Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Foro de São Paulo e o TSE imperial

Foi publicado no YouTube, por alguém que se nomeia “jumento provinciano”, um vídeo intitulado “A Derrota da Democracia“. Esse vídeo defende a tese de uma origem causal única – O Foro de São Paulo – para diversos eventos políticos, econômicos e sociais vivenciados pelo Brasil na última década, inclusive o papel “imperial” protagonizado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) na defesa da “segurança” da urna eletrônica. Este artigo analisa essa teoria de causa única para o TSE imperial, à luz dos fatos históricos. Se pode ou não ser apenas mais uma “teoria da conspiração”, pergunta levantada numa importante lista de discussão sobre segurança na informática.Urna eletrônica_protótipo

Começamos por observar que o exercício desse papel imperial pelo TSE antecede em quase uma década a primeira vitória presidencial, com essas urnas, do partido que fundou o Foro de São Paulo. E a contribuição de líderes adversários desse partido – como Hugo Napoleão e Demóstenes Torres, do PFL, e o mentor do mensalão, tucano mineiro – na consolidação desse papel imperial. Para conhecê-la, basta consultar os anais do Congresso Nacional relativos à legislação sobre nosso processo de votação, conforme relatado por exemplo em “Seita do Santo Byte”. E para conhecer a origem desse papel, basta pesquisar a história da informatização desse processo, cuja fase preliminar o TSE não está muito interessado em preservar (hoje seu site oficial nada registra sobre essa fase).

Portanto, pela cronologia dos fatos principalmente, não faz sentido classificar a relação do Foro de São Paulo com esse papel imperial como de causa única. Alternativamente, a hipótese de um governo de esquerda permitido e controlado para camuflar a perpetuação do escravagismo financeiro armado por banqueiros globalistas desde a invenção dos Bancos Centrais (em 1695, na Inglaterra) é, para mim, que acompanho de perto o papel do TSE na evolução de seu sistema informatizado há 14 anos, a que melhor explica a relação entre o imperialismo desse papel e o Foro de São Paulo: não o deste como causa única daquele, mas deste como de cooptado; o que teria permitido a vitória de Lula em 2002 depois de três derrotas sucessivas, e as três subsequentes do PT para a Presidência da República com ou sem votos suficientes.

Ainda sobre essa hipótese, o mais importante é que ela também explica porque, uma vez esgotada a utilidade dessa camuflagem para os verdadeiros donos do poder terreno, a tese ventilada pelo citado vídeo ganha fôlego em redes sociais e psy-ops hora em curso: Nelas, tal teoria sobre essa suposta causa única, martelada em mentes deliberadamente ignorantes da história (como as centenas que marcaram “gostei” no vídeo que a promove), servirá para expandir, de forma socialmente aceitável, as funções do TSE para incluir uma nova, útil à fase seguinte do escravagismo financeiro. Fase que iremos em breve viver por todo o mundo, e expansão que pode transformar o órgão absolutista que encarna esse poder imperial em um que também exerça a função de polícia política e tribunal de exceção, função que durante o Estado Novo foi exercida pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS).

Fatos relevantes

Há pelo menos três relevantes fatos históricos relacionados à teoria em análise:

>> Foi o próprio Estado Novo que, depois de transferir esse imperial poder eleitoral de sua sede anterior (na República Velha ele se alojava no Legislativo) para sua sede atual (na esfera Judiciária) em 1932, “imperializou” o DOPS, que a partir de 1964 foi utilizado pelo regime militar como instrumento de sua defesa (durante a primeira guerra fria), o qual foi depois pulverizado pela Constituição de 1988, com suas divisões rebaixadas ao comando e orçamento de governos estaduais, e em alguns casos à extinção por estes;

>> Mas a própria Constituição de 1988 abriu espaço a uma vindoura expansão desse poder imperial, sinalizada pela persistente popularidade dessa tosca teoria de causa única, ao permitir que uma norma infraconstitucional, o Código Eleitoral oriundo do regime militar (Lei 4.737, de 1965), continuasse empoderando um órgão formalmente judicativo-eleitoral para normatizar – através de norma infralegal – condutas políticas que julgar de sua competência e coibir “transgressões” (por meio, por exemplo, pelos artigos 240 a 249 combinados aos efeitos do artigo 257 do citado Código Eleitoral);

>> Essa tendência expansionista vem sendo progressivamente corroborada e implementada não só por obscuros acordos de cooperação entre tal órgão e agências de vigilantismo global, e por disputas políticas pelo controle de sistemas como o RIC, mas também por viúvas da primeira guerra fria, que vivem do passado ideológico e não enxergam ou não entendem a segunda guerra fria – esta entre as potências interessadas num mundo unipolar e as interessadas num mundo multipolar. Por aqueles e aquelas que, quando confrontados com o poder imperial eleitoral tupiniquim, nele só viam virtudes antes de 2014, mas que agora se assustam com espantalhos como o Foro de São Paulo, sem perceberem de onde vem hoje o perigo maior da tirania. Sem se darem conta de que, entre uma e outra guerra fria, o foco da ameaça socialista migrou, das potencias que a rebaixaram em favor de um mundo multipolar, para as que estão ressuscitando o fascismo em prol de um mundo unipolar.

Verniz

Para um verniz de credibilidade, o citado vídeo apresenta uma alegada “evidência científica” de manipulação de votos na eleição presidencial de 2014, que teria sido “descoberta” por meio de discrepâncias exibidas pela totalização dos votos em nível nacional e estadual, quando comparados com aqueles previstos pela aplicação da chamada “Lei de Benford”. Um resumo executivo desse trabalho de descoberta, escrito por Hugo Hoeschl e Tania C. D’Agostini Bueno, é apresentado em “Eleições eletrônicas 2014 no Brasil – Relatório Bueno & Hoeschl”. Cabe então aqui a pergunta sobre como essas discrepâncias encontradas por Bueno e Hoeschl se vinculam como evidências de manipulação de votos, ou as constituem de forma aduzível a suspeita de fraude na correspondente votação ou totalização.

Para respondê-la, nem precisei me dar ao trabalho de pesquisar: logo que a teoria envernizada do vídeo foi pautada na citada lista de segurança, um colega respondeu apontando para um artigo científico capaz de nos saciar de resposta. Um artigo publicado por pesquisadores da Caltech, universidade americana que abriga, entre seus pesquisadores, 33 vencedores de prêmio Nobel (um deles duas vezes), que desmonta qualquer vinculação entre parcelas de votos e somas totalizadas destoantes das previstas pela Lei de Benford, e evidências estatísticas de manipulação indevida dos votos sufragados numa eleição.

Resumindo: a Lei estatística de Benford em nada serve para se detectar fraudes eleitorais. E, portanto, esse verniz é apenas, digamos, jumentista. De minha parte, ao considerar a hipótese descrita acima – de que a utilidade de um governo camuflado de esquerda se esgotou para os poderosos globalistas – como a mais plausível, vejo o trabalho que enverniza essa teoria de causa única cumprindo o papel de cortina de fumaça para nos distrair das evidências de fraude na direção oposta, ocorrida na eleição de 2014 mas no primeiro turno, esta substanciada por indícios arrolados em artigo que na ocasião publiquei em vários portais.

Como dito na introdução, o papel do TSE na defesa de seu sistema de votação eletrônica tem sido “imperial” desde sempre. Desde a fase preliminar, quando uma comissão de notáveis instalada em 1994 por seu então presidente, ministro Carlos Veloso, a fim de escolher um modelo de urna eletrônica para seu sistema, convidou os TREs a apresentarem propostas. O modelo escolhido por esta Comissão, em 1995, foi o projeto que a IBM apresentou com protótipo a pedido do TRE de Minas Gerais. Esse modelo seguia, além dos requisitos exigidos pela Comissão – que incluía o da impressão dos votos para permitir conferência por recontagem manual –, requisitos de segurança específicos para proteção digital contra manipulação indevida. O protótipo apresentado (imagem acima) implementava esses requisitos conforme critérios de engenharia adequados e tecnologias disponíveis à época, mas, na encomenda das urnas, o requisito do voto impresso foi eliminado depois da primeira licitação (a partir de 1998), e os requisitos de segurança digital do modelo vencedor, eliminados nas duas primeiras (1996 e 1998).

Fatos e teorias

A Comissão instalada para escolher o modelo de urna eletrônica foi desfeita antes dos preparativos para a eleição que inauguraria oficialmente seu uso, em 1996, e o edital de licitação que o TSE publicou para comprar essas primeiras urnas não incluía nenhum requisito de segurança digital. Nem mesmo os especificados no projeto que a Comissão havia escolhido como modelo. Esse primeiro edital requeria apenas algumas das funcionalidades que foram exigidas no concurso para escolha do modelo, e outras funcionalidades apresentadas por um dos modelos vencidos (o apresentado pelo TRE de Mato Grosso, projetado também pela IBM), tais como a tela gráfica para exibição de fotos de candidatos.

Outra decisão imperial nessa eleição pioneira de 1996 foi a de não se utilizar os votos impressos para conferir os totais tabulados virtualmente pelas urnas eletrônicas, lançados diretamente na totalização como mapas de apuração definitivos para as respectivas seções eleitorais. Como depois ninguém se queixara desses lançamentos de origem virtual, que suprimiam a fiscalização externa da apuração nas respectivas seções eleitorais, essa “experiência” modernizante serviu posteriormente para justificar a retirada do voto impresso do sistema de votação, durante a proposta e debate legislativo para aprovação de uma nova lei eleitoral que iria regulamentar a votação eletrônica – a Lei 9.504 de 1997. Assim foi legalizada a supressão do voto impresso para conferência, que perdura desde 1998 com o exercício intervencionista desse papel imperial no processo legislativo, sempre que tal supressão se vê “ameaçada” por “retrocessos”.

E na licitação de novas urnas para a eleição seguinte, em 1998, já contaminada por rumores de disputas em torno da “propriedade intelectual” dessas modernidades, ademais da supressão do voto impresso, continuaram ausentes os requisitos de segurança, conforme depoimento do engenheiro – hoje membro do CMInd – que havia desenvolvido e implementado junto à IBM o modelo vencedor. Logo essa conduta imperial do TSE passou a ser criticada por especialistas, técnicos e fiscais de partido – inclusive do partido que havia fundado o Foro de São Paulo –, como por exemplo num Relatório para o Senado apresentado antes da eleição seguinte, de 2000. Como essas críticas eram invariavelmente ignoradas pelo dono do sistema (a menos que pudessem ser adaptadas para consolidar esse poder imperial), e também (talvez inadvertidamente) por boa parte dos eleitores, elas passaram a ser publicadas em um Fórum do Voto Eletrônico, que registra fartamente justificativas para convencer os intelectualmente honestos de que os fatos contradizem a teoria de causa única elucubrada naquele vídeo.

O tema daquele vídeo seria então apenas mais uma “teoria da conspiração”? Esta foi a pergunta posta no citado debate que motivou este artigo. Conspirações contra o ordenamento democrático sempre existiram, onde quer que ele tenha se instalado. Para se convencer disso, basta ler o conceito no dicionário, e os fatos relacionados nos livros de história. O leitor tem todo o direito de comparar teorias conspiratórias – a do vídeo envernizado de jumentismo com a que pode ser subsumida deste artigo, por exemplo –, e reter a que lhe convém como explicativa de fatos. Mas como procurei explicar aqui, entendo que o sucesso de conspirações desse tipo se torna inevitável na fase atual do capitalismo global. Teoriza a respeito quem tem, para isso, respaldo ou competência.

***

Pedro Antonio Dourado de Rezende é professor do Departamento de Ciência da Computação da Universidade de Brasília. Advanced to Candidacy a PhD pela Universidade da Cali­fornia em Berkeley. Membro do Conselho do Ins­tituto Brasileiro de Política e Direito de In­formática, ex-membro do Conselho da Fundação Softwa­re Li­vre América Latina, e do Comitê Gestor da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-BR), en­tre junho de 2003 e fevereiro de 2006, como representante da Sociedade Civil. http://www.­cic.unb.br/docentes/pedro/sd.php