A imprensa nacional começa a perceber que seu conveniente silêncio está sendo forçosamente rompido pelos fatos que têm se sucedido em relação ao ‘Tratado Internacional’ firmado no Vaticano, em novembro de 2008, pelo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, em nome do Estado brasileiro, e o papa Bento 16, Joseph Ratzinger, representante legal do Estado da Santa Sé, e que resultou no que a CNBB tem denominado Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil, em função da polêmica que tem acontecido no Congresso Nacional, o qual possui a legalidade para homologar referido Acordo Jurídico, diante da contundente manifestação contrária de representantes de diversos grupos religiosos e defensores do Estado laico, que é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil.
Este trará benefícios concretos para o clero romano, os quais não são extensivos aos demais grupos religiosos do país, ferindo um princípio jurídico caríssimo ao nosso sistema republicano, que é princípio da isonomia, ou seja, todos os grupos religiosos devem ser tratados pelo Estado de maneira igual, em que pese termos todo respeito pela história, tradição, e, o fato da fé católica representar a opção religiosa da maioria do povo brasileiro, contudo, cremos que o Congresso Nacional não irá ratificar esta ‘concordata’, sob pena de, se o fizer, estar desrespeitando a Constituição Federal de 1988.
Estado ateu e Estado confessional
É importante lembrar que nosso país já adotou o Estado Confessional no período do Brasil-Colônia, de 1500 a 1824, e no Brasil-Império, de 1824 a 1891, quando a religião católica era oficial, como ainda hoje acontece em lugares existe uma religião oficial, tais como, o catolicismo na Argentina, ou na Inglaterra onde a religião anglicana é oficial, e em países islâmicos, os quais consideram a opção religiosa até para efeitos de exercícios de cargos no serviço público, ou em Estados onde se vive o ateísmo como ideologia oficial.
O princípio da Separação Igreja-Estado, vigente em nosso sistema constitucional desde 1891, mantido em todas as constituições seguintes, e de forma contundente na Carta Magna de 1988, fundamenta o Estado Laico, ou seja, o Estado sem religião oficial, sendo uma das maiores conquistas da humanidade, eis que este tipo de construção jurídica nosso país herdou da visão francesa, ‘Liberdade, Igualdade e Fraternidade’, é exatamente o meio termo, entre o Estado ateu e o Estado confessional.
No Estado ateu impõe-se que a religião deve ser negada e perseguida pelos órgãos oficiais, numa visão unicamente materialista da vida, e com proibições para que os cidadãos possam expressar sua fé de forma pública, na perspectiva de que Deus é uma criação da mente humana e deve ser apagada das esferas sociais, sendo as pessoas incentivadas a buscar o relacionamento numa ótica tão somente humanística e existencial.
Já no Estado confessional há uma espécie de confusão entre os órgãos da administração pública, os poderes executivo, legislativo e judiciário, que são as representações do Estado, e uma determinada religião, sendo esta a religião oficial, pelo que deve ser obrigatoriamente seguida por todos os cidadãos, sendo proibida a opção por qualquer manifestação espiritual que não seja aquela que é professada pelo governo, para todos os efeitos legais.
Tratamento jurídico diferenciado
Desta forma, o Estado laico é o que proporciona o equilíbrio do exercício de fé entre os cidadãos, seja porque não persegue ou proíbe qualquer manifestação religiosa, seja porque não adota oficialmente através de seus órgãos representativos qualquer opção espiritual em detrimento das demais, independente de sua tradição histórica, tamanho do patrimônio, quantidade de fiéis, poderio econômico ou influência política, ao contrário, em nosso caso, com base na Constituição Federal de 1988 é dever do Estado proteger todas as confissões religiosas, inclusive cidadãos ateus e agnósticos.
Por isso, a conquista deste Estado sem religião oficial, em nível constitucional, apesar de todas as suas imperfeições, especialmente na inexplicável, sob o prisma da laicidade, existência dos diversos feriados religiosos, e ainda, na tolerância, que fere o princípio da separação Igreja-Estado, de símbolos místicos em prédios e repartições públicas, é um marco legal que não deve ser flexibilizado de forma alguma, exatamente porque ele é a garantia jurídica da convivência pacífica entre os religiosos brasileiros de todos os matizes de fé.
A Constituição Federal de 1988 é peremptória em seu, artigo 19, ‘É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – Estabelecer cultos religiosos, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público; […]’, e sobretudo no artigo 5º – Cláusula Pétrea -, incisos VI, VII e VIII.
É importante frisar que a Santa Sé é pessoa jurídica de direito internacional público, com sede no Vaticano, que representa de fato e direito a Igreja Católica Apostólica no Mundo, e por isso, este acordo internacional remetido para ser referendado pelo Congresso Nacional, institui um tratamento jurídico diferenciado entre os grupos religiosos na nação brasileira.
Prerrogativas de chefe de Estado
Em nosso sistema jurídico todas as religiões estão igualadas e são sujeitas a regulamentos, tanto por normas constitucionais, como por leis ordinárias vigentes, sendo ao Estado proibido intervir em questões religiosas, espirituais ou de fé, mas devendo normatizar e mesmo fiscalizar a atuação das igrejas e organizações religiosas, nas questões civis, associativas, trabalhistas, tributárias, criminais, administrativas, comerciais, financeiras etc., enquanto agentes atuantes na sociedade civil organizada.
Enfatizamos que nosso foco é tão somente jurídico, pois os demais grupos religiosos, sejam judeus, evangélicos, mulçumanos, espíritas, orientais etc., ou mesmo, ateus e agnósticos, não possuem uma instituição com ‘status’ de Estado internacional que os representem, assim, não haverá possibilidade legal destes pactuarem acordos semelhantes, por isso ele é inconstitucional, eis que rompe com o princípio da isonomia estabelecido na Constituição Federal.
Por isso, ressaltamos que não existem questões religiosas sendo debatidas, e sim, aspectos jurídicos, eis que, vivemos em um país onde temos uma ampla liberdade religiosa, em que todas as pessoas e grupos religiosos usufruem o direito de expressar a sua fé, exercendo sua espiritualidade de forma privada ou coletiva, individual ou publicamente, devendo respeitar os limites impostos pela lei para todos os cidadãos.
Registre-se que, em função do Tratado de Latrão, foi formalizada a existência do Estado da Santa Sé, firmado em 1929, por Benedito Mussolini e o papa Pio 11, por isso, após a eleição pelo Colégio de Cardeais, como determina o Código Canônico, o cardeal Joseph Ratzinger, papa Bento 16, além de líder religioso mundial da Igreja Católica Apostólica Romana, também possui as prerrogativas legais de chefe de Estado.
Requisitos do Código Civil
Acentuamos que este mesmo tipo de tratado internacional é pactuado pela Santa Sé, que é um Estado soberano, para todos os efeitos legais, sendo seu território o Vaticano, em que pese seu tamanho, menos da metade de 1km², localizado na cidade de Roma, capital da Itália, com outros Estados (países), tal como Portugal, onde juristas do nível do professor-constitucionalista Joaquim José Gomes Canotilho, entende ser inconstitucional.
Assim é preocupante quando a República Federativa do Brasil aceita pactuar um Tratado Internacional com o Estado da Santa Sé, desconsiderando o princípio da Separação Igreja-Estado, estabelecido em 1891, instituindo um tratamento diferenciado do já contemplado na Constituição Federal e pelas leis ordinárias para todos os grupos religiosos, propiciando verdadeiramente um novo Estatuto da Igreja Católica Apostólica no Brasil.
Apontamos algumas das incoerências jurídicas contidas no acordo internacional, e das efetivas consequências legais para o exercício da fé nas diversas manifestações espirituais, que em face de questões históricas serão alijadas de usufruir os benefícios concedidos a Igreja Católica no Brasil, inseridos no instrumento legal que contém 20 artigos, o qual pode ser acessado na íntegra no portal do Ministério das Relações Exteriores.
Entre outros ressaltamos o artigo 3º, que reafirma a personalidade jurídica da Igreja Católica e de suas instituições, como a CNBB, dioceses, paróquias, prelazias territoriais ou pessoais, institutos religiosos etc., contido no seu parágrafo 2º, que estas deverão obedecer a legislação brasileira para efeitos de criação, modificação ou extinção, reconhecendo a submissão destas cumprimento dos requisitos contidos no Código Civil, com relação as Igrejas e Organizações Religiosas.
Incoerência jurídica
No artigo 6º é estabelecido que o Estado passe a colaborar na preservar o patrimônio cultural, histórico e artístico, e para tanto é claro despenderá de verbas públicas; no artigo 11, que regulamenta o ensino religioso, constituindo disciplina nos horários normais do ensino fundamental das escolas públicas de ensino fundamental; no artigo 12, que prevê que as sentenças dos tribunais eclesiásticos tenham validade jurídica em matéria matrimonial, sendo estas equiparadas, para todos os efeitos legais, as exaradas pelo Poder Judiciário pátrio.
Destacamos que no artigo 14, o qual fixa que nos Planos Diretores das Cidades deverão ser reservados espaços destinados a fins religiosos ao culto católico; no artigo 15, a imunidade tributária das pessoas jurídicas eclesiásticas, sendo esta extensão do título de filantropia concedido só pelo fato de ser uma entidade católica apostólica ligada ao clero romano, quando no caso das demais confissões religiosas esta permanece restrita tão somente as Igrejas, e todas as demais instituições, religiosas ou não, permanecerão necessitando enfrentar um salutar processo administrativo de comprovação de sua efetividade social, para que receba o beneplácito fiscal.
E, ainda, no artigo 16, traz uma das grandes inovações que procura ‘blindar’ a Igreja Católica de Ações no Judiciário Trabalhista, quando pretende que os princípios do direito do trabalho, os quais norteiam as relações laborais sejam olvidadas no que tange aos padres e suas dioceses, bem como, religiosos e religiosas que labutam em seus respectivos institutos aplicando-se lhes a Lei do Voluntariado, à qual não contempla a atividade religiosa.
Alguns juristas sustentam a vigência do Decreto-Lei 119-A, de 1890, quando ele em seus artigos 5º e 6º assegura a continuidade do sustento eclesiástico que os religiosos recebiam do governo do Império, contudo ele manteve esta incoerência jurídica, que é inconstitucional, por isso, o Estado laico que nasce com a Constituição Republicana de 1891, e no artigo 20 do acordo consta que as situações jurídicas existentes e constituídas ao abrigo deste decreto do governo provisório sejam ressalvadas.
Ação de inconstitucionalidade
Ainda neste artigo 20, é reiterado de forma inconstitucional um tratado internacional firmado em 1989, entre a Santa Sé e o Brasil, com relação as Forças Armadas, na qual os capelães evangélicos são chefiados por um ordinariado católico, estabelecendo um privilégio no comando da assistência religiosa nas Forças Armadas, o qual também fere o princípio da isonomia constitucional, já dentro da vigência da Carta Magna de 1988.
Assim, a laicidade vigente na nação brasileira, que faz do Brasil, um país sem religião oficial, ficará ameaçada se aprovado o acordo internacional firmado pelo governo federal com a Santa Sé, pelo órgão que a Constituição em seu artigo art. 84, inciso VIII, concede poderes específicos para homologá-lo, anulará de forma definitiva o Princípio da Igualdade Constitucional das Religiões em nosso país, as quais são igualadas pelas normas legais.
Desta forma, entendemos singelamente, que se o Congresso Nacional ratificar este Novo Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil, restará tão somente as lideranças religiosas de todas as outras expressões espirituais impetrar uma ADI – Ação Declaratória de Inconstitucionalidade do Acordo Jurídico junto ao Supremo Tribunal Federal, o qual é o único órgão que poderá manter o princípio da Separação Constitucional Igreja-Estado, resguardando a laicidade do Estado brasileiro conquistado na Constituição Republicana de 1891, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil.
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Mestre em Direito, professor universitário, conselheiro estadual da OAB-RJ, sócio efetivo do Instituto dos Advogados Brasileiros e especialista em Direito religioso