A edição da revista britânica The Economist (2 a 8 de outubro), cuja capa ilustra o caráter de beira de abismo para a atual crise econômica, traz em sua seção de ciência um artigo sobre um tema que geralmente inspira uma situação semelhante para jornalistas que se defrontam com um complicado tema da medicina.
O assunto é a definição científica de morte. O título do artigo, ‘O death, when is thy sting?’ (Morte, onde está o teu aguilhão?), é uma alusão à passagem 15,55 da Primeira Epístola aos Coríntios, do apóstolo Paulo, que aborda a ressurreição. No entanto, apesar da excelência da cobertura de ciência desse semanário, o texto não cumpre a promessa implícita em seu título de remexer o tema, que foi reativado no plano da opinião pública em 3 de setembro pelo editorial ‘I segni della morte’ (Os sinais da morte), do jornal L’Osservatore Romano, órgão oficial do Vaticano.
As ponderações do artigo do semanário britânico são de ordem predominantemente ética. Apesar da importância que deve ser dada a essa abordagem, ela não tem sido muito convincente junto ao statu quo da medicina, principalmente em relação à maioria dos neurologistas e neurocirurgiões, que são os que têm a atribuição de diagnosticar morte encefálica. Além das considerações éticas e filosóficas, é necessário também levar em consideração os questionamentos que têm sido formulados desde o final do século 20 por neurologistas discordantes do establishment da medicina nesse tema. O assunto tem sido objeto de uma polêmica mantida longe da opinião pública em todo o mundo, como indicado no artigo ‘O tema espinhoso da morte cerebral‘, que tem uma contextualização dessa história.
A matéria da Economist informa sobre a publicação em agosto deste ano do artigo ‘The Dead Donor Rule and Organ Transplantation’, publicado pela revista científica norte-americana The New England Journal of Medicine, uma das mais respeitadas do mundo na área da medicina. O artigo, que não é uma pesquisa propriamente dita, mas um comentário, é assinado por Robert D. Truog, professor de anestesiologia e de ética médica da Universidade Harvard, e por Franklin G. Miller, professor do Departamento de Bioética dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos Estados Unidos.
Polêmica abafada
Além de citar en passant algumas objeções aos critérios vigentes de morte encefálica, o comentário de Truog e Miller — que é de agosto — aponta aspectos que a Economist mostra como não considerados no citado editorial do início de setembro do Osservatore. Um deles é o de que o mero retorno ao critério de cessação da atividade cardíaca para a definição de morte poderia trazer grandes complicações. Eles consideram hipóteses em que a morte seria, na prática, decorrente da simples decisão prévia de determinados pacientes de não serem reanimados e de poderem seus órgãos ser removidos para transplantes.
Salvo engano, a Economist parece ter superestimado o trabalho dos dois pesquisadores norte-americanos como suporte para uma crítica aos critérios vigentes de morte. Apesar da crítica de Truog a esses preceitos em seu artigo ‘Brain death: too flawed to endure, too ingrained to abandon’, publicado em 2007 na revista The Journal of Law, Medicine & Ethics, a tese central de seu manifesto recente em parceria com Miller é a necessidade de maior esclarecimento público sobre o consentimento informado e seu ‘potencial para maximizar a quantidade e a qualidade de órgãos disponíveis para aqueles que deles necessitam’.
O artigo do semanário britânico parece superestimar também a importância de um seminário a ser realizado em novembro no Vaticano para o tema delineado por seu criativo título. Embora o texto não o identifique nominalmente, deve certamente se tratar do encontro ‘A gift for life: Considerations on organ donation’, previsto para 6 a 8 de novembro em Roma, cuja programação não inclui debates sobre a definição de morte. O evento é promovido pela Pontifícia Academia para a Vida, Federação Intenacional de Associações Católicas e Centro Nacional de Transplantes da Itália.
No final das contas, as objeções científicas aos critérios de morte encefálica não têm sido devidamente consideradas tanto no âmbito acadêmico como na imprensa. Com o devido respeito aos atenciosos comentários do neurologista Célio Levyman à postagem de 09/09/2008 acima citada, em seu artigo ‘Comentários sobre morte encefálica‘ (Observatório da Imprensa, 16/9/2009), não têm sido registradas respostas de mérito para muitos desses questionamentos. A ciência permanece sem a discussão que deveria promover, e a imprensa, continua sem dar visibilidade a uma polêmica de interesse público dissimulada pela rotina da medicina.
Talvez, devido à surdez das leis para muitos temas cruciais, o melhor título para um artigo sobre toda essa história seria, com um certo desvirtuamento do seu sentido original, a frase seguinte à escolhida pela Economist na Primeira Epistola aos Coríntios: ‘O aguilhão da morte é o pecado e a força do pecado é a Lei’ [tradução de Estevão Bettencourt para a Bíblia de Jerusalém (São Paulo: Paulus, 2002, p. 2015)]
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Jornalista especializado em ciência e meio ambiente, editor do blog Laudas Críticas