O lançamento na Itália do romance “Número Zero”, de Umberto Eco, em janeiro, coincidiu com a chacina de 12 funcionários do jornal satírico parisiense “Charlie Hebdo” por fundamentalistas islâmicos que queriam se vingar de caricaturas do profeta Maomé estampados no semanário. Impulsionado pelo caso, o livro do escritor e semiólogo italiano logo atingiu o topo da lista dos mais vendidos na Itália. O livro teria feito sucesso sozinho, pois Eco é uma celebridade e todo livro dele vira best-seller. Dessa vez, o momento turbinou ainda mais o lançamento. Eco foi chamado a opinar sobre a importância e as misérias da atividade jornalística, a ética e a liberdade de expressão.
O enredo do romance combinava com as circunstâncias, embora não de forma literal. Mas, pela primeira vez em 52 anos de carreira, o Eco teórico da comunicação se aproximou do Eco fantasista. As duas facetas se fundiram.
“Meu livro não é uma reflexão sobre o jornalismo, e há grandes jornais com credibilidade em circulação”, disse em entrevista em um programa de entrevistas na RAI, Rádio e Televisão Italiana. “Imaginei o surgimento de uma redação de um jornal sensacionalista, mantido por um empresário metido em política – uma particularidade italiana. Meu livro é um manual do mau jornalismo.”
“Número Zero” será lançado em julho no Brasil pela editora Record. O livro pode ser definido como a farsa do jornalismo marrom, já que acompanha o processo de preparação de um jornal diário que usa o furo como instrumento de manipulação política. Trata-se do primeiro romance de Eco passado nos dias de hoje ou quase hoje: em 1992, em Milão, cidade onde mora.
Aos 83 anos, Eco é um dos mais respeitados pioneiros da teoria da comunicação de massa. Mesmo assim, ganhou glória com a ficção. Em 1980, ficou famoso com a publicação do romance “O Nome da Rosa”, trama de crime e mistério ambientada na Idade Média que se tornou modelo para futuros “smart thrillers”, como “O Código Da Vinci”, de Dan Brown e similares. Desde então, ele publicou seis romances históricos e fantasiosos. Em “O Pêndulo de Foucault” (1988) e “A Ilha do Dia Anterior” (1994), soltou o verbo em longas digressões sobre os enigmas da Renascença e dos descobrimentos. Em “Baudolino” (2000), simulou uma saga medieval lombarda. Abordou o mundo dos quadrinhos e das histórias fantásticas no autobiográfico “A Misteriosa Chama da Rainha Loana” (2004). O universo da invenção de notícias, mitos e teorias conspiratórias foi objeto de “O Cemitério de Praga” (2010), ambientado no século XIX europeu.
Mentiras históricas
“Número Zero” é a obra de ficção de Eco mais marcada pela atualidade midiática seu tema favorito em ensaios como “Diário Mínimo” (1963), “Apocalípticos e Integrados” (1964) e “O Super-Homem de Massa” (1978). No novo romance, Eco mistura ensaio, farsa e histórias escabrosas, como se evocasse e satirizasse suas velhas teorias.
Os acontecimentos do romance se desenrolam entre abril e junho de 1992. Na época, o governo italiano se enlameava nos casos de corrupção e envolvimento de políticos com a Máfia. Tornou-se hábito plantar histórias em revistas e jornais – um procedimento que, na Itália do fim dos anos 1990, seria batizado de – “Macchina del Fango” (máquina de lama) – uma engenhoca que não parou de funcionar desde então. Nessa era adâmica da exploração de escândalos, ainda circulavam boatos sobre assassinatos de políticos e juízes e o envolvimento da casa maçônica P2 na morte do papa João Paulo I. Corria a lenda segundo a qual o líder fascista Benito Mussolini teria escapado da execução, em 1945. Todos esses ingredientes compunham um prato farto para vender jornais num tempo em que a internet ainda não havia se popularizado. E compõem o romance de Eco.
Um empresário de comunicação apelidado de Il Commendatore, encarrega um testa de ferro, Simei, de fundar um jornal “que dirá toda a verdade”. Simei contrata o jornalista cinquentão Colonna para dirigir o jornal, que deverá se chamar “Domani” (Amanhã) e terá 12 números zero. Além disso, Colonna será o “ghost writer” de Simei. Deverá escrever um livro sobre a “saga” da criação do novo veículo, narrando o dia a dia da redação e o esforço dos repórteres para buscar notícias e dar furos sensacionais.
Il Commendatore é uma eminência parda que lembra a figura de Il Cavaliere, como é conhecido o empresário de comunicação e exchanceler italiano Silvio Berlusconi. Ele planeja usar a perspectiva da criação do jornal para chantagear políticos temerosos de ser desmascarados. Na verdade, o jornal nunca será lançado, mas trará prestígio e poder ao Commendatore.
Em jargão jornalístico, “número zero” é a expressão que designa as edições experimentais que nunca chegarão às bancas. É uma forma de envolver uma equipe em torno dos princípios editoriais e métodos da publicação. A história transcorre nessa espécie de limbo em que editorialistas redigem artigos “para agradar ao Commendatore” e repórteres saem em busca de acontecimentos para suas reportagens fadadas a jamais ser publicadas – a fobia número um de qualquer jornalista. É a ocasião perfeita para a especulação, a armação de fatos e a criação de teorias conspiratórias – sobretudo se o veículo em questão ameaça causar repercussão a qualquer custo.
O resultado é uma saga às avessas. A galeria de personagens pitorescos da redação inclui, entre outros, a jovem horoscopista Maia, por quem Colonna se apaixona, e o repórter investigativo Brogadoccio. Este se empenha em investigar, entre outras coisas, a morte de Mussolini. Descobre documentos que comprovam que o Duce evitou a execução colocando um sósia e fugindo, sob a proteção da Igreja Católica, de casa paroquial a casa paroquial, até os jardins secretos do Vaticano para finalmente encontrar exílio dourado em Buenos Aires. Brogadoccio não consegue concluir a investigação. É morto. O mistério se adensa, apesar da tentativa da redação de abafar o caso. Colonna será capaz de levar a cabo o projeto? Sim. Ele se intitula “Número Zero”, o romance do qual se torna herói e narrador.
O romance satiriza o sensacionalismo, com todas as suas malandragens, absurdos e perversidades. De alguma forma, não deixa de se apresentar como um réquiem burlesco de um tipo de jornalismo que nasceu, triunfou e se esgotou no papel impresso. Pode ser um tema insólito em se tratando de Eco, sempre apegado às especulações em torno das mentiras históricas. No entanto, de certa forma, ele está mais uma vez agindo como um antiquário especulativo, agora do passado recente. Ao examinar o mau jornalismo dos anos 1990 sob a perspectiva da segunda década do século XXI, o Professor ensina que aquela prática parece tão arcaica quanto a dos pregoeiros da Idade Média. “O problema é que o mau jornalismo está sendo substituído hoje pela internet”, diz Eco. Certamente, sim. Mas o enredo será bem outro.
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Luís Antônio Giron, para o Valor Econômico