Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A arte de um imortal
por dois `sexagênios´

Hoje, dia 28 de setembro de 2008, acabo de assistir na TV Globo ao especial ’50 anos da Bossa Nova’, com as participações de Roberto Carlos e Caetano Veloso cantando as canções de Tom Jobim e seus parceiros.


Fiquei profundamente emocionado e maravilhado com as performances de todos os envolvidos no espetáculo: intérpretes, músicos, arranjadores, câmeras, editores, mas especialmente de Roberto Carlos.


Imaginei o que passava pela cabeça desse artista extraordinário. Talvez um filme em preto e branco que começa em Cachoeiro de Itapemirim, no princípio, ainda criança, um talento local cantando na rádio e TV, a viagem a Niterói, com quinze anos, para começar a escrever uma singular biografia, recheada, principalmente no início da trajetória, de muita solidão, portas fechadas, negativas, sofrimento, decepção, preconceito, mas de muita garra, disciplina, seriedade, obstinação e talento.


Roberto, no início da década de 60, cantava, na legendária boate Plaza, no Rio, as canções do Tom e da bossa nova, ao estilo do João Gilberto, como todos os outros bossa-novistas, cariocas de classe média alta, que eram profundamente influenciados pelo gênio inventor do baiano Joãozinho. Roberto não era diferente. Sempre, desde criança, era muito musical e sabia distinguir a música de qualidade que se produzia então. Quando João surgiu, Roberto se encantou com ele também, mas era um menino de origem humilde, do interior do Espírito Santo, deficiente físico, caipira e desconhecido. Não foi aceito pela turminha de privilegiados cariocas da zona sul.


Comédias criativas


E aí eu faço um parêntese. O show que assisti agora na TV não deve ser considerado de bossa nova. Isso é um vício da indústria fonográfica, do marketing, da imprensa e de seus críticos e colunistas, de rotular manifestações de arte para lhes dar substância e relevância histórica e para também, atendendo às exigências de mercado, criar uma marca para os produtos comercializados: seção de música ‘bossa nova’, seção de música ‘Jovem Guarda’.


Os publicitários, senzibilizados, agradecem, como ficou demonstrado num filme do Banco Itaú que assisti hoje no break comercial, onde o ‘Samba de Uma Nota Só’ virou um jingle bossa nova, relacionando a ‘nota só’ musical com ‘nota só’ dinheiro. Será que Tom e Newton Mendonça aprovariam essa ‘presepada’ publicitária? Mas that’s reality, folks, e há aqueles que sem participarem do processo criativo da cultura brasileira, por circunstâncias óbvias são induzidos e capacitados a ‘criarem’ também. ‘O primeiro a gente nunca esquece’, ‘o negócio é ter vantagem em tudo’, ‘brahmeiro’, ‘a número um’, ‘paixão nacional’ (ah, bem-vinda a lei seca…), e outras pérolas da ‘cultura’ midiática e mercadológica brasileira que vêm sendo esculpidas nas últimas décadas, colaborando para as conhecidas mazelas sociais deste país, carente de educação, saúde e cultura.


Da mesma forma que equivocadamente transformaram as deliciosas, contestadoras e criativas comédias cariocas dos anos 70, produzidas em plena ditadura militar, em ‘porno-chanchadas’, como erroneamente já chamavam de ‘chanchadas’ os geniais filmes de Oscarito e Grande Othelo, dirigidos, entre outros, por Watson Macedo e Carlos Manga.


Jobim teria adorado


A música que eu ouvi hoje na TV não era simplesmente bossa nova, mas belíssimas, clássicas e universais composições brasileiras criadas por Tom Jobim, nosso compositor mais reverenciado e gravado no exterior, muitas delas inspiradas e influenciadas pela cadência e ritmo do genial João Gilberto. E esses brasileiros são muito mais do que bossa nova; representam dois dos maiores nomes da música brasileira do século 20.


Estou lendo um ótimo e revelador livro de Zuza Homem de Mello sobre o assunto e não posso deixar de admitir que a turma da ‘bossa nova’ era composta por gente muito musical e talentosa, onde eu destacaria a obra de Carlinhos Lira e algumas canções de Menescal e Bôscoli e dos irmãos Valle. Vinicius de Morais, Baden Powell, Johnny Alf, Silvinha Telles, Milton Banana, Tamba Trio, Os Cariocas, Edison Machado, Dom Um Romão, Tião Neto, Maysa, Alaíde Costa, Nara Leão, Claudette Soares, Doris Monteiro, Moacir Santos e João Donato, entre outros, são hors concours, grandes artistas que não precisam de movimento nenhum para se escorarem.


Agora que existe um monte de gente nesse mundão de Deus com talento e autoralidade discutíveis que tem se utilizado, muitas vezes indiscriminada e abusivamente, desse expediente, dessa catalogação, do ‘gênero’ bossa nova, para, parafraseando Jobim, ‘fazer um dinheirinho nesse negócio’, ah isso existe!


Roberto Carlos, desprezado pela elite bossa novista, seguiu viajando de fusquinha pelo Brasil, fazendo shows em circos e teatros, até se transformar no ícone que é há mais de quarenta e cinco anos! Uma história inédita e milagrosa. Nesse especial de hoje, gravado num teatro formado por uma platéia reverenciosa composta principalmente pelas elites cariocas e paulistas, Roberto, jovem e fidalgamente trajado, interpretou lúdica e impecavelmente as canções de Tom (cinqüenta anos depois dos tempos do Plaza…). Tom Jobim teria adorado. Podia quase se ver a aura, a alma de Tom nos olhos brilhantes e no sorriso de aprovação de seu belo e sensível neto Daniel. Tenho a convicção também, de que se João Gilberto assistiu, adorou.


Boca torta e beicinho


A frase melódica do Samba do Avião, ‘dentro de mais um minuto estaremos no Galeão’, milhões de vezes já cantada, soou, na voz de Roberto, a mais bonita que ouvi na vida, assim como Eu sei que vou te amar. Ninguém cantou essa canção tão bonito. Os seus músicos, a quem Roberto tem sido fiel há décadas, foram espetaculares. Destaco Eduardo Lages, que brilhou ao piano, em Corcovado e Samba do Avião. Norival, o baterista, estava em noite inspirada e tocou lindamente. E que maravilha ver e ouvir o piano a quatro mãos, tocado pelo parceiro de toda vida de Roberto, o maravilhoso pianista Wanderley e pelo Daniel Jobim no clássico samba, grande divisor de águas, Chega de Saudade, que fechou com chave de ouro o espetáculo.


In my humble opinion, da mesma forma que Roberto transcendeu anos-luz a ‘Jovem Guarda’, Caetano também está flutuando há muito tempo na estratosfera do movimento tropicalista, ou seja, sua bela obra é ‘música e poesia caetana’, não simplesmente a tal tropicália de 68. Na época, ainda criança, curtia mais ouvir Roberto e Erasmo Carlos, os Beatles, Rolling Stones, Bob Dylan, Donovan, Jimi Hendrix, John Sebastian, Cream, Janis Joplin, The Doors, Chico Buarque, Edu Lobo, Wilson Simonal, Erlon Chaves, Quarteto Novo, Milton Nascimento, Sly Stone, Curtis Mayfield, Ray Charles e Jeff Beck. Mas Caetano sempre foi arrojado, inteligente, criativo e incendiário.


Também foi super-patrulhado por muita gente, com a velha história das guitarras elétricas e do Proibido Proibir, e foi um dos primeiros a reconhecer, com seu faro visionário e ‘vampiro’, o valor artístico de Roberto Carlos, que o acabou influenciando. E Tropicália era tão Sargeant Peppers e Donovan que, enquanto outros exilados iam pra Cuba, Chile, França etc., Caetano e Gil foram pra London, London… E a turma da bossa nova fazia boca torta e beicinho para o novo baiano e só viam relevância na sua música de cunho bossa-novista dos primeiros tempos, como em Coração Vagabundo e Avarandado. Mas, ‘num sol de quase dezembro’, surgiu Alegria, Alegria


Nosso mestre soberano


Hoje, Caetano, nesse raro especial, cantou lindo Por toda Minha Vida e parecia um chansonnier francês na encantadora e expressiva interpretação de O Amor, o Sorriso e a Flor. Até ensaiou uns passos de ‘samba no sapatinho’, que parecia vir emprestado das comoventes cenas do seu único e belo filme, Cinema Falado, onde seu irmão dança lindo ao som de João Gilberto.


Os craques musicais, entre outros Carlos Malta, Paulo Braga, Daniel Jobim e toda orquestra capitaneada pelo maestro e cellista Jacques Morelenbaum, pareciam uma ‘barca do sol’ navegando pela nossa Pindorama através das belas e eternas partituras de Tom Jobim.


Ter o privilégio de ter assistido hoje na TV aberta a um inédito encontro de dois intérpretes da estatura e da envergadura desses dois artistas inimitáveis me fez pensar em Fellini, Chaplin e Arrelia e nesse universo mágico dos solitários poetas trans-carismáticos, trans-parentes e sensitivos, mas profundamente enraizados na sacralidade do artesanal e elaborado ofício de en-cantar, e que prazer inebriante foi contemplar esses dois clowns que ‘são os seres humanos ao avesso’, segundo o poeta Antonio Turci, criando, simples e elegantemente, interpretações magistrais e definitivas da obra do mestre soberano, Antonio Brasileiro.

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Músico