Recentemente, foi publicada no jornal Estadão (15/09/2008) uma polêmica sobre o uso de algemas, envolvendo duas psicólogas da Polícia Federal e dois renomados psiquiatras forenses de São Paulo e do Rio. De um lado, as psicólogas defendiam o uso da algema como procedimento padrão, aventando como tese contrária a ‘impossível missão imposta ao policial’ ao ter que deliberar, no calor dos fatos, sobre seu uso ou não. De outro lado, estavam os respeitáveis psiquiatras forenses criticando as generalizações e padronizações indevidas.
Talvez as psicólogas, como bem disse dr. Guido Palomba, ‘forçassem um pouco a barra’, ao citarem um punhado de teorias científicas – biológicas e psicofisiológicas – para defender seus pontos de vista. Talvez o psiquiatra Talvane de Morais tenha razão ao declarar, não sem certa malícia, que as psicólogas argumentavam pro domo sua, já que fazem parte dos quadros da Polícia Federal e, por este motivo, apresentaram uma tese ‘consentânea com o local onde trabalham’. Ainda no campo das hipóteses, é possível também que os psiquiatras, ao polemizarem, estivessem imbuídos apenas daquela velha rixa que nutrem pelos psicólogos, e com os quais sempre disputam tacanhamente seus nichos de mercado.
Deixemos de lado, entretanto, as conjecturas. O que causa espécie é ver o dr. Palomba argüir no sentido de que ‘o policial, por ser policial, tem de ter a capacidade de mensurar se aquele indivíduo vai ter esta ou aquela reação e quando usará a algema’. Não sei quais outras expectativas irreais este senhor deposita na figura do policial, porém, sustentar a falácia de que o ‘policial, por ser policial’ – desconsiderem a tautologia – deva possuir tamanha capacidade premonitória soa como uma exigência absurda, a qual toda prudência recomendaria não fosse feita sequer aos seus próprios colegas de ofício.
Inconstância do senso comum
Não sei se os psiquiatras conhecem com propriedade quais são as habilidades necessárias para formar um policial – e não torná-lo uma espécie de super-herói. O fato é que nem mesmo os estudiosos da alma humana têm essa alardeada capacidade de mensurar – observe o rigor! – qual será a reação deste ou daquele indivíduo em uma dada circunstância. Convenhamos! É até possível mensurar alguns estados emocionais (vamos lá…); contudo, não acredito na possibilidade de se prever tão acertadamente o comportamento humano, a não ser por meio de probabilidades muito remotas e cambiantes. Os seres humanos, afinal, não são ratos de laboratórios.
Já dizia Chamfort que só conhecemos o verdadeiro caráter de um sujeito quando está a um passo do cadafalso. Algo semelhante ocorre no momento de sua prisão. Tudo isso para dizer que as situações-limites ocasionam nas pessoas as mais inesperadas reações, e não creio que haja alguém neste mundo, psiquiatra ou não, capaz de prevê-las (com a devida vênia para Mãe Dináh).
É curioso ver como certas pessoas mudam de opinião ao sabor do momento. Embora ostentem a imagem de paladinos da ciência, a plasticidade de suas idéias iguala-se à inconstância típica do senso comum. Esse parece ser o caso do dr. Palomba.
Desonestidade intelectual
Em entrevista à revista Época em 04/04/2008, ao discorrer sobre alguns atos cruéis praticados por pais contra os próprios filhos, o psiquiatra foi questionado pelo repórter: ‘É possível saber de antemão que tipo de pessoa seria capaz de atitudes tão agressivas?’. Eis a resposta do ilustre doutor, com uma posição completamente diversa sobre a previsibilidade do comportamento humano:
‘Não há como dizer [Bingo!]. Há algum tempo criei uma expressão, a condutopatia – que hoje em dia está no Dicionário Aurélio –, que significa aquele indivíduo que está numa zona entre a normalidade e a doença mental. Mas isso não é visto a `olho nu´. Aparentemente, são como qualquer outra pessoa, mas têm distúrbios de conduta e são capazes, num momento específico, de praticar atos anormais como jogar algo pesado em cima do próprio filho ou jogá-lo no fundo de um poço num ato de fúria [se fazem isso com o próprio filho, fico imaginando o que não fariam com os policiais]. Há três características marcantes nos condutopatas: o egoísmo, a necessidade de satisfazer seus interesses e as falhas nos valores éticos e morais’ (grifo nosso).
Desconsiderando o extremo mau-gosto na escolha do termo ‘condutopatia’, do qual ele se gaba de constar no dicionário, a verdade é que a patologia por ele descrita não passa de uma cópia pirata do já conhecido transtorno borderline (fronteiriço), ao qual deu nova roupagem na tentativa auto-promocional de transfigurar um simples plágio em descoberta científica. Esse pecadilho é até desculpável, se o compararmos ao casuísmo de sua crítica às psicólogas da Polícia Federal. Ao conferir inquestionável previsibilidade às reações de um indivíduo no momento de sua prisão e – o que é pior –, ao exigir dos policiais esse verdadeiro tour de force visionário (pois espera que estes profissionais, no calor da situação, possam antever o que nem ele mesmo consegue vislumbrar na tranqüilidade de seu consultório), o sr. Palomba dá um inequívoco atestado de desonestidade intelectual.
Insensatez abominável
Em outra entrevista de 09/08/2006, agora à revista Veja (sim, ele adora uma audiência!), afirmou: ‘Se um médico esquece uma gaze no abdome do paciente, pode até perder o registro. Alguns laudos equivalem a isso’ (referindo-se a laudos periciais de alguns psiquiatras). Ora, se psiquiatras fazem laudos com a mesma perícia de quem esquece uma gaze no abdome do paciente, não se pode admitir de bom grado que se arroguem o direito de opinar – e com presunçosa autoridade! – sobre questões de segurança que dizem respeito exclusivamente a policiais. Se erram ao fazer cirurgias ou laudos periciais, convém que se abstenham, a fortiori, de meter o bedelho na seara alheia. Nós, policiais, por exemplo, só realizamos um parto quando, por razões alheias à nossa vontade, nos vemos na absoluta impossibilidade de adiá-lo até a presença de um médico. Mas a prudência aconselha que os policiais evitem quaisquer veleidades médicas, muito embora a sabedoria popular nos faça crer que ‘de médico e louco, todo mundo tem um pouco’.
O espetáculo mais lamentável é ver um psiquiatra forense colocando seu prestígio acadêmico a serviço de uma causa cujos maiores beneficiários são pessoas que, sem o menor escrúpulo, roubam e saqueiam há décadas esse pobre país. No Japão, se um indivíduo é flagrado em ato de corrupção, sente tamanha desonra frente a seus pares que não lhe restará outra saída senão o harakiri (suicídio). Aqui, desde tempos imemoriais, indivíduos dessa estirpe são objetos da mais alta lisonja; freqüentam colunas sociais e gabinete de autoridades, sem nunca serem minimamente importunados. Porém, no exato momento em que são presos e lhe pomos as algemas, tratando-os como criminosos que são, sobem nas tamancas e fazem pose de dignidade ofendida, angariando a simpatia suspeita de magistrados e setores da mídia. Com toda essa benevolência, passam de bandido a mocinho num simples estalar de dedos, antes mesmo que seu exército de advogados faça uma simples consulta ao vade mecum. E toda essa bandalheira ocorre ante os olhos atônitos do povão que, há séculos, clama por justiça nesse país.
É óbvio que toda pessoa deve ter preservada sua imagem e seu brio. A exposição vexatória é em si mesma deplorável (com a palavra, a mídia televisiva). Porém, inverter a escala dos valores ao ponto de colocar as suscetibilidades de criminosos acima da segurança pessoal do policial, isto é, do seu elementar direito à vida e incolumidade física, é de uma insensatez abominável.
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Psicólogo, Policial Civil do Distrito Federal e pós-graduando em Segurança Pública e Direitos Humanos pela Senap/Unieuro, Vicente Pires, DF