Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A imprensa e o presidente

Finalmente o silêncio entre o mais falante presidente da República e a imprensa foi rompido, após a inacreditável marca de dois anos e três meses. Ainda assim, o ‘acontecimento’ foi precedido por acertos prévios, com o intuito de ser preservada, ao máximo, a figura maior da República. Igualmente, no tocante à duração, a coletiva não deveria ultrapassar nada além da duração de uma partida de futebol. Com 14 perguntas, sem direito a réplica, por fim foi cumprido o ritual.

O palanque da confraria

A seleção de ‘perguntadores’ – talvez seja melhor resguardarem-se as classificações de ‘entrevistador’ e de ‘jornalista’ – segundo se sabe, se deu por sorteio. Afora não mais que dois ou três nomes de maior tradição no meio jornalístico, os demais lembravam iniciantes que não escondiam o nervosismo gerado pela situação. Quanto à qualidade das perguntas, nada a destacar. No que diz respeito à qualidade das respostas, nada a acentuar. Vários articulistas abordaram, nas edições de sábado, o fato. Do quadro melancólico, portanto, extrai-se a fragilidade substantiva da democracia brasileira, tanto refletida na esfera política quanto perceptível na atuação jornalística.

Pelo perfil dominante que marcou o ritual ‘iniciático’ entre presidência e imprensa, será aconselhável substituir o conceito de ‘acontecimento’ por ‘episódio’. Ou então deixemos, sob o ponto de vista do marketing, a idéia de ‘evento’ em oposição ao critério jornalístico cuja melhor tradução será a de classificar como ‘fato’ – equivalente, no jargão policial, a ‘registro de ocorrência’. Pode soar forte demais, porém, num certo grau de exigência, a ‘coletiva’ continha algo de ‘fraude’, de simulação do real. Nesse caso, a responsabilidade não tem de ser imputada aos serviços de blindagem da presidência da República. Estes cumprem o papel que lhes cabe: preservar e cercar a figura do presidente contra qualquer incômodo. O problema – e grave – situa-se na outra ponta: a prática jornalística. Se esta abdica da autonomia crítica, deixa de cumprir a finalidade maior que a faz existir.

A cobrança aqui reclamada não se confunde com o desejo de ver a imprensa ‘imolar’ a figura do presidente. Se assim ocorresse, igualmente a prática jornalística estaria descaracterizada. Há, porém, uma ‘zona de fronteira’ que regula a diferença entre o ‘caráter destrutivo’ (como tal o conceituou Walter Benjamin) da ‘imolação’ e a necessária ‘produção do incômodo’. O primeiro conspira contra as regras da democracia; o segundo, ao contrário, fortalece a experiência democrática.

É lamentável que a aguardada e não menos adiada coletiva se tenha restringido a um simplório encontro de confrades. O jornalismo brasileiro perdeu boa oportunidade para demonstrar que poderia caminhar com as próprias pernas. Ou, talvez, por saber que não pode, desempenhou o papel adequado ao rigor de sua atitude submissa, no melhor estilo de um segmento colonial em relação à casta imperial. Em conformidade com essa modelagem, as perguntas priorizaram o setor econômico no qual o governo, sem maiores embaraços, tem a possibilidade de invocar índices e fáceis argumentos com os quais justifica tanto o que faz quanto o que deixa de fazer.

As faces do ego

Para profissionais que atuam no campo da ‘análise do discurso’, a coletiva presta boa rentabilidade, principalmente quanto a dois aspectos lingüísticos bastante recorrentes na fala do presidente: 1) o uso reiterativo do ‘eu’; 2) o emprego enfático da expressão ‘estou convencido’. Ambos refletem, em comum, o perfil egóico do presidente.

No primeiro caso, a exemplo do que registrou Fernando Rodrigues, no artigo ‘220 vezes eu’ (Folha de S.Paulo, 30/4), o recurso lingüístico tende a acentuar a ‘personalização’ da estrutura do poder governamental. Parece haver irrefletida e incontida necessidade de passar a idéia de que é o ‘eu’ que governa, num misto de auto-afirmação e insegurança. No segundo caso, a constância da expressão ‘estou convencido’ abriga sutilezas maiores. A referida expressão se faz freqüente nos discursos do presidente, desde os primeiros, além das habituais ‘metáforas’. Muito já foi escrito quanto às ‘metáforas’. O mesmo, porém, não se verifica em relação ao outro fato.

A construção ‘estou convencido’ é tão curiosa quanto reveladora, dadas as implicações que podem envolver a trama do inconsciente. A questão gira em torno de ‘convencido’. Do latim convictionem, a palavra guarda como radical o mesmo elemento que forma a palavra victoriam. Assim, ‘convencido’, sob o aspecto etimológico, significa ‘de posse da vitória’ (‘idéia vitoriosa’), outra face do perfil egóico.

Há, entretanto, um ponto complicador na questão: a forma passiva de ‘convencido’. Esta, por sua vez, admite dupla construção: a) com o verbo ‘ser’; b) com o verbo ‘estar’. Na primeira, obtém-se ‘eu sou convencido por (alguém / algo). Na segunda, supõe-se ‘eu estou convencido de que…’ (‘eu convenço a mim acerca de algo ou alguém).

Compreendida a diferença entre as duas formulações, abre-se o caminho para a percepção do ponto no qual elas se unem: há um ‘eu’ que vivencia o estado de ‘convencimento’ pela ação de ‘outro’ ou de outro ‘eu’, dobra de um ‘eu’ anterior. Em qualquer dos dois casos, o ‘convencimento’ origina-se de um conflito (externo ou interno), marca da insegurança.

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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha – Rio de Janeiro)