No livro Discursos Geopolíticos da Mídia – Jornalismo e Imaginário Internacional na América Latina, a professora da Universidade Federal do ABC Margarethe Born Steinberger apresenta a tese de que nova ordem geopolítica internacional é uma ordem internacional midiática. Segundo a autora, as diferentes formas de imperialismo cultural (que não implicam necessariamente em domínio territorial físico e direto) indicam que o sistema de referência em ascensão atual é o sistema pós-moderno midiático, em que a indústria cultural e os meios de comunicação de massa detêm o poder de configurar mentalidades a médio/longo prazo e, consequentemente, amalgamar o apoio social necessário à consolidação de qualquer liderança global. Nesse sentido, a hegemonia no âmbito das relações internacionais depende cada vez mais do desenvolvimento tecnológico na área informacional. Em outros termos, o atual processo de dominação de uma nação sobre outras não se restringe apenas ao espectro militar, também está relacionado ao campo discursivo. Indubitavelmente, um acontecimento que não esteja “documentado” na mídia não “existe” sob o ponto de vista geopolítico. Além de um poderoso exército, uma grande potência contemporânea também deve ter à sua disposição um eficiente aparato midiático, capaz de difundir determinadas ideias em escala planetária. Após a Guerra do Golfo, as práticas de estratégia militar dos Estados Unidos, por exemplo, passaram a incluir também um ostensivo planejamento midiático, baseado na preocupação com o controle da opinião pública internacional.
Atualmente, podemos compreender geopolítica a partir do tripé governo/academia/ mídia, em que os principais líderes globais lançam determinadas agendas (“guerra ao terror”), alguns pensadores as corroboram intelectualmente (“choque de civilizações”) e a mídia tem por função legitimar e tornar compreensível os discursos políticos e acadêmicos frente à população (“consenso fabricado”). Pelo menos desde a Segunda Guerra Mundial, a mídia é uma das principais “armas” utilizadas pelos principais atores geopolíticos. O próprio Adolf Hitler recorreu às ondas radiofônicas para disseminar seu discurso doentio por todo o território alemão. Durante o maior conflito armado da história, a atuação ideológica da indústria cultural não se restringiu ao público adulto; o universo dos desenhos animados também transmitiu mensagens de ódio aos inimigos bélicos. Enquanto uma produção japonesa destinada ao público infantil retratava Mickey Mouse como uma criatura maléfica que invadia e bombardeava o Japão, um desenho estadunidense apresentava Popeye lutando contra a marinha nipônica. Por sua vez, a criação do personagem Zé Carioca, por Walt Disney, foi uma tácita maneira de atrair o apoio brasileiro para os aliados e acabar com qualquer possibilidade de o governo Vargas se aliar às potências do Eixo. Findada a guerra, os órfãos Huguinho, Zezinho e Luisinho (sobrinhos do famoso Pato Donald) foram o consolo das crianças estadunidenses que perderem os pais, mortos em combate.
O perigo do enquadramento midiático
No contexto geopolítico da Guerra Fria, a indústria cultural ocidental desempenhou um duplo papel: difundiu em ampla escala o consumismo exacerbado típico do american way of life (“Era de Ouro” do capitalismo) e, por outro lado, propagou a paranoia anticomunista entre os aliados de Washington. Desse modo, toda uma gama de propaganda ideológica foi utilizada para amedrontar a população sobre o “perigo vermelho”. Todavia, nem sempre os meios de comunicação favorecem a agenda política de uma grande potência. As fortes imagens da Guerra do Vietnã foram de suma importância para que boa parte da população estadunidense se posicionasse contra o conflito no sudeste asiático. Na atual ordem mundial – em que a hegemonia global paulatinamente vem se deslocando do campo político (Estado nacional) para atores não-estatais (mercado, organismos internacionais, capital desterritorializado) – a mídia tem assumido o papel de uma “esfera pública internacional sem fronteiras”. Conforme o mencionado anteriormente, o reconhecimento e a validação de uma determinada agenda geopolítica, passa, inexoravelmente, pelo prisma midiático. Como bem asseverou o ativista Noam Chomsky, o governo dos Estados Unidos utiliza a imprensa para legitimar suas ações imperialistas, atacar os seus inimigos ideológicos e construir “fatos” e “verdades”. A “guerra ao terror”, empreendida por George Bush, não teria o mesmo êxito junto à opinião pública ianque se não fossem os grandes veículos de comunicação. Em contrapartida, também não há como imaginar o atual terrorismo internacional sem os impactos causados pelas imagens hollywoodianas do Word Trade Center em chamas, das pessoas correndo desesperadamente durante a Maratona de Boston ou das degolações realizadas pelo Estado Islâmico.
Por outro lado, devemos salientar que conceitos clássicos como Estado, território e nação ainda são importantes para situar o cidadão comum no complexo xadrez geopolítico ou para a análise lexical da atual conjuntura global pautada na ordem internacional midiática. Não por acaso, as grandes agências de notícia recorrem ao conceito weberiano de Estado, como o detentor legítimo do monopólio da violência, para qualificar as intervenções israelenses na Palestina como “ações preventivas” ou “retaliações” e a resistência dos palestinos frente ao Estado sionista como “terrorismo”. Se formos levar em consideração que 80% do conteúdo dos noticiários geopolíticos que circulam pelo planeta são concebidos por agências de origens europeia e estadunidense, não é difícil inferir que a ideologia imperialista das grades potências é praticamente a única fonte de informação sobre política internacional para a imensa maioria da população. Portanto, frente a esse quadro, não basta apenas se manter informado, é preciso saber ler a mídia, desvendar seus possíveis mecanismos manipuladores e entender os jogos de interesse que estão por trás do seu discurso. O sujeito que possui o mínimo conhecimento sobre o maquinário midiático, seleção de pautas (agenda-setting) e o contexto de construção da notícia (newsmaking) dificilmente será um alvo vulnerável para o pensamento dominante. Diante dessa realidade, as instituições escolares podem ser instâncias privilegiadas para a formação de cidadãos críticos em relação à mídia. Cabe, então, aos educadores promover a ressignificação do discurso midiático em sala de aula, orientando seus alunos no gerenciamento das informações que estão disponíveis nos principais veículos de comunicação. Surge assim um dos grandes desafios para os professores neste início de século 21: contribuir para que, no tocante aos estudos geopolíticos, o senso de julgamento de seus discentes não fique refém do enquadramento midiático.
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Francisco Fernandes Ladeira é especialista em Ciências Humanas: Brasil, Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e professor de Geografia em Barbacena, MG