A Al Jazeera America foi apresentada em 2013 como um projeto grandioso: uma emissora de notícias inteligente, bem planejada e investigativa. O plano era que o canal, distribuído nos EUA, tivesse um orçamento à altura de suas ambições, devidamente financiado pelo governo do Catar.
Quase dois anos depois do anúncio otimista e do investimento inicial de 500 milhões de dólares, as avaliações não se concretizaram, muito menos os lucros. Agora, o diretor-executivo Ehab Al Shihabi está sendo substituído por Al Anstey, diretor da divisão de língua inglesa da Al Jazeera desde 2010, em uma tentativa de reestruturação e sobrevivência.
Conflitos internos
A rede Al Jazeera foi fundada na década de 1990 e nasceu como um canal de notícias árabe, sendo, vez ou outra, alvo de políticos americanos, que diziam que a emissora era um veículo de propaganda do Oriente Médio. Ainda assim, sua divisão em língua inglesa conseguiu manter uma boa reputação no meio jornalístico. A emissora chegou a ganhar prêmios de jornalismo e alcançou 250 milhões de espectadores em 130 países. Atualmente, a audiência da Al Jazeera America é de pífios 30 mil espectadores por noite. Para piorar, um êxodo de altos executivos trouxe à tona uma série de queixas que, segundo seus funcionários, refletem uma disfunção profunda na gestão da redação.
Marcy McGinnis, ex-vice-presidente sênior para captação de notícias, foi uma das que renunciaram. Ela contou que a redação se encontra numa desordem total e que o medo de perder o emprego têm sido constante entre as equipes. Repórteres e apresentadores têm sido retirados do ar ou saído da emissora sem qualquer explicação aos colegas. Marcy diz que Shihabi monopolizou todas as decisões do canal, o que se tornou um problema. Ela crê que o fato de ele não possuir qualquer formação jornalística sempre foi um agravante.
Diana Lee, diretora de recursos humanos, e Dawn Bridges, vice-presidente executiva para as comunicações, também se demitiram. Em meio ao turbilhão, Matthew Lucas, ex-diretor de meios de comunicação e gestão de arquivos, processou a empresa, alegando ter sido dispensado depois de se queixar aos recursos humanos a respeito de Osman Mahmud, vice-presidente sênior para as operações de transmissão e tecnologia. As acusações incluem antissemitismo, discriminação sexual e retaliação. De acordo com o Washington Post, Mahmud as refuta.
Um dos rostos mais famosos da emissora, o âncora Ali Velshi, veterano da CNN que apresenta um programa no horário nobre, teve uma reunião particularmente belicosa com a direção, a qual culminou em ameaças de demissão e processo.
Em uma entrevista de um dos escritórios da Al Jazeera em Manhattan, pouco antes de ser dispensado, Al Shihabi defendeu as conquistas da emissora e exaltou a qualidade do jornalismo. Ao ser questionado sobre as queixas de funcionários, ele disse que a empresa estava empenhada em levantar o moral da equipe e que, se as pessoas não estavam felizes, a Al Jazeera investiria para fazê-las felizes. Ele também negou qualquer conflito com Velshi.
Problemas de distribuição
Al Anstey declarou estar muito satisfeito em assumir o novo cargo e “muito orgulhoso por ser capaz de liderar uma equipe fantástica que se dedica à narração da mais alta qualidade”. Ele também se disse empenhado em envolver a equipe e elevar as ambições coletivas do canal, o qual classificou como “muito necessário ao público americano”.
O jornalista Dean Starkman, no entanto, discorda deste último ponto. Em artigo para a Columbia Journalism Review, ele disse não compreender por que a Al Jazeera fez tamanho investimento para colocar mais um canal a cabo voltado a notícias no ar, afinal o público americano já está saturado de emissoras do gênero.
Starkman diz que, mesmo que uma emissora desse tipo demore a engrenar – como foi o caso da CNN, que só ganhou visibilidade uma década depois de seu lançamento, durante a cobertura da Guerra do Golfo –, é preciso questionar se os problemas de visibilidade da Al Jazeera podem ser identificados pelas desvantagens que a rede enfrenta em sua distribuição nos Estados Unidos, ou se o próprio jornalismo desempenha um papel nisto.
David Marash, âncora da Al Jazeera em inglês, diz que, embora a nova rede não tenha a ambição intelectual proposta no início, ela tem superado com folga seus concorrentes da TV a cabo no que diz respeito ao ponto de vista jornalístico, particularmente na categoria de séries de notícias e documentários. Ele vê como vantagem o fato de a Al Jazeera não se dedicar ao jornalismo de fofocas (como fazem a Fox e a MSNBC). “Eles produzem mais documentários com duração de meia hora em um mês do que todos os seus concorrentes produzem em um ano”, observou.
Marash compreende, no entanto, que manter este jornalismo de qualidade exige ainda mais recursos financeiros do que aqueles disponíveis no momento. Mas ele diz que os altos custos não são o maior obstáculo. A distribuição é vista como um ponto sensível. Por enquanto, a Al Jazeera abrange cerca de 60% dos lares americanos (concorrentes como a CNN estão em praticamente todos eles), e muitas vezes encontra-se em posições pouco vantajosas na grade de canais (se a emissora está em uma numeração alta, como o canal 614, por exemplo, muitas vezes o espectador não chega até lá).
Philip Seib, professor de jornalismo na Universidade do Sul da Califórnia e autor do livro The Al Jazeera Effect (“O Efeito Al Jazeera”), frisa que não assiste ao canal porque a operadora de cabo local em Pasadena não o oferece.
Além disso, a rede não está amplamente disponível em alta definição, conferindo à programação um verniz escuro, desprovido de polimento em comparação aos concorrentes, o que, por sua vez, torna-o menos atraente, principalmente ao público mais jovem. Além disso, seus acordos com operadores de cabo incluem restrições onerosas sobre a quantidade de vídeos que podem ser oferecidos gratuitamente online, tornando impossível a veiculação em live streaming. Esse tipo de restrição dificulta muito a imitação de estratégias de distribuição digital bem-sucedidas, como aconteceu com a parceria entre o Vice News e a 21st Century Fox.
Em uma declaração à Columbia Journalism Review em agosto de 2014, Ehab Al Shihabi pedira quatro ou cinco anos para consolidar a marca da Al Jazeera e assim rivalizar igualmente com seus concorrentes. Agora que ele está fora do canal, resta saber se Al Anstey será capaz de manter o plano – ou ao menos evitar que a emissora em crise acabe encerrando as atividades.