Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

E a bolha estourou

Sim, a bolha estourou. Era 09 de novembro de 1989 quando o mundo ouviu efusivas marretadas no muro de Berlim. A mídia, que jamais despreza um ‘novo’ espetáculo, à época embarcou na nave da comemoração, sem se dar conta de que abdicava de um foco crítico. Pouco tempo passou, e como conseqüência direta da ‘demolição do muro’, irrompia, na antiga Iugoslávia de Tito, o conflito da Bósnia. A região dos Bálcãs rapidamente se transformaria numa arena de atrocidades. A mídia engoliu seco. Não passou recibo e, ao contrário, ganhou novas e atraentes pautas.

Também não podemos ignorar que, em outro continente, forças militares norte-americanas, sempre em nome da defesa da liberdade ou da autonomia dos povos, escrevia a narrativa da primeira ‘invasão’ na guerra do Golfo. Paralelamente, o projeto de unificação da Europa adiava, por conta da dupla turbulência, por sete anos, a adoção do euro como moeda única. Outra vez, a mídia, viciada em lidar com fatos diários, não soube (ou não quis) oferecer ao público-receptor análises conjunturais.

Nesse mesmo quadro, surgiam, na política internacional, nomes inteiramente estranhos que, de modo célere, galgaram postos máximos: Berlusconi, na Itália; Yeltsin, na Rússia; Collor, no Brasil; Clinton, nos EUA, entre outros.

O sonho do ‘crédito fácil’

Enfim, a queda do muro de Berlim tinha ‘zerado’ qualquer embaraço para o projeto de ‘gozo libertário do capital’. Nesse diferente cenário, longa estrada estava disponível para, sem limites, a ideologia neoliberal imperar nas suas aspirações máximas. Nesse horizonte voraz, a fome feroz do ‘capitalismo financeiro’ encontrou a paisagem paradisíaca. Daí decorreu um ‘projeto orgiástico-antropofágico’. O ‘gozo’ foi atingido quando, para residir na Casa Branca, foi escolhida a figura inexpressiva de G. W. Bush. A mídia, habitualmente comedida (ou limitada), abdicando de seu necessário olhar crítico, optou, outra vez, pelo ‘modelo bem-comportado’.

Eis que veio o 11 de Setembro de 2001. A mídia, uma vez mais, embarcou no horror (e o foi) do derretimento das ‘torres gêmeas’, fingindo ignorar os saldos que a indústria bélica e a indústria extrativista faturariam com as invasões do Afeganistão e do Iraque, justamente, aliás, as duas áreas de maior financiamento da campanha presidencial republicana.

A bolha do ‘capital financeiro’ foi tirando todos os proveitos num contexto mundial sem oponente. Sepultando os ideais formulados por Adam Smith e ignorando os princípios desenhados por Stuart Mill, a nova face voraz do capital virtualizado (ou ‘capitalismo financeiro’, em prejuízo do ‘capitalismo de produção’) inoculou, no frágil imaginário do cidadão-consumista, o sonho do ‘crédito fácil’. A mensagem é simples: ‘assuma dívidas e pague-as depois’. Muitos cidadãos norte-americanos, na sua ingenuidade, contraíram dívidas que, no presente de suas vidas, eram administráveis, embora os mesmos compromissos, a médio e a longo prazos, se revelariam impagáveis. A mídia, por sua vez, se manteve numa posição radicalmente acrítica.

A moeda e o valor da emancipação

A propósito, recordo-me de algumas matérias, tanto no jornalismo impresso quanto no eletrônico, que, ao longo de 2007, no Brasil, exaltavam adolescentes usando cartões de créditos cedidos por seus respectivos pais, além de outros que promoviam aplicações de seus ‘rendimentos’ no mercado de capitais. Inclusive, em algumas escolas particulares, há ‘ensinamentos’ no tocante a essa prática, o que é abominável para quem pensa em educação como um pilar de formação do caráter e do conhecimento.

Seja como for, a atual crise, sob o patrocínio dos EUA, oferece ao restante do mundo a possibilidade de dar um passo atrás contra a espiral ensandecida na qual milhares de seres no mundo vêem a vida como um ‘grande e atraente cassino’. Não, a vida é uma oferenda para a aventura de quem compreenda que existir é a oportunidade de descobrir vislumbres novos, de se apaixonar pela ânsia de conhecimento. Isto não quer dizer substituir uma consciência pragmática por uma expectativa romântica (ou utópica). Ao contrário, a observação pretende sinalizar que viver é uma experiência singular para a qual cada um tem o dever de colaborar com o que, em si, puder reunir de melhor (para si e para todos).

Viver para alimentar o imaginário de Wall Street é reduzir a vida ao seu estrato mais apequenado, no qual o indivíduo troca o patrimônio intransferível de sua ‘imaginação’ pelo paradigma congelado pelos ditames dos poderosos. A mídia poderia (ou deveria), no centro dessa crise, ser capaz de oferecer ao público um olhar mais abrangente no qual o peso da moeda fosse bem menor do que o valor da emancipação crítica dos cidadãos. Algo alertado, no passado, por pensadores de certo quilate, a exemplo de Arthur Schopenhauer e Max Weber, ilustra melhor do que estas aflitas linhas.

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Ensaísta, articulista, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular de Linguagem Impressa e Audiovisual da FACHA, RJ