e, portanto, a aprender e ensinar, é a aplicação da força de concentração do espírito em alguma coisa, daí o sentido de cuidado e preocupação’.”
Diante da qualidade argumentativa presente neste parecer, não podemos acompanhar passivamente atitudes de burocratas idiotas que têm como programa político tornar o povo infeliz, adotando medidas arbitrárias. Como bem adverte Dalmir Francisco no texto há pouco citado: “Onde falta educação pública falta a própria noção de comunidade humana. Educação continua sendo abertura do ser humano para o desafio histórico que lhe cabe: buscar por uma sociedade cada vez mais humanamente própria e boa a todos os homens poderem viver”. Enquanto a educação não for prioridade máxima, o Brasil continuará dividido: de um lado, o poder alienado; do outro, o saber consciente. E no meio do caminho, balas perdidas movimentando falas mais perdidas ainda.
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Marcos Fabrício Lopes da Silva é professor da Faculdade JK, jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários