Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Desdém ou superexposição?

Raramente profissionais, pesquisadores e professores de jornalismo impresso refletem sobre os modos de endereçamento ao leitor popular. Entretanto, as empresas jornalísticas estão adotando novas estratégias de popularização nas quais muitos valores jornalísticos são tensionados. Apresentamos o exemplo do jornal Diário Gaúcho (DG), que supera a marca de um milhão de leitores e tem como estratégia a interpelação e visibilidade das pessoas comuns em suas páginas. Mostramos que o jornalismo não pode prescindir de debater suas condições de recepção e apontamos para a necessidade de pensarmos formas de endereçamento aos setores populares de forma mais propositiva, sob pena de a lógica empresarial encarregar-se totalmente disso.

Autismo e distorção

As empresas jornalísticas há alguns anos dedicam-se a conhecer o perfil, o hábito e os gosto de seus leitores. É possível notar desde os anos 1980, a aproximação das redações dos grandes jornais dos departamentos de marketing. Com a necessidade de baixar os custos operacionais com novas tecnologias e equipamentos, são adotadas estratégias de marketing. As empresas passam a utilizar pesquisas de mercado, o jornal passa a ser considerado um produto e o público, consumidor ou cliente. Com o estímulo das agências de publicidade, as empresas jornalísticas obrigaram-se a tornar seus jornais mais atraentes para o público (ABREU, 2002, p. 29) e há anos dedicam-se a conhecê-lo. Fica estabelecida a ‘ditadura do leitor’ e são inúmeras as modificações feitas para agradar o público (uso da cor, criação de cadernos, produção de textos mais curtos, uso de recursos gráficos, etc). Predomina a idéia da utilidade social da mídia e da necessidade dos jornais responderem às demandas cotidianas dos cidadãos. Servir o leitor passa a ser mais do que uma função social, torna-se uma atividade lucrativa.

Aliás, grandes grupos de comunicação proprietários de redes de jornal, rádio e TV têm apostado no segmento popular, como é o caso da Folha de São Paulo (Agora), das Organizações Globo (Extra) e da RBS (Diário Gaúcho) e há um crescimento evidente nas publicações populares nos últimos anos

Em 2000, a conclusão do Workshop Jornais Populares da Quarta edição do Curso Master em Jornalismo para Editores é de que os jornais populares são um dos maiores fenômenos editoriais do país. Conforme o estudo da consultoria McKinsey & Co. apresentado no 3o Congresso da Associação Nacional de Jornais (ANJ), as vendas de jornais no Brasil cresceram 5% ao ano de 1996 a 2000. De acordo com o levantamento, a circulação dos jornais no Brasil aumentou depois do Plano Real graças ao crescimento dos jornais populares. De 1996 a 2000, as vendas de jornais passaram de 6,4 milhões para 7,8 milhões de exemplares por dia. Enquanto a participação dos líderes caiu de 25% para 20% do mercado, a participação dos jornais populares passou de 11%, em 1996, para 17% do mercado no ano 2000. Muitos jornais voltados a um novo consumidor, de menor poder aquisitivo, surgiram entre os anos 1997 e 2000: Agora (SP), Lance! (RJ), Folha de Pernambuco (PE), Extra (RJ), Amazônia Jornal (PA), Primeira Hora (PA), Notícia Agora (ES), Expresso Popular (Santos, SP). Outros sobreviveram nesta linha editorial, como é o caso de O Dia (RJ), surgido em 1951. É evidente que os números ainda são tímidos e o mercado tem muitas potencialidades, pois o Brasil situa-se na 102a posição com relação a número de exemplares de jornal por habitante (ARBEX, 2001, p. 264).

Vários dos jornais populares tomaram a dianteira nas tiragens, como o Extra (RJ) que ocupa a quarta posição do ranking nacional e O Dia (RJ), que ocupa a quinta posição, segundo o Instituto Verificador de Circulação (CAZARRÉ, 2002). O Diário Gaúcho, tablóide popular editado no Rio Grande do Sul, nosso objeto de estudo, fica com a sexta colocação nesse ranking. Hoje, dos doze jornais brasileiros com maior tiragem, seis são orientados para atender um leitor de menor renda.

Mais recentemente, num processo de segmentação destinado ao público popular, alguns jornais, a exemplo do rádio e da televisão, não somente buscam conhecer seu leitor, mas apostam na efetiva visibilidade do público em suas páginas. Surgem formas para atender ao gosto do leitor bem diferentes das antigas estratégias dos jornais sensacionalistas no estilo ‘espreme sai sangue’. Os jornais adotam o entretenimento, a prestação de serviços, expõem textos e informações de pessoas anônimas e entregam a pauta para os leitores fazerem.

Enquanto as empresas jornalísticas e seus departamentos de marketing desenvolvem cada vez mais técnicas de se aproximarem do leitor, raros são os artigos e pesquisas sobre o jornalismo impresso e suas relações com o leitor. Na maioria das vezes, nós, estudiosos e pesquisadores, seguimos tratando as relações entre o jornalismo impresso e o público leitor popular com desdém. Entretanto, se é evidente que o jornalismo não pode se submeter à lógica externa, também é crucial que ele se torne mais didático, interessante e vinculado ao universo popular.

A ojeriza à submissão mercadológica tem provocado um sentimento autista e distorcido que apaga do nosso horizonte a existência de um público leitor de jornais. O leitor integra o conceito de mercado, noção com a qual o jornalismo trabalha com dificuldade. O mercado representa sobretudo um algoz e esquecemo-nos que ele abrange o público para quem escrevemos. ‘Conhecer o público’ é uma meta ausente nas aulas de graduação e nos textos sobre jornalismo, em que o assunto da relação com o público é imediatamente remetido ao campo do marketing. Entretanto, queiramos ou não, todo jornal para se tornar viável precisa ser dirigido a um mercado de leitores. As empresas jornalísticas apostam na popularização da imprensa e os jornalistas permanecem reféns dessas fórmulas por absoluta ausência de debate sobre as possibilidades de um jornalismo popular de qualidade.

‘Posições de sujeito’

A impressão que se tem é que o jornalismo ocupa um lugar desprovido de preocupações sociais, e a ele só cabe falar para aqueles dispostos a ouvi-lo. Entretanto, a informação jornalística não é um fim em si mesma, mas consagra-se historicamente com nobres funções sociais.

Normalmente, esquivamo-nos do debate sobre o segmento popular como se fosse impossível fazer jornalismo para um mercado popular. Esquecemo-nos que escrevemos para sermos lidos e nosso isolamento só contribui para reforçar exclusões sociais. O campo fica livre para o mau jornalismo e para o predomínio do entretenimento. Somos especialistas em abordar o segmento popular da grande imprensa a partir da condenação: sensacionalismo, degradação, ganância, lixo cultural, antijornalismo (AMARAL, 2003), mas nossa postura é a de críticos externos, pois se fôssemos elencar as nossas contribuições para projetos editoriais populares, nossa fragilidade ficaria evidente. Enfim, assistimos atônitos à ditadura do leitor que, no caso dos jornais populares, assume formas específicas.

O fato é que ainda não incorporamos a noção de que existe uma estreita relação entre o campo da produção e o do consumo (BOURDIEU apud PINTO, 1993, p.121). Falta-nos o salutar hábito de pensarmos o jornalismo no plural, para públicos diferenciados, sem por isso termos que abrir mão dos princípios éticos. As mesmas razões éticas que nós, jornalistas, temos para não sujeitar nossa atividade ao mercado de bens materiais, deveriam levar-nos a refletir mais sobre o mercado simbólico envolvido na atividade jornalística. Afinal, o fato de nos dirigirmos a um determinado tipo de leitor não é uma estratégia só do plano mercadológico, mas fundamentalmente do plano comunicacional.

O jornalismo precisa repensar seus modos de endereçamento ao leitor das camadas populares. Os modos de endereçar são as maneiras de dirigir-se aos leitores, as formas como os jornais se orientam para estabelecerem relações com seus leitores. O modo de endereçar ou se dirigir a alguém é também ideológico, faz parte do processo de interpelação em que a comunicação de massa ‘chama’ ou interpela os indivíduos como sujeitos de seu discurso (HARTLEY, 2001, p. 160). Os modos de endereçamento estão sempre vinculados a uma imagem do receptor. A imagem que o jornal tem do leitor resulta de processos discursivos anteriores. Por antecipação, o jornal projeta um leitor e estabelece suas estratégias com base nele. O leitor, por sua vez, também projeta um jornal e imagina o que o jornal deve dizer e como deve dizer. Tanto emissor quanto destinatário atribuem lugares a si mesmo e um ao outro e fazem imagem de seu próprio lugar e do lugar do outro. Ou seja, o emissor antecipa as representações do receptor e com a antevisão do imaginário do outro, funda estratégias de discurso.

O conceito de modos de endereçamento provém dos estudos de cinema desenvolvidos pela autora americana Elizabeth Ellsworth (2001). No lugar de nos perguntarmos o que o leitor achou do jornal, passamos a nos perguntar: – A quem o jornal é endereçado?, Quem o jornal pensa que seu público é? e – Quem esse jornal deseja que o leitor seja?. Ou seja, voluntariamente ou não, os jornalistas adotam modos de endereçamento que posicionam o leitor em determinados lugares.

Existem, como afirma Fischer (2002), determinadas ‘posições-de-sujeito’ sugeridas ao leitor que eles são convidados a ocupar. O jornal tem um endereço determinado, é feito para um segmento, um mercado de leitores a quem ele interessa e busca identificação. Embora os modos de endereçamento constituam-se numa rede complexa de características, vamos destacar aqui a ênfase na interpelação e visibilidade do leitor.

Fonte: o cidadão comum

Apresentamos, ainda que resumidamente, algumas características dos modos de endereçamento do jornal Diário Gaúcho (DG) ao leitor popular. O Diário Gaúcho, segundo o Marplan, tem mais de um milhão de leitores. Foi fundado em 2000 pela Rede Brasil Sul de Comunicação (RBS), editora de Zero Hora e afiliada da TV Globo. O DG circula na região metropolitana de Porto Alegre, custa R$0,50 e está voltado aos interesses das classes C, D e E , que concentram 70% da população total de Porto Alegre e região metropolitana. O jornal é tablóide (como a maioria dos jornais gaúchos), investe muito em promoções e brindes. Em seu primeiro editorial propõe-se a ser ‘barato, completo e digno, com linguagem clara e fácil’ e marca sua característica popular de imediato ao afirmar que o dia do lançamento do jornal foi indicado por uma astróloga. Prioriza o vínculo com um leitor desabituado de ler jornal. Embora já tenha dado alguns furos jornalísticos, essa não é uma preocupação prioritária, como afirma seu editor chefe, Cyro Martins Filho (2001). Publica muitas matérias de serviço e entretenimento e ignora as temáticas da Política e da Economia, a menos que elas se refiram ao cotidiano popular.

Grande parte das notícias inclue histórias humanas e dramas cotidianos. Conforme Violli (2002), inúmeras sugestões de pauta do DG vêm por intermédio de telefonemas do leitor (muitas vezes de telefones públicos) ou por intermédio de cartas (no primeiro ano, o jornal já recebia 400 cartas por dia). As telefonistas têm um papel importante na rotina do jornal. Quando um telefonema é considerado interessante, a ligação é transferida para uma secretária que conversa com o leitor. Posteriormente, os dados são repassados para a editora e o material é disponibilizado para a seção Seu problema é nosso! (VIOLLI, 2002).

Muitas matérias do jornal são redigidas a partir de cases. Os cidadãos comuns são elevados à categoria de fonte principal. Às fontes oficiais fica reservado um papel secundário, pois são acionadas apenas para responder às inquietações dos leitores. É possível folhear meses de jornal sem que se encontre um nome sequer do presidente, do governador, de prefeitos ou parlamentares. Ao contrário dos jornais conhecidos como ‘de referência’, que privilegiam as fontes oficiais, no DG há a preferência pelas falas de cidadãos comuns sobre seus problemas cotidianos, inversão desconsiderada na literatura sobre o tema. Na maioria das vezes, há uma foto do cidadão, fonte da matéria, e a legenda reforça sua opinião ou seu drama. Mesmo que existam fontes oficiais citadas secundariamente, elas nunca aparecem nas fotos e legendas. No DG, a necessidade se torna virtude. Aliás, o jornal é o interlocutor que viabiliza a solução de problemas e faz a ponte entre os leitores e as autoridades. As marcas que remetem o texto da notícia ao real são os trechos dos depoimentos das fontes. A elevação de atendentes, mestres de obras, donas de casa, deficientes físicos, aposentados e garçons à categoria de fonte jornalística principal é uma das características do jornal.

Veja como funciona a seção

Uma das manchetes de capa do dia 05/02/2002 é Chega ao fim a espera de Suzeli por remédios. A mãe de Suzeli é a fonte principal e o representante da Secretaria da Saúde é a fonte secundária. Uma atendente de lancheria é a fonte principal da notícia Desorganização da perícia desaloja cidadã (05/02/2002). O depoimento do Chefe de investigação da Delegacia de Polícia fica em segundo plano. Na hora da reforma o negócio é planejar é uma das chamadas de capa no dia 06/02/2002. Um mestre de obras e um motorista que está construindo uma casa são as fontes da matéria. Camelô é exemplo de dedicação à Usina do Gasômetro (11/02/2002) é o título da notícia que aborda o trabalho voluntário de jardinagem nas margens do Guaíba. A fonte é uma camelô que trabalha no local três vezes por semana. Também são fontes principais de matérias uma dona de casa (Esgoto atormenta moradores da União – 06/02/2002), um morador de um bairro (Mau cheiro da Corsan provoca protestos – 07/02/2002), um garçom (A volta dos alagamentos – 07/02/2002), uma idosa (Vovó sem consulta e sem medicamentos – 07/02/2002), operários (É só cair chuva que alaga tudo na capital– 08/02/2002), um estudante (Buraqueira na rua atrapalha estudante – 09/02/2002 e 10/02/2002), uma pessoa doente (Doente não obtém benefício do INSS – 11/02/2002) e assim por diante.

O jornal tem uma média de 28 páginas/dia. É colorido na capa, contracapa e página central e, às vezes, na editoria de Esportes. As capas têm manchetes que tanto podem se referir a dificuldades pessoais de um leitor, à promoções do jornal, a mulheres em poses sensuais ou ainda ao destino dos personagens de uma telenovela. Na página dois, a coluna Bom Dia! publica prestação de serviço e agenda. As próximas páginas dedicam-se às notícias das cidades da região Metropolitana que ‘mexem’ com a vida do leitor. As informações jornalísticas nacionais e internacionais são publicadas na seção O que há de novo, por intermédio de pequenas notas. Uma página fixa, intitulada Seu Problema é Nosso!, é totalmente dedicada ao leitor (são publicadas reclamações, poemas, sonhos, fotos, informes de pessoas desaparecidas, casos sobrenaturais).

Interpela o público

A página central é destinada à vida dos artistas e comunicadores (Retratos da Fama) e outras duas, ao resumo das novelas, filmes, destaques da programação televisiva e roteiro de diversões. O Clube dos Corações Solitários, a orientação sexual, os conselhos sentimentais e a programação de cinema ocupam uma página fixa do jornal, onde por vezes também é publicada a seção Minha História de Paixão, em que os leitores contam histórias de amor. Humor, piadas e palavras cruzadas também têm vez e estão presentes diariamente. Os presságios, horóscopo, anjo do dia, simpatias e numerologia ocupam uma página fixa. Na seção Opinião do Povo são publicadas enquetes, na Fala, Leitor! são publicadas cartas e no Meu Jornal, opiniões sobre as matérias do jornal. Duas páginas são dedicadas à polícia (Ronda Policial) e outras duas prioritariamente ao futebol e eventualmente ao boxe e ao automobilismo (Jogo Total). A contracapa normalmente é destinada a matérias sobre culinária, moda e prestação de serviço. Entre as colunas opinativas distribuídas no jornal, estão as dedicadas a comentários sobre artistas regionais, futebol e assuntos do cotidiano. Os modos de interpelação do leitor são muitos e são explícitos nas designações de muitas outras seções esporádicas, como:

Divirta-se (sugere programações culturais hierarquizadas por preços)

Venda seu peixe (leitores fazem proposta de emprego)

Falando de amor (leitores escrevem cartas e fazem perguntas)

Falando de sexo (leitores escrevem cartas e fazem perguntas)

Clube dos Corações Solitários (publica cartas de pessoas interessadas em encontrar parceiros)

Dê o seu palpite, Gremista! (leitores opinam sobre futebol)

Dê o seu palpite, Colorado! (leitores opinam sobre futebol)

Jardim do Diário (fotos, textos e desenhos enviados por crianças)

Se você conseguiu emprego através do DG, ligue para nós e vire notícia

Recorte e cobre (o jornal aponta um problema uma solução, um prazo, informa quem prometeu e diz ao leitor onde deve cobrar a promessa)

Espaço do Trabalhador (matérias sobre qualificação profissional, com dicas e histórias de pessoas que estão apostando em cursos)

A edição comemorativa de um ano do jornal reforça o vínculo com o leitor por intermédio da visibilidade de representantes populares. A capa contém uma multidão de leitores na capa e a edição faz um balanço sobre as atividades do jornal. Duas páginas são ocupadas para relatar Vidas que o Diário modificou. Um editorial destaca:

[…] alguns dos personagens destas histórias com finais felizes estão retratados ao lado. Muitos outros leitores ainda são anônimos. Mas para a equipe do Diário eles têm nome, endereço e, principalmente, voz. Porque, diariamente, há alguém na redação disposto a escutar e tentar ajudar na busca de uma saída. Este é o papel do jornal. Informar, divertir e ser o porta-voz dos leitores que honram o Diário com a sua preferência.[…] Nossos parceiros (leitores) podem contar conosco. Feliz aniversário para todos nós! (17/04/2001).

Vários boxes ao lado contam como o jornal auxiliou os leitores de diversas maneiras. Desde a história da professora que usa o jornal em sala de aula, passando pela aposentada que publicou, com ajuda do DG, um livro sobre um engraxate, até leitores que conseguiram empregos por intermédio dos classificados ou foram vencedores em promoções do jornal.

Na edição que comemora o segundo ano do DG , também a capa é composta de fotos de leitores e a estratégia da edição do ano interior é repetida. Vidas que ficaram melhor é o título da matéria que ocupa duas páginas e conta histórias de como o jornal mudou a vida dos leitores: pessoas que conheceram namorados pelo jornal, conseguiram doações e empregos e tiveram respondidas reivindicações ao Poder Público.

Embora populares apareçam diariamente em todo o jornal e inclusive na capa, gostaríamos de ressaltar uma seção fixa, que ocupa uma página, intitulada ‘Seu Problema é Nosso!’ totalmente dedicada ao leitor. Nela, várias subseções são publicadas em rodízio. Essa seção simboliza a relação do jornal com o leitor. Na edição especial de aniversário da publicação ela passou a ser denominada Os problemas eram nossos. E, juntos, buscamos a solução (17/04/2002).

A parte superior da página é sempre uma notícia pautada pelo leitor por intermédio do Disquenotícia (Você tem alguma sugestão de assunto que pode virar notícia no Diário Gaúcho? Então ligue já para nós.). O leitor é a fonte principal e normalmente aparece nas fotos e legendas. As matérias freqüentemente tratam de reclamações endereçadas ao Poder Público. Os problemas são apresentados de forma personalizada e descontextualizada. O Poder Público, as instituições e as fontes consagradas ocupam o último parágrafo, um lugar de fala bem diferente daquele que dispõem no jornalismo de referência (Título: ‘Sinaleira pifada deixa mãe inquieta’. Legenda: ‘Rosangela se preocupa com os filhos’. Foto: da dona de casa Rosângela – 22/10/2002).

No Clique do Leitor, as pessoas enviam fotos de familiares queridos acompanhadas de cartas. O jornal menciona parte das cartas entre aspas e acaba assumindo um pouco da linguagem do leitor . São mães que escrevem para filhos, pessoas que homenageiam seu animal de estimação, etc.

Convide a Gente é o nome da subseção em que o jornal pede para o leitor convidar o DG para suas festas de aniversário, de casamento, de batizado. O jornal comparece e publica as fotos e um pequeno texto sobre a festividade, participando também no texto da euforia do leitor. Convide a Gente. (‘O babalorixá Iango de Xangô foi quem convidou o Diário Gaúcho para se integrar à alegria […]’- 25/10/2002).

Em É você?, o jornal destaca fotos de pessoas lendo o Diário Gaúcho. Diz a convocação: ‘No corre-corre do trabalho cotidiano, nossos fotógrafos ficam faceiros se encontram gente lendo o Diário Gaúcho. Se dá para parar um pouquinho e clicar o amigo leitor, eles não perdem tempo (…).’ O jornal pede que o leitor que aparece na foto vá buscar um brinde a redação do jornal. E conclui afirmando ‘Quando for possível, puxe banco e vá sentando’, num convite para que o leitor visite o jornal.

Onde anda você? é o espaço destinado a cartas de pessoas que procuram desaparecidos. Há muitas referências sobre reencontrar ‘minha gente’, sobre saudades e nostalgias. (‘Na última vez que vi minha mãe, Santa Eva, eu tinha oito anos. Lembro que estava grávida e com um dos meus irmãos pela mão’.- 25/10/2002)

As poesias enviadas ao jornal têm destino certo: a seção Poemas do leitor. O jornal publica os poemas e faz a ilustração ([…]’com teu traje exuberante e típico,/ a leveza do teu corpo te faz princesa, /dando ao lugar um toque místico’ – 25/10/2002)

Em Casos de outro mundo, o DG publica experiências sobrenaturais ( Aparições na Noite: […]O vulto vinha em nossa direção e, de repente, quando alcançou a luz da janela, afinou e ficou como se fosse uma vara. Ficamos com tanto medo que chamamos minha mãe para fechar a janela[…] Ao olhar para o canto de cima do quarto, vimos dois anjinhos de branco – 23/10/2002)

Na seção Meu sonho é, o jornal publica muitos pedidos de remédios, tratamentos médicos, cursos, equipamentos de trabalho, entre outros. (Meu sonho é… um advogado.[…] Fui condenado a oito anos e quatro meses pelos artigos 157 e 155. Fiquei foragido dois anos sem cometer nenhum delito, porque tinha me recuperado da dependência química. Casei, trabalhava numa clínica de recuperação de drogados […]. Fui recapturado em julho último e estou em regime fechado, do qual já devia ter saído. – 23/10/2002)

São muitas as abordagens que podemos fazer sobre o Diário Gaúcho, mas queremos ressaltar aqui seu vínculo com o mundo e as demandas do leitor popular. Esse é o mundo que o Diário Gaúcho entende como popular. Como vimos, o jornal interpela o público constantemente a falar e não separa assuntos jornalísticos de casos de outro mundo ou de sonhos do leitor.

Quem fala é um leitor individual

Como vemos, os jornais, com o predomínio de uma lógica heterônoma, obrigam-se a satisfazer cada vez mais o público e os anunciantes e, portanto, a se movimentarem em direção ao leitor. Fortemente subordinado aos esquemas empresariais, o segmento autodenominado popular precisa ser visto em suas múltiplas faces marcadas pelos interesses econômicos e ideológicos, mas também pelas suas necessárias conexões com o mundo popular.

O jornal é subordinado à lógica empresarial, mas precisa falar ao universo do leitor e, portanto, incorpora características culturais atribuídas a esse leitor. Entre essas características culturais estão o desprezo por certos elementos da vida pública, as histórias de interesse humano e o apego à vida privada, muitas delas historicamente populares, desde o melodrama e o folhetim. Aliás, muitas formas de visibilidade do popular na mídia podem ser vinculadas a características do gênero melodramático, adotado pelo folhetim francês e posteriormente pelo cinema e televisão latino-americanos, como: a tematização dos dramas de reconhecimento; a mediação entre os tempos do capital e da cotidianidade, o entendimento familiar da realidade, a confluência público e privado; o desenvolvimento de solidariedades baseadas no local, no parentesco, na vizinhança; a noção de que política só interessa se afeta a vida diária; a ligação com problemas sociais e dramas pessoais; a apresentação de personagens ‘em carne e osso’ e assim por diante.

O sucesso dessa imprensa revela, no nosso entendimento, que sua inserção nas camadas populares e seu consumo não se traduzem simplesmente num ato irracional dirigido pelo marketing. A interatividade é uma técnica de marketing, mas também num modo de integração e distinção social e simbólica. Esse segmento da imprensa, para conectar-se com o mundo popular, apropria-se de elementos culturais de experiências populares historicamente bem-sucedidas e transgride muitos valores consagrados no jornalismo de referência.

Entendemos que essa imprensa busca na cultura popular temáticas, estéticas e estilos que incluem a forma sensacionalista (ela não é predominante), mas sobretudo o interesse pela necessidade de exposição do universo do leitor. A exposição do universo popular é elemento chave no contrato proposto ao público alvo e trata-se de uma das principais características do jornal.

O público passa a se enxergar individualmente, num processo em que a fruição individual suplanta o interesse público. Os jornais dão visibilidade ao universo das contra-racionalidades e das horizontalidades (o mundo do cotidiano em oposição ao just-in-time, por exemplo) (SANTOS, 2002). O rosto e a fala do povo têm acesso explícito às páginas dos jornais. Quem fala é um leitor individual, que expõe sua intimidade e elege como enquadramento dos fatos uma posição sentimental, emocional. O olhar sobre o estilo de vida das camadas populares é potencializado e o leitor aparece em close up. A estratégia por vezes assume formas estranhas aos valores jornalísticos predominantes, já que a decisão de inscrever o leitor popular no jornal predomina sobre a lógica autônoma da atividade que estabelece a prioridade do interesse público.

Povo sai da zona de sombra

O jornal se faz popular por intermédio de uma estratégia de dizer aos leitores como devem ocupar uma posição em suas páginas. O indivíduo é chamado a ocupar seu lugar pré-determinado e o jornal aposta na idéia de que o leitor vai se identificar com as posições para as quais é recrutado. Ou seja, da fala do leitor, chegue ela ao jornal por intermédio de telefone, carta ou contato pessoal, a publicação escolhe excertos que acabam sendo editados e dispostos no texto e na página do jornal, conforme uma lógica da publicação. O leitor real que fala ao DG pode até se identificar com a publicação, mas é reconstruído pelo jornal. Embora os leitores aceitem participar da publicação, no processo de edição do jornal são re-colocados em determinadas posições de acordo com as estratégias da publicação. Tendo em vista que esse leitor, para ter visibilidade no jornal, tem seu discurso escolhido, avaliado e editado, partimos também do pressuposto que já de imediato trata-se de um leitor construído. Portanto, tomamos como base que é o jornal quem recruta o leitor para determinadas posições-de-sujeito. O leitor fala, mas posicionado pelo jornal, inserido num espaço concedido.

O leitor busca falar no jornal, pois ali tenta exercer sua condição de sujeito social. Entretanto, o DG forja um espaço para as fontes populares, ilumina o leitor e seu universo, mas o faz de acordo com seu próprio jogo de cena. De fato, é construído um lugar para o representante das camadas populares, que sai da zona de sombra a que é submetido no jornalismo de referência, para enxergar seu vulto nas páginas do jornal popular, mas sua fala normalmente não representa mais do que sintoma dos mal-estares sociais e o jornalismo não se realiza completamente.

Assistencialismo e projeção

García Canclini (1999) afirma que com a degradação política e a descrença nas instituições, muitas das perguntas dos leitores têm recebido respostas mais pelo consumo privado de bens e dos meios de comunicação do que pelas regras da democracia ou pela participação coletiva em espaços públicos. Até porque muitas vezes, os programas e publicações populares da mídia colocam-se como promotores de uma espécie de ‘cidadania midiática’. Mas evidentemente a mídia, na maioria das vezes, reduz a atuação do cidadão à de mero consumidor insatisfeito e as fontes populares não são apresentadas como membros ativos de uma comunidade, mas como reivindicadoras de questões individuais que se contentam com respostas setoriais. A ênfase nas matérias de serviço, por exemplo, demonstra uma relação instrumental com o leitor (reforçada pelos brindes e promoções). [Oliveira (2003) afirma que o jornalismo de serviço é fruto do paradigma do cidadão consumidor. ‘o consumo é elevado à condição de categoria suprema, da dignidade, da cidadania’. Jornal de serviço é ‘reconstrução da realidade sob a ótica do consumo’. Se o cidadão se torna consumidor, os direitos tornam-se mercadoria]. As dificuldades do cotidiano são apresentadas como passíveis de serem superadas pelo leitor, desde que ele conheça o caminho das oportunidades.

Na exacerbação da presença do leitor como referente, fonte, autor ou universo cultural, o DG constitui-se num suporte que se utiliza do prestígio do dispositivo jornal para construir sua popularidade de maneira diversa da forma jornalística predominante na imprensa de referência. Se o jornal interpela um universo popular cultural na sua temática, estética e estilo, a forte presença do discurso de um leitor (que tem nome, endereço e rosto) no texto é uma opção decorrente dessa visão. Há uma aculturação do jornal, na qual a subjetivação do leitor é chave. Entretanto, é provável que o discurso do jornal seja parafrástico, ou seja, mesmo que tenha como fonte empírica vários locutores, reafirma sempre determinados sentidos. Trata-se de um modo de endereçamento que prioriza o universo e a fala do público popular, mas acaba por deslocar-se do jornalismo.

Ao responder às perguntas inspiradas em Ellsworth, podemos afirmar que no Diário Gaúcho predomina uma lógica heterônoma em detrimento da lógica jornalística. Afinal, o jornal imagina que o leitor gosta de se ver, contar suas histórias e as injustiças cometidas contra si, mas é alguém a quem os assuntos públicos e coletivos só importam enquanto estiverem relacionados ao seu quintal. O jornal entende que o público precisa de muita prestação de serviço, entretenimento e intermediação com o poder público. Ao respondermos o questionamento Quem esse jornal deseja que o leitor seja?, podemos dizer: alguém dependente de seu assistencialismo e atraído pelo fato de ver seu rosto e sua fala publicados no jornal.

Atração para o interesse público

Esse tipo de endereçamento, com aspectos questionáveis do ponto de vista do jornalismo, deve servir para chamar nossa atenção para o fato de que precisamos reconhecer no leitor popular um destinatário legítimo. Se interessa falar para a maioria da população, precisamos pensar na aceitabilidade do discurso jornalístico. A aceitabilidade de um discurso não depende somente de sua gramaticalidade, mas também se ele é crível, eficaz ou simplesmente escutado. Diz Bourdieu que o discurso é um ‘produto do encontro entre um habitus linguístico, isto é, uma competência inseparavelmente técnica e social (ao mesmo tempo capacidade de falar e capacidade de falar de uma certa maneira, socialmente marcada) e um mercado, isto é, um sistema de formação de preços que vão contribuir para orientar antecipadamente a produção lingüística.’ (apud BARROS FILHO & MARTINO, 2003, p. 29). Bourdieu (1994, p.160) lembra que a competência é também capacidade de se fazer escutar. Não procuramos somente ser compreendidos mas também acreditados, respeitados, reconhecidos.

Bourdieu explica que as condições de instauração da comunicação são importantes porque as condições de recepção esperadas fazem parte das condições de produção. A produção é comandada pela estrutura do mercado ou, mais precisamente, pela competência na sua relação com um certo mercado (1994, p.161). Ao contrário da prática literária, na prática jornalística exige um conceito prévio do campo da recepção, que garante o sucesso empresarial, mas que deve estar presente fundamentalmente para que o jornalismo tenha eficácia simbólica.

Nós, jornalistas e pesquisadores, precisamos dar mais atenção às condições de recepção e aos aspectos culturais que a envolvem, sob pena de vermos os espaços jornalísticos cada vez mais tomados pela auto-referência da mídia e pelo entretenimento. Para competirmos nesse mercado simbólico, não podemos deixar de assumir nosso interesse em atrair o leitor para as informações de interesse público.

Formas diversas de redação

Os modos de endereçamento estão intimamente ligados com o perfil do leitor e de seu universo social e cultural. Traquina (1999) já disse que a construção da notícia parte de mapas culturais. Para que uma informação faça sentido, é necessária a ocorrência anterior de outros sentidos já fixados na memória discursiva que possam ser filiados ao acontecimento presente. São recursos que estão presentes em alguma medida em toda a imprensa, mas se destacam na imprensa popular de massa, cujo lema é redigir a notícia procurando pelos efeitos mais adequados à satisfação da demanda simbólica.

Hall mostrou como os produtos do jornalismo devem também se tornar significativos por intermédio de sua identificação e contextualização social e cultural. As notícias são como narrativas ou estórias marcadas pela cultura da sociedade em que estão inseridas, sendo necessário mobilizar um saber de narração e dominar um inventário de discurso. Para Hall et alii (1993, p.232), a linguagem de cada jornal é uma versão da linguagem do público, que incorpora imagens e um estoque comum de conhecimento subjacente e constitui a base de reciprocidade produtor-leitor. Notícia não é literatura e embora seja índice do real, apela para soluções de legibilidade e abriga formas narrativas para enquadrar o acontecimento. Construir uma notícia é identificar o acontecimento e inseri-lo num contexto social, ou seja, colocá-lo num quadro de significados familiares do público (HALL et alii 1993, p. 226).

Tuchman (1993, p. 252) considera a notícia uma estória, uma narrativa que enquadra as informações nas estruturas e códigos culturais pré-existentes. Os jornalistas contam estórias recorrendo a padrões culturais. As notícias são construídas no interior de uma gramática da cultura, são estórias representativas dessa cultura e ajudam a compreender seus valores e símbolos. As notícias são freqüentemente narrativas míticas que fazem uso de formas pré-existentes de perspectivas de mundo para narrar estórias e atribuir sentidos. Os jornais representam a realidade de forma semelhante à da representação dramática e seus gêneros podem assemelhar-se aos gêneros literários.

Talvez precisemos exercitar o ponto de vista das notícias como estórias, como narrativas culturalmente construídas, sem negar sua intenção de correspondência da realidade exterior (BIRD e DARDENNE, 1993, p. 263). Buscar formas diversas de redigir as notícias, de apresentar fontes e testemunhos, de ligar os casos individuais ao problema coletivo de forma mais interessante.

Enfim, precisamos sair de nossa endogenia e traduzir nossos valores para formas populares de endereçamento do jornal impresso sem que precisemos nos afastar de nossos preceitos éticos. Trata-se de um processo complexo que deve amadurecer paulatinamente nas aulas, pesquisas e práticas profissionais, sobretudo nos cursos de Jornalismo. Precisamos pensar em modos de endereçamento que partam das convergências entre o interesse público e o interesse do público, pois eles não são necessariamente excludentes.

Fica evidente que o jornal aqui apresentado assume um modo de endereçamento destituído do compromisso primeiro com o jornalismo. O que temos a aprender com a indústria cultural e com as estratégias de marketing é fundamentalmente criar modos de endereçamento específicos, subordinados, entretanto, aos valores mais nobres do jornalismo, como a orientação para o interesse público.

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Professora. do Curso de Comunicação Social/Jornalismo da Universidade Federal de Santa Maria e doutoranda do PPGCOM/UFRGS