É de não acreditar. Só depois que terminou a primeira coletiva formal do presidente Lula, na sexta-feira, 29, quando ele já se retirava do Salão Oeste (ou Leste, conforme o jornal que se leia) do Palácio do Planalto, uma repórter lhe fez a única pergunta que não poderia ter deixado de ser feita nos 79 minutos (ou 80, ou 115, conforme o jornal) da entrevista que ele levou 850 dias (ou 849, conforme o jornal) para dar.
Afinal, três dias antes (conforme todos os jornais), Lula tinha dito que o povo, em vez de ficar reclamando dos juros, devia ‘levantar o traseiro’ e ir atrás de crédito mais barato, mesmo porque, segundo ele, hoje em dia se pode abrir e fechar conta em banco pelo computador.
Mas nenhum dos 14 entrevistadores tomou a iniciativa de interpelá-lo sobre a expressão que se distingue de todas as impropriedades já proferidas pelo loquaz presidente nestes 28 meses de governo, por ter ofendido os sentimentos de muitos brasileiros, a julgar pelo aluvião de mensagens de protesto enviados à mídia – um fato sem precedentes, em se tratando de alguma fala de Lula.
‘O senhor acha mesmo que se o brasileiro levantar o traseiro os juros vão baixar’, perguntou a repórter, ao que o presidente devolveu, com reduza: ‘Responda você.’
A rigor, pode-se argumentar que a pergunta certa seria outra: não propriamente sobre a relação entre o estado do traseiro e o custo do dinheiro, mas sobre a reação indignada dos que se sentiram ofendidos pela forma com que o chefe do governo os culpou pelos juros extorsivos do cheque especial e do cartão de crédito.
Será que o presidente, com todo o respeito, não achava que era o caso de pedir desculpas aos brasileiros feridos no seu amor-próprio?, podia-se indagar dele. Mas, assado ou assim, o traseiro tinha que aparecer na entrevista, quantas e quaisquer que fossem as perguntas sobre o problema objetivo da política monetária e da ganhança dos bancos.
A ausência daquela palavra pode não ter preenchido uma lacuna, como seria o caso de dizer se se quisesse fazer sarcasmo, mas representa o ponto extremo da falta de combatividade – no sentido jornalístico, bem entendido – dos participantes da entrevista que entrou para a história da presidência Lula apenas porque ‘sempre tem uma primeira vez’, como ele chegou dizendo.
Meia mordaça
Pegar na veia de Lula, em vez de pegar leve nele, era ainda mais necessário por causa do pecado original do formato da entrevista – a proibição da réplica (embora transgredida sem maiores conseqüências por três perguntadores).
Essa meia mordaça, a impossibilidade de o autor da pergunta contestar de bate-pronto o que acabou de ouvir, permitiu a um político reconhecidamente bom de boca – apesar da ‘quase-lógica’ de suas falas improvisadas, no dizer de uma pesquisadora – dar um olé.
‘Excelente desempenho’, elogiou pouco depois na edição online da Folha de S.Paulo o colunista Kennedy Alencar. No dia seguinte, o insuspeitíssimo O Estado de S.Paulo, embora ressaltasse que ‘um chefe de governo precisa ser muito incompetente para sair derrotado de tais situações’, intitulou o seu editorial a respeito ‘O melhor do presidente’.
Segundo a unanimidade dos relatos e o que mostrou a TV, o entrevistado acusou o golpe apenas uma vez, quando o repórter Roberto Maltchik, da Rádio Gaúcha, representando também as oito outras emissoras credenciadas no Planalto, perguntou se ele dorme bem com ‘a realidade da população brasileira’ que tinha sido eleito ‘com a tarefa de melhorar’.
Mas o desconforto durou pouco. Em instantes Lula se refez do que talvez considerasse, no íntimo, uma provocação – e saiu declamando em 757 palavras o que o faz dormir ‘o sono dos justos todo santo dia’: melhorias no emprego, no salário mínimo, nas matriculas universitárias, no comércio exterior, na relação com o FMI, nos programas sociais… E encaçapou: ‘É para isso que eu trabalho, meu querido’.
Meia-verdade
Nessas horas é que a limitação do direito de pergunta do entrevistador mostra quanto vale. Pois mesmo que tivesse vindo para a entrevista com a lição na ponta da língua, só quebrando o protocolo o jornalista poderia contrapor ao presidente números como os que apareceriam no sábado na melhor matéria da imprensa sobre as suas incorreções – ‘Lula utiliza dado errado para defender o mínimo’, de Gustavo Patu, da Folha de S.Paulo.
O texto demonstra por que não fica em pé a afirmação de Lula de que ‘o Brasil vive hoje, talvez, um dos seus melhores momentos no que diz respeito ao salário mínimo’. Já o Globo, em matéria não assinada, destacou a ‘meia-verdade’ de Lula sobre a queda do déficit da Previdência. (Caiu em março sobre fevereiro, mas subiu na comparação com o primeiro trimestre de 2004.)
Ainda no Globo, o leitor Charles Marcel Paixão Milner flagrou a contradição de Lula que, segundos depois de dizer que o governo erra ‘muito’, saiu-se com um ‘é difícil reconhecer um erro num governo que acerta tanto’.
Com a regra do jogo francamente favorável ao presidente, os seus mais de 20 anos de janela ao microfone, os conselhos do seu personal trainer de mídia Duda Mendonça, podia-se passar perfeitamente bem sem o que a colunista Dora Kramer chamou de ‘reverência e, em alguns momentos, franca amabilidade dos entrevistadores’. De fato, faltou clima para as ‘cobranças mais fortes’ que seriam de desejar.
‘É difícil dizer qual dos dois lados se mostrou mais frustrante’, criticou Janio de Freitas, na Folha. Páginas adiante, o colunista de mídia Nelson de Sá observou que ‘os correspondentes palacianos sorriam ou riam à solta e erguiam perguntas que deixavam Lula mais e mais simpático’. No Globo, o comentarista político Merval Pereira concluiu: ‘A entrevista não doeu’. E a sua homóloga de economia Míriam Leitão atacou o ‘quase monólogo’.
Respostas ‘pirotécnicas’
A atitude do reportariado é uma parte do problema. Outra foi o predomínio de perguntas sobre assuntos econômicos – 8 em 17 (incluindo as réplicas e as duplas contrabandeadas). Falar de economia quem sabe fosse tudo que Lula quisesse. Pelo menos o assunto rendeu as respostas mais extensas e, diria a oposição, mais ‘pirotécnicas’.
É verdade que a economia está no centro das atenções, mesmo da mídia não especializada. Basta ver a freqüência com que o tema e suas variações estão nas manchetes da grande imprensa. É verdade ainda que, dado o ineditismo do encontro, como escreveu o colunista Fernando Rodrigues, da Folha, ‘seria impossível sabatinar o presidente sobre todos os temas relevantes da República em pouco mais de uma hora’, numa entrevista que ‘tinha ares de algo excepcional’.
Mas que ficaram faltando as perguntas presumivelmente mais incômodas para o presidente, isso também é verdade.
A começar daquela que o colunista Janio de Freitas apontou, na mosca: ‘Presidente, por que, afinal de contas, dois anos e quatro meses para dar uma entrevista coletiva(…)? O que houve ou há que o presidente Lula sentiu a necessidade de não se ver perguntado?’
Para a maioria dos analistas políticos, seja lá ‘o que houve ou há’, a decisão de começar a dar entrevistas – Lula deu a entender que virão outras, não necessariamente em Brasília – se explica pela aproximação do ano eleitoral. E, de fato, Lula ganhou o dia. No sábado, os três principais jornais deram ao acontecimento um total de 49 títulos (incluindo editoriais e colunas assinadas), espalhados por 22 páginas.
Mas também se fartaram de relacionar o que se deixou de perguntar: o fracasso da reforma ministerial tida como essencial para a ‘governabilidade’, as atividades do ministro José Dirceu como ‘chanceler paralelo’ (expressão do Estado no domingo), a sua rivalidade com o aliado Aldo Rebelo na coordenação política do governo, a pobreza da agenda legislativa do Planalto e a inédita perda de controle do Executivo sobre a pauta da Câmara, o excesso de medidas provisórias que a travam, a carga tributária e a derrota do governo na MP dos impostos…
Este leitor acrescentaria outra pergunta – além, naturalmente, daquela do traseiro.
Lula lê jornal?
Em dado momento da entrevista, o presidente Lula disse à repórter Renata Giraldi, de O Dia, que estava surpreso ao saber por ela que ‘o serviço de segurança da Presidência desaconselhou a sua ida à favela da Rocinha, mesmo diante do lançamento do microcrédito e da inauguração da farmácia popular’. O entrevistado ainda agradeceu à entrevistadora a informação recebida.
Três perguntas e respostas adiante, foi a vez da repórter Tânia Monteiro, do Estado, merecer a gratidão presidencial. Ela queria saber se Lula concordava com o ministro do Desenvolvimento, Luiz Fernando Furlan, que havia afirmado que o governo não se entende. Do entrevistado, textualmente: ‘Eu agradeço ficar sabendo pela tua boca e vou perguntar para o Furlan qual é o problema de falta de sintonia que existe’.
Pena que não ocorreu a nenhum dos cinco entrevistadores seguintes indagar do presidente da República se ele não lê jornais. Pois tanto a informação do veto da segurança à sua ida à Rocinha quanto a da crítica de Furlan – diante das quais reagiu como se não tivesse idéia prévia de uma coisa e outra – saíram em letra de forma, nos respectivos diários onde trabalham as entrevistadoras.
Não foi à toa que pelo menos meia dúzia de textos dos jornais de sábado se perguntaram por que, diante do que se passou – ou melhor, não se passou – na véspera, Lula tanto tardou a convocar uma coletiva em palácio.
Torcedor de futebol que se preze não só vai ao campo, mas também, voltando para casa, ouve os comentaristas de rádio; no dia seguinte, lê no jornal – se tiver esse costume – tudo sobre o jogo a que assistiu.
No caso da entrevista de Lula, dado que a maioria dos brasileiros nela eventualmente interessada tinha mais o que fazer entre 10h30 de um dia útil, quando a sessão devia começar, e as 12h05, quando terminou, a dependência do que a mídia levasse ao ar naquela noite ou publicasse no dia seguinte não era uma questão de gosto, mas de necessidade.
Escolha discutível
Daí a importância do ‘tudo sobre’ nos jornalões do sábado. Os três grandes concordaram – e deram em manchete – que o essencial da entrevista esteve em Lula dizer que um dos maiores erros do governo foi ‘a gente ainda não ter feito com que os juros não sejam o único padrão de controle da inflação’ (na resposta a Fábio Pannunzio, da TV Bandeirantes).
Embora unânime, a escolha é discutível. Porque, ao ser perguntado pela entrevistadora seguinte (Cristiane Jungblut, do Globo) no que mais o governo poderia estar pensando para segurar os preços, primeiro Lula tirou o corpo, citando o falecido Ulysses Guimarães: ‘Nem tudo o que você pode fazer na economia você pode avisar antes, porque se avisar não faz’. Depois, gastou 852 palavras para garantir que não irá fazer ‘como já foi feito neste país’, ou seja, ‘uma pirotecnia’, e sim ‘com o melhor senso possível’.
Somado à ‘total confiança’ que disse ter em relação ao ministro Antonio Palocci – ‘somos unha e carne’, comparou, em outra resposta –, as garantias reiteradas por Lula talvez devessem ter prevalecido nos títulos de primeira página sobre os tais ‘outros instrumentos’ antiinflacionários.
Pois o sumo dessa entrevista banhada em política econômica é que, para o bem ou para o mal, vem aí mais do mesmo. Na política monetária (juros altos) e na política fiscal (robustos superávits primários).
O editorial do Globo, embora sustentando que o ponto alto da entrevista foi o reconhecimento de que debelar a alta dos preços não é problema apenas no Banco Central, pegou direito o espírito da coisa: ‘(…) afastar temores, restabelecer confianças, foi o que Lula conseguiu ontem, ao reafirmar princípios estratégicos da política econômica e proteger a política econômica do movimento político de pressão contra ela que vinha ganhando força nas últimas semanas (…). Se alguém tinha dúvidas, deixou de tê-las ontem pela manhã’.
Pior do que gafe
O Estado disse quase o mesmo. Depois da ‘apaixonada convicção’ com que Lula defendeu Palocci, conclui o seu editorial, ‘será perda de tempo duvidar da solidez da posição do ministro – e da aversão de Lula ao aventureirismo em política econômica’.
Globo, Estado e Folha registraram o abismo entre o Lula da entrevista e o Lula dos improvisos. ‘O presidente’, beliscou a Folha, ‘não precisa dessa modalidade de contato com a imprensa para incorrer em gafes’.
Mas a imprensa, nessa modalidade de contato com o presidente, precisa ser mais contundente e menos amável – o que é pior do que uma gafe.
[Texto fechado às 17h55 de 2/5]