É a repetição de uma conhecida – e superestimada – prática: em busca do furo e do ineditismo desenfreado, os jornalões, mais uma vez, transformaram em tiro de festim a discussão de um tema nevrálgico da realidade brasileira. A bola da vez foi a temática saúde pública, mais especificamente a questão ‘normas para ocupação racional de leitos de terapia intensiva’. A Folha de S. Paulo iniciou o estardalhaço no dia 11 de abril, com a manchete ‘Governo quer decidir quem vai a UTI’. Funcionou como rastilho de pólvora para outros veículos e serviu de banquete para a oposição se refestelar no Congresso.
O problema é que a autora do tal furo abreviou (ou, no mínimo, empobreceu) as discussões de um tema sério, necessário e, caso raro neste governo, sem o viés da propaganda. O resultado já era aguardado. O Ministério da Saúde recuou, os oportunistas trataram de rotular pejorativamente o assunto e, imerecidamente, a proposta sucumbiu ao limbo do ostracismo. Pergunta-se: por que iniciar as discussões de um projeto ainda embrionário de forma tão espetaculosa? Por que lançar mão de uma manchete tão explosiva, que contrastava radicalmente com o conteúdo da própria matéria? Com a palavra, o ombudsman da Folha.
Num primeiro momento, o jornal tratou de forma secundária a idéia de que seriam os próprios médicos – e não o governo – que decidiriam pela internação dos pacientes nas UTIs públicas. Sobre este aspecto, chama atenção a defesa que as próprias fontes da matéria fazem de uma medicina cada vez mais protocolada, ou seja, com regras pré-definidas por um organismo superior (entidades de classe ou mesmo o governo). Ao longo da semana, outros especialistas e técnicos também se posicionaram favoravelmente em relação a essa proposta.
Julgamento precipitado
Na Bahia, por exemplo, o coordenador da câmara técnica de terapia intensiva do Conselho Regional de Medicina da Bahia (Cremeb), Antônio Penna, concedeu declaração ao jornal Correio da Bahia em prol da normatização das UTIs. ‘A gente tem que mudar a cultura de que hospital é sempre melhor. Carinho, atenção e solidariedade em casa podem ser muito mais indicados, em casos terminais, do que o próprio internamento, sem que isso tenha algum significado de eutanásia. Afinal, a vida é finita, e a medicina também’, disse Penna ao jornal baiano.
No dia seguinte (12 de abril), a própria Folha tratou de se penitenciar com o editorial ‘Internações em UTI’. Totalmente favorável à causa, o texto foi uma espécie de mea-culpa do matutino pelos excessos do dia anterior. Tarde demais, pois já prosperava na opinião pública o boato de que o governo pretendia estimular a eutanásia e abandonar à própria sorte os doentes em estado terminal. Deu-se à discussão um caráter político, ideológico, de que o governo é demasiado intervencionista ou até mesmo ‘nazista’, como nas palavras do paladino-mor da República, o senador Arthur Virgílio (PSDB).
Ao editorializar a matéria, a Folha não ofereceu ao leitor a chance de ‘formar’ um conceito, mas induziu-o ao julgamento precipitado. O jornal optou pela crítica (legítima) à gestão do sistema público de UTI do país e citou a insuficiência de leitos como o outro vértice da questão. Acontece que a racionalização no uso dos leitos é, segundo a própria autora da matéria, Cláudia Collucci, apenas uma das medidas do governo para a nova política do setor. Ou seja, uma coisa não exclui a outra.
Perdemos todos
Para fechar o assunto, a Folha fez que não era com ela quando o ministro da Saúde, Humberto Costa, afirmou que houve politização do debate. A frase ‘pressionado por reação contrária’ (subtítulo da manchete do dia 13) revela, além de imprecisão, uma tentativa de atribuir somente a ‘setores médicos e ao Congresso’ o recuo de Costa. Como grande formadora de opinião, a Folha sabe que também politizou – e difundiu largamente entre os ‘leigos’ e espertalhões – a pseudo-discussão. Assim, o jornal fez de um limão uma limonada.
O atual ministro da Saúde já cometeu um sem-número de trapalhadas, como no episódio do atraso na distribuição dos medicamentos anti-Aids. Também proferiu declarações infelizes (caso da morte de crianças indígenas em Mato Grosso do Sul). Humberto Costa é, nas atuais circunstâncias, um político/gestor com a imagem bastante comprometida. Ninguém seria ingênuo de achar que, sob pena de se desgastar ainda mais, ele avançaria nas discussões de um assunto polêmico e pré-julgado pela mídia.
Com isso, perdemos todos (mais ainda os que necessitam dos hospitais públicos). Tão cedo saberemos se a medida de racionalização do uso das UTIs públicas é, de fato, benéfica, se pode ter alguma compensação (não adianta a Folha sugerir que, na Europa, o modelo já foi testado sem grande utilidade, porque o Brasil, decididamente, está a anos-luz das políticas e condições de saúde no Velho Continente). Em momento de ânimos exaltados, certamente faltará o equilíbrio necessário para problematizar a questão.
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Relações-públicas, Salvador