Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um brinde, com amor ou não

Eu lembrava direitinho da cena de Ulisses Guimarães dizendo ‘Declaro Promulgada…’, mas o YouTube me trouxe informação que não acessava: a última frase do Senhor Diretas, com a Carta na mão, foi ‘Que Deus nos ajude a que isso se cumpra’. Pois faz vinte anos e eu, como me cabe, fiquei remoendo o lado ruim das coisas porque, de todo o banquete da democracia, só conseguia ver as migalhas dormidas daqueles direitos que em 1988 foram aclamados com alegria. Achava que, se o velho Ulisses estivesse vivo, aplaudiria menos e alertaria mais para o fato de que a Constituição era apenas o primeiro passo de uma caminhada de um atleta que, simplesmente, hoje perdera o fôlego.

Pensei que engolira o discurso igualitário da Constituição com a mesma passividade com que engoli a história de que um vento minuano arrebatara o helicóptero onde Ulisses se encontrava, atirando-o ao mar. E ainda que, logo depois acidente, Netuno saíra de seu reino para seqüestrar o corpo do estadista porque, de todos os ocupantes do avião-de-rosca, o dele foi o único que desapareceu, com todos os seus pertences… De modo análogo, durante algum tempo imaginei que, como cidadão, ao longo do tempo o discurso da carta magna se subvertera e cada direito consagrado, pouco a pouco, deixara de ser uma meta para ser um alucinógeno, a pequena poção de ilusão que concede a aparência de direito consagrado o que, em sua origem, era assumidamente mera expectativa.

Direitos levemente comprimidos

Mas (claro) deixei isso pra lá, para guiar-me por uma mão que, hoje, me leva para qualquer lado que queira. Melhor assim.

Mudei de opinião porque é tempo de celebração: sorte que temos a Constituição. Gosto muito dela e creio que, às vezes, é minha melhor terapeuta. Outro dia, abri a revista e vi as provas de que a Agência Brasileira de Informação espiona o chefe do Judiciário nacional (mais uma vez, óbvio, à revelia do presidente da República, que não sabe de nada). Achei horripilante a notícia, digna das piores anedotas da KGB, mas me confortei quando li, na CF88, com redação escorreita, a consagração do direito à intimidade (5º, X) e a enunciação de que os Poderes da União são ‘independentes e harmônicos entre si’ (2º). E, para me deixar ainda mais feliz, vi na minha doutrina que os Direitos Fundamentais independem de regulamentação porque são auto-aplicáveis. Ufa!

Porque isso deve significar também que, desde 05 de outubro de 1988, é aplicado sem óbices aquele artigo que dispõe que ninguém será submetido à tortura (5º, III) ou tratamento degradante. Isso faz com que esteja coberto de razão aquele promotor de Justiça que afirmou por aí que todo réu alega que apanhou na polícia para confessar crimes – pura mentira, estratégia da defesa. Tampouco deixo de considerar que esses direitos fundamentais, por conta do implícito princípio da proporcionalidade, podem ser levemente comprimidos, em nome de interesses maiores e coletivos, como o da segurança pública. A exemplo daquela menina de quinze anos que, por ordem de uma representante da polícia e outra do Poder Judiciário no Pará, ficou 24 dias presa com homens na cela (5º, XLVIII, XLIX), decerto porque ocultou das autoridades a sua verdadeira idade (28), ou porque necessitava de uma lição – e que lição – para ‘pensar no que fez’. E, se nesse caso houve algum erro (quem é infalível?), tenho certeza de que as autoridades envolvidas foram ou estão sendo severamente punidas, pois minha Carta diz serem todos iguais perante a lei (5º, caput).

Mentiras sinceras

Creio nessa igualdade porque vejo se aproximar também a rígida punição aos envolvidos no episódio do mensalão, cortando na própria carne e doendo a quem doer, do mesmo modo que creio na soberania nacional (1º, I) quando percebo que é meramente ilusória a idéia de que o Estado não entra no Morro do Alemão. Afinal, o que existe ali é uma mera diferenciação didática entre vigência e eficácia da lei, que qualquer estudante de IED entende. E, quando eu, em São Paulo, abandonei meu escritório numa tarde de maio de 2006, em obediência a um toque-de-recolher ordenado pelo PCC, foi porque ainda não compreendia bem o que era uma norma programática, já que a pátria me ama como a um irmão e, ao fim e ao cabo, todo poder é exercido pelo povo (1º, § único).

Se tivesse ânimo, faria uma festa no meu apê em comemoração ao aniversário da CF, ainda que fosse só para lembrar que, de mais a mais, todos os que redigiram seus cânones (alguns deles meus amigos hoje) ou se encarregam de fazê-la cumprir, foram ou são bem-intencionados. E levantaria um brinde a seu texto, por sua eficácia simbólica, apoiado na minha consagrada liberdade de expressão (5º, IV); e instigaria meus fiéis leitores a revisarem todas as suas linhas outra vez, a fim de colherem outras tantas mentiras sinceras e, com elas, apagarem as 20 velinhas da nossa maior abandonada.

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Professor doutor de Direito Penal da Universidade de São Paulo, membro da União Brasileira de Escritores, autor de Argumentação Jurídica: Técnicas de Persuasão e Lógica Informal e da novela A Hora do Carvoeiro