Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Carta Capital

LINCHAMENTO
Rosane Pavam

Ação sem insígnia, 10/4

‘‘O teste para uma inteligência de primeira categoria’, disse o escritor americano F. Scott Fitzgerald, ‘é a capacidade de ter em mente duas idéias opostas ao mesmo tempo, e ainda continuar em condições de funcionar’. Este parece ser um dito para todos os americanos, eles e nós. A capacidade de absorver esta simultaneidade serve a qualquer um, é mesmo necessária, especialmente se desejamos compreender uma ironia, um sarcasmo, uma complexidade. Um grego já sabia disto antes de todos.

E, no entanto, é quase certo que, ainda hoje, nós nos vejamos em dificuldades, como opinião pública, para agir nas entrelinhas e exercer a sutileza no largo caminho entre um não e um sim. Que enorme diferença haveria entre republicanos e democratas, lulistas e serristas, milionários e perdedores, obamas e clintons? As compreensões deveriam ser dinâmicas como o monjolo cuja água que entra se renova naquela que sai – no fundo, é uma água só.

Especialmente quando nos pomos a escrever para a imprensa, experimentamos muitas e cotidianas incompreensões. O risco de ser sutil vem junto com aquele de exercer a profissão. É um risco semelhante metaforicamente àquele de que foi vítima Ayrton Senna na Tamburello: claro está que o piloto não desconhecia a possibilidade muito grande de se espatifar numa curva, mas, além de todos, ele conhecia seu valor de mercado e considerava tal chance como inevitável em cada corrida. Jamais fugiu de correr do jeito que lhe pareceu melhor. Mas, bem, opa, não se pode mexer em um ícone como Senna, nem por alegoria, nem por livre-pensar, nem, muito mesmo, por humor! Então me desculpem?

Mas é que eu temo que a cada dia nos aproximemos de um jeito Bope de ser, jocoso, emburrecido, prepotente, com arma em punho, quando o homem tem pensamentos a sacar diante de várias situações tidas por extremas. Nós temos preferido nos tornar contundentes como a polícia, sem, contudo, exibir a consistência exigida para a ação de um policial. A cada dia, nós parecemos incapazes de expressar os sentimentos em forma de prisma, absorvendo e refletindo uma luz a partir de muitos lados.

Podemos divagar solitariamente sobre quem teria matado a pobre menina Isabela, por exemplo, o pai, a madrasta ou o pedreiro, neste enredo de intimidade macabra que se anuncia a qualquer espectador de tevê ou leitor de jornal. Mas de que nos serve jogar a primeira pedra em algum suspeito não julgado, diante da delegacia pela qual ele passa, munidos de nossos pequenos filhos ao colo, encapotados e desentendidos numa noite fria? Vi esta cena em um jornal sensacionalista de televisão e senti o frio da rua invadir meu sofá. Quem conhece ao certo o autor da atrocidade contra a menina, tão certo desta autoria que pode prejulgá-la?

Somos muitos, somos vários, e tal atitude de linchamento deve dizer respeito à intensa agitação psicológica de cada um, a seu medo de identificar-se com a monstruosidade, a sua necessidade de gritar, para afastá-la. Ninguém pode impedir uma pessoa justamente consternada (quanto mais duas ou três, juntas, contaminadas pelo repúdio), que se manifeste publicamente. Mas este é um assunto sobre o qual podemos refletir antes de chegar à ação, ou pelo menos depois de a ter alcançado.

Falei sobre Isabela, mas não há só ela neste vasto, triste mundo. Somos policiais de muitos modos, todos os dias, diante das pequenas atitudes alheias que nos incomodam ou que se sobressaem a nós. Não há nada ruim em ser policial, por favor, especialmente um policial real, que aja para coibir um crime! Mas existe algo de exasperante em nossa eterna beligerância no papel de juízes dos dias comuns, como se nos víssemos no direito de agir contra os outros sem portar a devida insígnia.

Nós nos julgamos em posição de avaliar, por exemplo, um artigo de David Mamet reproduzido no caderno Mais! da ‘Folha de S. Paulo’ do dia 6 de abril. O diretor e dramaturgo Mamet, dizem os jornalistas, guinou à direita. Mas o artigo não expressa isto, parece-me. Diante deste artista, sempre foi possível ler as posições clássicas de um conservador. Um americano vê comumente dois mundos opostos, de republicanos ou democratas. Contudo, quem estaria mais à direita ou à esquerda entre os dois? Mamet reconhece essa diferença minima, e agora nos diz o óbvio: que John Kennedy cometeu um pecado eleitoral tanto quanto George W. Bush. Há quanto tempo ele conhece esta verdade, não é? Faltou anotar, em Kennedy, a porção belicista que se reconhece facilmente em Bush.

Em seu artigo, Mamet, que faz filmes em torno de estabelecer erros (‘O Assalto’) e culpas (‘Cadete Winslow’), é um pensador liberal em busca do acerto e do aprimoramento de um estilo de vida. Ele não pode aceitar que sejam todos menos americanos do que são. Então, quando a América parece próxima do perigo do enxovalho e da destituição de sua primazia no cenário econômico, político e de idéias, ele promove uma grita, que deve ser tida por natural.

Que mal há em expor com sinceridade uma posição já conhecida? É o mesmo que fez Jason Reitman, cineasta de menor envergadura intelectual, em ‘Juno’ e ‘Obrigado por Fumar’. Alguém tem de devolver a América a seu lugar: que sejam, estas pessoas, os intelectuais. Reitman e Mamet, artistas inteligentes, talvez se horrorizem diante da possibilidade de se verem administrados por um sistema chinês. Ninguém poderá condená-los no terreno da palavra. Mas, como observadores, sejamos sutis ao analisar suas posições.’

 

ITÁLIA
Gianni Carta

Mais do mesmo, 11/4

‘Com as eleições legislativas italianas, nos dias 13 e 14, duas novas tendências políticas se confirmam: a imagem dos candidatos ganha primeiro plano em detrimento da substância do manifesto de seus partidos; e o sistema eleitoral, até agora dominado por instáveis coalizões, como aquela de centro-esquerda, de Romano Prodi, que desabou em janeiro, devido à perda de maioria no Senado, começa a adquirir características bipartidárias.

Nenhuma das novidades é, porém, sinal de que, ao eleger seu 62º primeiro-ministro no pós-guerra, a Itália atravessará um período de estabilidade. O primeiro motivo é o mais preocupante: o partido de centro-direita Povo da Liberdade (PDL), de Silvio Berlusconi, premier em 1994 (por sete meses) e de 2001 a 2006, conta com 10 pontos porcentuais de vantagem sobre seu rival, o Partido Democrático (PD), liderado pelo centro-esquerdista Walter Veltroni, ex-prefeito de Roma, de 52 anos.

Berlusconi, ex-cantor em cruzeiros turísticos que se tornou o homem mais rico da Itália, é inapto para o cargo. De saída, foi acusado mais de dez vezes por atividades criminosas. E existe o conflito de interesses: Berlusconi é dono de um império que monopoliza canais privados de tevê e considerável fatia da imprensa escrita. Graças à mídia, ele difundiu país afora uma ‘síndrome de Dorian Gray’, como disse o jornalista Enrico Bonerandi, do La Repubblica. Fez plásticas, implantes capilares, regimes, e se julga um dom-juan (suas gafes merecem um livro).

Desta feita, promete impostos mais baixos, maiores controles de imigração (leia-se mais centros de detenções e expulsões) e ‘abolir privilégios de políticos’, assunto bastante em voga num país com uma dívida pública estratosférica. E no qual o povo, principalmente os jovens, se refere aos poderosos políticos idosos como a ‘casta’.

Berlusconi fez muito pouco pela Itália no seu segundo mandato, o primeiro completado por um premier no pós-guerra. Ao mesmo tempo, o custo de vida continuou alto e os salários caíram. Na verdade, ele passou a maior parte de seu mandato atacando o sistema judiciário, para evitar sua prisão.

Embora seja professoral e padeça de certa timidez, Veltroni tem 30 anos de política – e 20 de vida a menos que Berlusconi. Mas essa seria a sua primeira oportunidade de ocupar o cargo de premier. Veltroni pode não ter o carisma do candidato Barack Obama, a quem admira e de quem emprestou o slogan de sua campanha: Yes we can (Si può fare). Mas o ex-jornalista Veltroni sabe quando tem de dar o ar da graça.

Ex-prefeito de Roma nos últimos sete anos, criou um festival internacional de cinema e foi fotografado, entre outros, com Sean Connery e Nicole Kidman. Cinéfilo, amante de jazz e autor de vários livros, trouxe uma brisa de Dolce Vita dos anos 50 de volta à capital, com concertos realizados no Coliseu por músicos do calibre de Simon & Garfunkel. As ‘noites brancas’ foram um sucesso, embora habitantes da cidade reclamem das arruaças provocadas por beberrões.

Ao contrário de Berlusconi, Veltroni não busca vitória por meio de sua personalidade, mas do programa de seu partido. Ex-comunista, soube, como, aliás, o próprio PCI, mudar com os tempos. Em outubro passado, tornou-se líder do PD. Ele propõe impostos mais baixos e reformas para dar maior flexibilidade ao mercado.

Veltroni é, contudo, a prova de que ainda se pode distinguir a esquerda da direita. A primeira reforma de seu programa é ajudar os menos favorecidos, reforçando o Estado de Bem-Estar Social. Em vez de lutar contra a imigração, coloca ênfase na integração dos imigrantes, embora sustente ser preciso distinguir aqueles que buscam um novo país para trabalhar dos criminosos.

Por fim, Veltroni recusou aliar seu PD a outros partidos no pleito, visto que a coalizão do ex-premier Prodi, de 11 legendas, provou ser tão frágil quanto as anteriores. E, assim, foi o primeiro político a romper com o sistema eleitoral (com votos diretos e de representação proporcional; e reintroduzido, em 2005, por Berlusconi para dividir as esquerdas) e a flertar com o bipartidarismo. Veltroni fez mais: se mostrou pronto a formar uma aliança até com o PDL, única maneira de tentar resolver os sérios problemas estruturais do país.

Berlusconi formou uma aliança com os velhos aliados e rejeitou qualquer aliança com o PD. A Itália parece prestes a votar no continuísmo.’

 

Mino Carta

A marcha sobre Roma, 2, 11/4

‘No início do século XIX, Giacomo Leopardi, um dos maiores líricos de todos os tempos, escreveu um poema intitulado All’Italia. Tinha 18 anos e muita paixão nas palavras, recordava glórias de tempos antigos e as comparava com a decadência da sua contemporaneidade. Não imaginava que as coisas pudessem piorar.

A Itália viveu em seguida as guerras do chamado Risorgimento, a indicar um renascer, na prática revolução de cima para baixo, que redundou em uma unificação da Península mais no papel do que nos fatos. A fragilidade das instituições e das crenças gerou o fascismo, turvo capítulo de totalitarismo que se arrastou por 23 anos.

A Segunda Guerra Mundial, esta sim, implica uma revolução autêntica, na luta da Resistência contra os fiéis de Mussolini e os invasores nazistas. Os partigiani bateram-se à sombra da mesma bandeira, comunistas, socialistas, católicos e liberais, e foram estas as forças políticas chamadas a construir a república e a democracia nascidas dos escombros do conflito. E consagradas na Constituição de 1948, que dura até hoje.

Foi período intenso e profícuo, tornou a Itália um dos países mais ricos do mundo e estabeleceu o conúbio singular entre agremiações políticas de ideologia oposta. O centro democrata-cristão governou o país e a esquerda administrou regiões e cidades. E tanto o Partido Comunista quanto os sindicatos arcaram com um papel determinante para obrigar os tradicionais donos do poder econômico a cederem alguns anéis.

O longo exercício da governança pelo PDC acabou por criar condições insuportáveis de corrupção e impunidade, de sorte a precipitar a operação dita das Mãos Limpas, um dos capítulos mais notáveis das últimas duas décadas do século passado.

Implodida a Primeira República, surge a Segunda. O processo de crescimento econômico prossegue na involução, os interesses do país são esquecidos, quando não desprezados, em nome das conveniências pessoais ou corporativas. É a hora da figura tragicômica de Silvio Berlusconi, facilitada a sua obsessão de poder por uma esquerda cada vez mais hesitante. Nos dias 13 e 14, a Itália vai às urnas para eleger o novo governo e Berlusconi, primeiro nas pesquisas, canta sua vitória iminente. Que diria Giacomo Leopardi?

Há alguns dias, o editor da seção de política exterior da The Economist avisou cortesmente que o semanário apóia a candidatura do principal opositor de Berlusconi, Walter Veltroni, do Partido Democrático, de centro-esquerda. Nesta edição, CartaCapital publica a reportagem de Ed Vulliamy, do The Observer, sobre a campanha eleitoral italiana. Ali também se verifica que a simpatia do jornalismo inglês pelo homem mais rico da Itália baixa para as temperaturas polares.

Segundo CartaCapital, os colegas britânicos estão certos. Berlusconi é o próprio símbolo desta Itália à deriva, econômica e politicamente débil e entregue a um eleitorado dividido ao meio. E uma metade, e este é o aspecto mais deplorável, e até assustador, disposta a admirar no megaempresário, dedicado à política em benefício próprio, o espertalhão que fez fortuna imensa ao sabor de golpes e falcatruas.

Há, inclusive, um lado berlusconiano que ofende a pátria do estilo: a vulgaridade do homem, a falta de senso de oportunidade, a deselegância congênita, a leviandade irresponsável. Seus conselheiros há muitos anos são dois condenados pela Justiça. Cesare Previti, que corrompeu dois juízes envolvidos em um caso relativo a atividades das empresas do patrão. Marcello Dell’Utri, condenado com sentença definitiva em um processo por fraude fiscal, e, em primeira instância, a nove anos de prisão, por associação mafiosa.

Dia 8 deste mês, Dell’Utri, na certeza da vitória, decretou: o papel da Resistência nos livros escolares será revisado. Não perdeu também a oportunidade de exaltar a memória de um certo Vittorio Magano, empregado por ele na mansão de campo de Berlusconi de 1973 a 1975, para cuidar ali do haras, e enfim condenado à prisão perpétua por dois homicídios de inspiração mafiosa. Morreu no cárcere há oito anos.

Penúltimo lance eleitoral do senhor da villa, dotada de 147 aposentos: a criação de um ‘exame de saúde mental’ para os promotores públicos. Revidou o atual ministro Di Pietro, que comandou a operação das Mãos Limpas: ‘Louco é ele’.

E o último lance, a resposta a uma carta de Veltroni, a propor um ‘pacto de lealdade’ em relação aos ‘valores da República’. Precedente: a ameaça do líder da separatista Liga Norte, Umberto Bossi, precioso aliado de Berlusconi e do seu partido, Povo da Liberdade, de ‘recorrer aos fuzis’ para impedir o uso da cédula eleitoral em vigor. A qual é exatamente aquela aprovada à época berlusconiana, quando a aliança da direita impôs a ditadura da maioria.

A Veltroni, Berlusconi responde: ‘Não posso receber esta carta, porque como pode um herdeiro do comunismo dar lições de lealdade?’ Como se vê, a campanha do Povo da Liberdade tem parentesco estreito com retóricas tidas como próprias de países subdesenvolvidos.

Admita-se, porém, que o centro-esquerda tem grave culpa em cartório. Quando foi governo, dos fins de 1994 a começo de 2001, e de abril de 2006 a começos de 2008, não soube promover a reforma da lei eleitoral, tampouco a aprovação de uma lei sobre o conflito de interesses. Com isso, o espertalhão está a um passo do poder, e a Itália prova sua imaturidade política.’

 

TELEVISÃO
Nirlando Beirão

TV mulherzinha, 11/4

‘Não existe a menor dúvida a respeito da inclinação sexual do canal GNT (41, na Net). Adora mulher. É como esses livrinhos de capa ou título cor-de-rosa que exploram, em bancas de revista e livrarias de aeroporto, o filão editorial das menininhas moderninhas, netas espirituais da Big Loira Dorothy Parker (ainda que jamais tenham ouvido falar em Dorothy Parker) e filhas, de corpo e alma, daquela Candace Bushnell que inspirou o seriado Sex & The City. Muita fantasia, bastante palavrório – e sexualidade com malagueta.

Bonitinhas, cosmopolitas, energéticas, competitivas, equilibrando-se em stilettos de grife e desequilibrando-se no angustiante paradoxo da cultura girlie: são tão independentes, tão liberadas, que a única experiência que lhes falta, e que elas tanto ambicionam, é um homem para chamar de seu. De preferência, para todo o sempre. E com direito a discutir a relação sempre que der na telha.

Elas têm tudo e, de repente, é como se não tivessem nada. Saia Justa, que a GNT apresenta desde 2002, com periódicas mudanças de time, é a cara disso. Não é um programa de tevê, embora também não seja um manifesto feminista. É a sala de espera da dermatologista ou do ginecologista. Em vez de abrir a revista Caras, você fica de conversinha. É fútil e, quando a inefável progesterona ferve, também pode ficar sério. Mas você sai de lá e é como se nada tivesse acontecido.

Happy Hour é que é um achado. O horário – 7 da noite – pressupõe a maturidade sofrida daquelas donas de casa que choferam o jantar de monstrinhos famélicos, mas, com a espontaneidade de programa ao vivo e a perspicácia de Astrid Fontenelle, Happy Hour sempre consegue driblar sua triste sina. Saiu Astrid e assumiu Lorena Calábria, com aquela sua vivacidade calorosa e inteligente. O canal GNT anuncia: ‘As mulheres não são todas iguais’. Às vezes – e isso é um elogio – nem dá para reparar.

O GNT é tão cor-de-rosa que os homens, quando existem, se submetem (como o Fred Lessa do Happy Hour, sempre no adequado papel de coadjuvante). Falam, falam e falam, enquanto tecem seu tricozinho. Os menininhos do Manhattan Connection, por exemplo, parecem umas menininhas.’

 

 

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