Que o presidente Lula sofre do que pode ser chamado de ‘incontinência verbal’ ninguém duvida. O impacto dessas ‘falas’ sobre a sua popularidade, no entanto, ainda é objeto de maiores observações, caldeirão de hipóteses diversas e motivo de aposta assuada dos seus opositores.
O dilema envolvendo esse seu modo peculiar – ou seria popular? – de expressão resulta em um julgamento que se divide entre a preocupação com a postura inerente ao cargo e o preconceito lingüístico elitista, com direito a defesas inflamadas do eruditismo, no qual o ‘réu’ em questão é acusado de assassinar não só a gramática, mas também a diplomacia e as etiquetas das convenções sociais.
‘Às vezes o cara está no bar xingando o banco, os juros, o cartão de crédito dele, mas no dia seguinte é incapaz de levantar o traseiro e ir ao banco mudar a sua conta para um mais barato’ (Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, 25/4/2005)
No episódio mais recente, Lula ganhou, na mídia, um aliado inusitado. O apresentador Ratinho, do SBT, defendeu esse estilo incontido, do qual ele mesmo tanto se beneficia com os pontos a mais de audiência, dizendo ser esse o modo popular de expressão e a comunicação mais eficaz com grande parte da população brasileira: pobre, marginalizada e sem acesso à escolarização. Vale lembrar que essa é uma opinião a se considerar nos cenários político e midiático. Mesmo dedicado ao entretenimento, o apresentador e sua imagem em si estão diretamente ligados à eleição do mais votado deputado estadual no Paraná no último pleito: Ratinho Jr. (189.693 votos), cujo mote de campanha era sua certidão de nascimento. Orientação de popularidade, portanto, é incontestavelmente um tema que o apresentador Ratinho domina.
Mas o que não se pode deixar passar batido é a crítica a respeito do modo exagerado com que a imprensa alardeia, digere e regurgita esses acessos de ‘espontaneidade’ do presidente Lula. Na semana passada, o ataque à famosa frase sobre os traseiros acomodados, dita pelo presidente, foi manchete dos principais jornais do país. E, o que é pior, o conteúdo da maioria esmagadora das reportagens sobre o lançamento do Programa Nacional de Microcrédito Produtivo Orientado foi marcado por um bundalelê exagerado. Muitos profissionais da imprensa e comunicadores em geral (justiça seja feita a todos e raros que não vestirem a carapuça aqui), preocupados em repercutir e até mesmo reproduzir das agências e colunas a ofensa contida na frase supostamente infeliz, esqueceram de levantar os traseiros para explicar à população meandros e complexidades, vantagens e desvantagens da política de microcrédito e microfinanças, elaborada pelo Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) específico, para além dos dados contidos no release do Palácio e na matéria da Agência Brasil. A imprensa viu somente o que procurou. E o que achou foi um grande ‘traseiro’ na frase presidencial.
Não se pode dizer que esse comportamento da mídia seja uma exclusividade da cobertura do presidente Lula. Não. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, com um histórico de instrução formal impecável e sem as mesmas carências sociais de seu sucessor, também teve algumas gafes ‘eternizadas’ pelos meios de comunicação de massa. Que o digam os aposentados, os bolivianos (ou peruanos?), os sul-matogrossenses e todos aqueles que, supostamente como ele se auto-proclamou, ‘têm o pé na cozinha’.
Mas a repercussão dos discursos de Lula ganham uma dimensão maior na imprensa. Em vez do termo elegante ‘gafe’, o que Lula fala ganha status de ignorância. Uma injustiça cruel e preconceituosa contra sua notável inteligência, sua história de vida e toda a construção política e social que ele vivenciou na organização sindical e popular.
O caso Noblat
O colunista Ricardo Noblat deu um show à parte na cobertura da tão esperada primeira entrevista coletiva do presidente Lula. Com faca e garfo na mão e disparando comentários simultâneos em seu blog, o jornalista aguardava o início da entrevista ansioso por mais uma incontinência presidencial.
Enquanto esperava as pérolas de lá, deixava escapar umas tantas de cá, descrevendo o ambiente da coletiva, os colegas da imprensa, o cerimonial e até mesmo contestando a cor do tapete que logo seria pisado pelo presidente, já dando mostras do que viria dessa descrição. Com cerca de meia hora de entrevista, Noblat começou a se preocupar se os colegas fariam a tão esperada pergunta sobre os ‘traseiros acomodados’:
‘Entrevista de Lula – Punhos de renda: Elegantes, esses jornalistas. Dois já perguntaram sobre juros, mas nenhum mencionou a expressão grosseira de Lula aos traseiros acomodados dos brasileiros. Enviada por Ricardo Noblat (29/04/2005 -11:27)’.
Essa preocupação gerou a postagem de 21 comentários no blog, durante o tempo da entrevista.
Menos de 20 minutos depois e já se aproximando do fim das perguntas, o jornalista dispara indignado:
‘A entrevista de Lula – Assim é sopa: Parece que os jornalistas e o Planalto fizeram um pacto antitraseiro nesta entrevista. Nem Lula tocou no assunto nem lhe foi perguntado. É como se não tivesse acontecido. E faltam só duas perguntas para terminar a entrevista. Enviada por Ricardo Noblat (29/04/2005 -11:55)’.
Rendimento: nove comentários – é necessário lembrar que essa apuração só durou até o fim da entrevista. E como os blogs são dinâmicos, não se pode afirmar que essa contagem represente de fato o que foi registrado no dia.
Já com suspiros profundos de decepção, Noblat solta essa pérola fetichista no contexto do jargão jornalístico atual:
‘A entrevista de Lula – Insossa: Feita a última pergunta, ninguém mexeu com os traseiros que o presidente julgou acomodados. Predominou a economia, na primeira entrevista de Lula, depois de dois anos e quatro meses de governo. Nada de extraordinário, marcante ou singular foi dito por ele… Enviada por Ricardo Noblat (29/04/2005 -12:08)’.
Vinte e dois comentários!
Mas, para felicidade geral do colunista, eis que ele tem mais uma mensagem a postar a ‘plenos pulmões’:
‘A entrevista de Lula – Fora do ar: Os traseiros acomodados, finalmente. Quando já se retirava do púlpito e se despedia de alguns jornalistas, Lula ouviu de um deles (quem?), fora dos microfones:
– E os traseiros, presidente? O que o senhor tem a dizer?
– Responda você – rebateu Lula. E foi embora… (29/04/2005 -12:15)’.
Como é típico da calmaria que se segue aos momentos de grande excitação, o jornalista encerra essa postagem com um requintado exemplo da cobertura criticada neste artigo:
‘…Neste momento, os jornalistas se ocupam em tomar suco de frutas e comer sanduíches, biscoitos e salgadinhos. Cortesia do Planalto. O pão de queijo está frio. O suco está morno. Bem no clima da entrevista. Enviada por Ricardo Noblat (29/04/2005 -12:15)’.
Saldo: nove comentários.
Perguntas que escaparam
No livro A norma oculta – Língua & poder na sociedade brasileira, o professor Marcos Bagno cita Santo Agostinho logo na abertura do texto, em argumento que também ilustra o debate em torno da fala do presidente Lula, criticada por uns e adorada por outros:
‘Melhor ser repreendidos pelos gramáticos do que não ser entendidos pelo povo’.
Por mais que tenha algum fundamento a tese do apresentador Ratinho a respeito da popularidade no modo de se expressar do presidente Lula, ela só indica que grande parte da população pode entender o discurso presidencial, mas isso não é justificativa para a crença de que, em decorrência dessa compreensão, a repercussão da fala (feliz para uns, infeliz para outros) de forma exagerada e maçante seja a única informação que essa mesma população deseja consumir nos noticiários. Se a orientação editorial de determinados veículos for a de escrachar esse governo, que o faça pela contestação de suas ações e o faça com propriedade.
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Por que setores da imprensa resolveram dar mais vazão a uma espécie de desdém, que se impõe à cobertura dos discursos de Lula, e não a traduzir para leitores, telespectadores, internautas e ouvintes o linguajar financeiro da pauta e questionar o investimento que o governo brasileiro está fazendo por meio das parcerias para o microcrédito e a inclusão bancária?**
O que é na prática isso que o governo aponta como ‘ovo de Colombo’ do gargalo da geração de emprego e renda?**
Trata-se uma medida paliativa para os pequenos empreendedores que reclamam dos juros escorchantes praticados? Ou é um investimento na estruturação e no incremento econômico a partir destes setores? Por quê?**
O microcrédito praticado por cooperativas de crédito, ONGs, Oscips e agências de fomento vai contribuir para minimizar a drástica concentração de renda a longo prazo? Vai gerar e sustentar oportunidades? Pode impulsionar a geração de trabalho e renda de forma sustentável? Como?O governo diz que sim e aposta nessas parcerias estratégicas com organizações que conhecem e entendem as necessidades de seus clientes.
A esmagadora maioria dos cooperados do Sistema Cresol de Cooperativas de Crédito Rural com Interação Solidária, agricultores e agricultoras familiares, por exemplo, só passaram a possuir conta bancária (inclusão) a partir do desenvolvimento de suas políticas de microcrédito. Primeiro porque não conseguiam vencer o excesso de burocracia na tomada do empréstimo pelos agentes financeiros do passado, alheios à sua realidade, e, segundo, porque não ofereciam as garantias requisitadas por estes agentes desconhecidos e não passavam nas análises de capacidade de pagamento, embora as experiências demonstrassem que a inadimplência no crédito rural não era um problema da agricultura familiar e, sim, das grandes agroindústrias e da agricultura patronal.
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Mas a inclusão bancária gera impacto no consumo interno? Em que proporções isso pode se dar, se comparada com investidas mais agressivas na recuperação do poder aquisitivo da população via o aumento do salário mínimo, por exemplo?Essas são apenas algumas das perguntas que a imprensa, de um modo geral, deixou escapar enquanto só pensava ‘naquilo’.
Situação real
Os números levantados pelo GTI de Microcrédito e Microfinanças nas instituições financeiras indicam que, até março deste ano, bancos estatais (CEF, BB, Banco Popular do Brasil, BNB e Basa) haviam aberto, no total, mais de 5 milhões de contas simplificadas, ou seja, contas cujo saldo não ultrapassa 1.000 reais, a não ser no caso de somar-se o valor da operação de investimento neste saldo, com gratuidade em até 12 operações por mês, sem exigência de comprovante de renda e de endereço.
De acordo com dados do Banco Central do Brasil, entre janeiro de 2004 e fevereiro de 2005, foram realizados mais de 5 milhões e 500 mil contratos de microcrédito (perto de 1 bilhão e meio de reais), com taxas de juros limitadas a 2% ao mês e dispondo de recursos provenientes dos depósitos especiais do microcrédito, os tais 2% das exigibilidades bancárias – todos os depósitos à vista que os bancos têm de recolher ao Banco Central.
A título de comparação, uma espécie de crédito similar que vem sendo praticada no país há algum tempo e que passou a ter mais recursos nas últimas duas safras é a dos contratos do Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar). Para este ano agrícola, o governo federal anunciou que chegará a 7 bilhões de reais o volume de recursos investidos no setor. Todos os anos, os recursos do Pronaf são aguardados ansiosamente não só pelos agricultores, como pelo comércio em geral e pelo mercado de insumos agrícolas. É que o dinheiro aplicado na agricultura familiar incrementa a economia dos pequenos municípios do interior; fica na região ‘do entorno’ do investimento e impulsiona o desenvolvimento local. Essa situação é real. Acontece de fato.
Os traseiros suaram
O que o governo pretende, com o microcrédito e as políticas de microfinanças, é expandir a experiência que vem dando certo na agricultura familiar para o meio urbano. É claro que, este ano, os investimento poderão colher certa frustração na Região Sul, por conta da longa estiagem que castigou as lavouras nos três estados e comprometeu o orçamento de milhares de famílias produtoras de alimentos.
Mas as dúvidas permanecem. A menos que o próprio governo resolva contar mais dessa história a partir de seus mecanismos de comunicação e de seus interesses, os ouvintes, telespectadores, leitores e internautas continuarão sem possibilidade de aprofundar esse assunto.
A julgar pelo nível de informações a que a população teve acesso até agora, através da mídia, só se pode esperar pelo bundalelê mesmo, infelizmente. Lula vai e deve continuar ‘falando do seu jeito o que quer e ouvindo o que supostamente não quer’. Supostamente porque passarinho muito esperto diz que há a hipótese de que esta seja, também, uma muito promissora jogada de marketing. Na base do ‘fale bem ou fale mal, mas fale de mim’, o ‘traseiro’ dos acomodados nunca malhou tanto: correu acelerado, fez aeróbica, musculação, hidroginástica, cobrou o pênalti e ainda se posicionou no gol a fim de agarrar a bola.
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Jornalista em Curitiba