Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

‘O Brasil virou um passeio ciclístico’

Nos mais de 20 anos em que se dedica a investigar para onde vai o dinheiro dos contribuintes que sai dos cofres públicos, é a primeira vez que Gil Castelo Branco recebe, de bom grado e por meio das mãos oficiais de uma equipe econômica, sua própria senha de acesso ao Siafi, sistema em que são registradas as despesas e receitas da União. Até então, seu trabalho dependia da bondade de estranhos, quase sempre deputados ou senadores dispostos a emprestar o código de acesso.

“Usávamos senhas de terceiros, de deputados, senadores, uma coisa improvisada”, diz o sócio­-fundador da associação Contas Abertas, que acompanha e fiscaliza os gastos públicos há dez anos e é considerada a principal “farejadora” do Orçamento no país. A ONG, que não recebe recursos públicos e tem orçamento mensal de R$ 50 mil, se mantém realizando consultorias e cursos para entidades como Fiesp, CNI, Banco Mundial e Unicef. Sete pessoas compõem a equipe fixa da organização, que trabalha em uma sede alugada em Brasília.

“Quando a nova equipe econômica foi anunciada, cumpri o meu ritual e pedi uma senha [do Sistema Integrado de Administração Financeira – Siafi, por meio de ofício]. E qual não foi a minha surpresa quando a recebi”, diz o pesquisador, acostumado a ouvir “nãos” de autoridades de cargos e filiações partidárias variados. “Ao que parece, há uma boa intenção em tornar [as contas públicas] mais transparentes. Pelo menos por parte do [Joaquim] Levy”, disse.

No dia em que concedeu entrevista ao Valor, em sua residência em Brasília, Castelo Branco havia acabado de receber mais uma negativa para a sua coleção: a do Ministério do Planejamento, que se recusou a fornecer as senhas para o Sistema Integrado de Administração de Serviços Gerais (Siasg) e ao Sistema de Informações das Estatais (Siest). A intenção do pesquisador é questionar as duas decisões na Justiça já que, na visão de Castelo Branco, a divulgação de dados sobre as estatais brasileiras deveria seguir as demais regras da Lei de Acesso à Informação.

Procurada pela reportagem, a assessoria de imprensa do Ministério do Planejamento disse que negou a senha do Siasg, de acesso irrestrito, com base no artigo 120 da Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2015, que assegura esse acesso somente aos membros dos Poderes da União. Já a senha do Siest foi negada “devido ao caráter sigiloso das informações referentes ao Programa de Dispêndios Globais (PDG) das empresas estatais”, disse o Planejamento, que destacou que a negativa está em acordo com parágrafo 2º do Art. 5º do Decreto 7.724/2012 que regulamenta a Lei de Acesso.

A resistência dos gestores públicos, independentemente de orientação política, em abrir suas contas reflete o pouco espaço que a busca por transparência ocupa no dia a dia dos brasileiros, na visão do economista. “Para o governante, a transparência é um inferno, mas para a oposição é uma maravilha”.

Uma das lições mais importantes deixadas pela Operação Lava Jato, diz, é a “falência completa” do sistema de controle das estatais, já que a corrupção na Petrobras passou sem ser notada, pelo menos, em sete níveis de fiscalização. O economista carioca, que antes de fundar a Contas Abertas passou pelos Ministérios do Planejamento, Fazenda, Transportes e Comunicações, defende aprimoramentos à Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que acaba de completar 15 anos. “Uma equipe do Tesouro passou uma tarde no Contas Abertas, discutindo como dar mais transparência às contas públicas” beiradas”.

A seguir, os principais trechos da entrevista:

Qual a importância de o sr. ter uma senha do Siafi concedida pela Fazenda?

Gil Castelo Branco – Desde o início o Levy começou a falar sobre a necessidade de mais transparência nas contas públicas e sugeria que não ia seguir os caminhos da gestão anterior. A minha dúvida era se aquilo era só um discurso ou na prática ia acontecer. E o que surpreendeu foi que aconteceu. O Contas Abertas existe há dez anos, e somos considerados, não por mim, mas pelo que dizem as outras pessoas, os maiores “watchdogs”, ou “cães farejadores” do Orçamento da União. E nunca, até então, nós havíamos tido a senha do Siafi, onde são lançadas as receitas e despesas do Tesouro Nacional. Usávamos senhas de terceiros, de deputados, senadores, uma coisa improvisada. Precisávamos estabelecer parceria com um senador ou um deputado, e nós fornecíamos a ele as informações que ele desejasse e talvez não tivesse conhecimento técnico para obter. E aí quando entrou o Levy eu pedi a ele a senha.

O sr. já havia pedido para outros governos também?

G.C.B. – Eu tenho vontade de ter senhas em toda a Esplanada; tenho uma coleção de senhas que eu queria ter. Então quando entrou este governo mandei novamente o pedido para vários ministérios. E qual não foi a minha surpresa quando o Levy me deu a senha para o novo Siafi. Na verdade foi o secretário do Tesouro [Marcelo Barbosa Saintive], mas eu entendo que com a autorização do Levy. E além disso, na semana seguinte, uma equipe de cinco técnicos do Tesouro passou uma tarde no Contas Abertas, discutindo maneiras de dar mais transparência às contas públicas, o que nós ainda gostaríamos de ter acesso e que não temos, como a transparência deveria evoluir. Isso faz umas duas semanas. Esses técnicos do Tesouro estão fazendo um trabalho para ampliar a transparência das contas públicas. Eu sou, na prática, testemunha dessa boa intenção. Pelo menos, por parte do Levy, porque as outras senhas que eu pedi, não recebi.

Quais as senhas mais difíceis de conseguir?

G.C.B. – O Planejamento já negou, recebi inclusive a negativa hoje [quinta-feira, 7 de maio]. Eu entrei com recurso na Controladoria Geral da União (CGU). Eu havia pedido em ofício ao ministro [Nelson Barbosa], e ele negou duas senhas: do Siasg, que é o Sistema Integrado de Administração dos Serviços Gerais, que tem informações que não se obtém de outras maneiras. Como dados sobre fornecedores do governo, quem é ou quem foi o dono ou diretores da empresa. Dados importantes do ponto de vista do jornalismo investigativo. A outra foi o Siest, Sistema de Informações das Empresas Estatais, que foi negada porque eles alegam que as estatais não estão incluídas no rol da Lei de Acesso à informação. A meu ver a lei incluiu as estatais, mas no decreto conseguiram que fosse colocado um parágrafo que praticamente as colocou fora. Eu considero esse decreto ilegal. Porque ele não pode limitar a lei e deveria ser discutido judicialmente. Estou providenciando também para entrar com uma ação judicial.

Como é, em geral, a relação do Contas Abertas com os governos que fiscaliza?

G.C.B. – Até 2005, além de precisarmos de uma senha de terceiros, as consultas só podiam ser feitas dentro do Congresso ou do TCU. Foi assim até 2005. Fomos apresentados a um deputado recém-eleito, que na época era do PSDB, o Eduardo Paes, que criou uma área para nós dentro do gabinete dele. Antes de aceitar, ele me contou que consultou o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e perguntou: ‘o sr. lembra daqueles caras que levantavam aqueles dados do Siafi, sobre a goiabada cascão? [em 1995, o Contas Abertas descobriu que o governo FHC usou recursos do extinto Fundo Social de Emergência, hoje Desvinculação de Receitas da União – DRU, para comprar goiabada cascão para o Palácio do Planalto]. FHC teria respondido: ‘Claro que me lembro, aqueles caras infernizaram a minha vida”. Quando Paes disse que estava pensando em emprestar seu gabinete para que eles fizessem as mesmas consultas durante o governo Lula, a resposta foi rápida: ‘Ótimo’! Essa historinha mostra que, para o governante, a transparência é um inferno, mas para a oposição é uma maravilha. Mas não quero crer que essa seja uma dicotomia eterna. O que nos dá uma certa credibilidade, e que não dá para nos acusar de fazer um trabalho político, é que o que estamos fazendo hoje, estávamos fazendo em outros governos. O Contas Abertas tem dez anos, mas eu e Carlos Blener [vice-secretário geral do Contas Abertas], atuamos nisso há mais de 20 anos.

A busca por transparência na gestão pública ainda não faz parte da cultura do Brasil?

G.C.B. – Não, eu acho que o grande problema é esse. Nós hoje temos três leis extremamente importantes para o controle social: a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), a Lei Complementar 131, que na verdade fez uma emenda à LRF e instituiu a obrigação de toda a União, Estados e municípios terem portais de Transparência. Em tese, você poderia saber de todos os municípios, o que cada um comprou, de quem comprou, quanto pagou. Isso tudo, teoricamente, seria possível. E por fim, a Lei de Acesso à informação. Nós temos problemas em relação às três leis. Eu me lembro o que dizia Montesquieu: quando vou a um país não procuro saber se há boas leis, porque boas leis existem em toda parte; procuro saber se as leis são de fato aplicadas. Os textos das leis brasileiras são considerados os mais modernos de leis semelhantes no mundo inteiro. Mas a transparência não faz parte da cultura do brasileiro. O que predomina aqui ainda é a cultura do sigiloso, do secreto, do reservado. Ou a ideia que o burocrata tem de que informação é poder e que ele tem que guardar essas informações com ele, porque assim ele será mais importante.

Isso é mais forte no Brasil que em outros países?

G.C.B. – A democracia brasileira é muito jovem e tem a ver com isso. Com o fato de que tivemos uma ditadura militar por um longo período, que praticamente silenciou uma geração. Tem a ver com o fato de que tivemos uma inflação muito alta por muitos anos seguidos, que fez com que o brasileiro até se desinteressasse um pouco pelo acompanhamento das contas públicas e que a sociedade aceitasse passivamente o que vem do governo. O governo se acostumou a reter informações e isso parecia natural. Não por acaso o Brasil foi o 90º país a ter uma Lei de Acesso à informação. Chegamos tarde nessa festa da transparência.

Essa indignação atual em relação à corrupção ajuda a criar esta cultura?

G.C.B. – Sim, e acho que esses episódios, da forma com que estão sendo amplamente divulgados, estão fazendo com que a sociedade amadureça mais rapidamente. Vejo esse amadurecimento como um abacate que você enrola em um jornal e coloca no forno. Quando você tira de lá tem algumas partes que estão mais maduras e outras não. Esse amadurecimento no país vai se dando de formas dispersas mas vai virar uma nova cultura, não tenho dúvida disso. O mensalão foi um marco, porque foi um episódio em que a divulgação levou o assunto para bares, festas e para a mesa de jantar das famílias.

Como melhorar as leis de controle social?

G.C.B. – No que diz respeito à LRF, eu acho que é preciso regulamentar o que ainda não foi regulamentado, como, por exemplo, um limite para a dívida da União. Hoje você tem para os Estados, mas não para a União. A outra é a criação do Conselho de Gestão fiscal, previsto desde o início na lei e que nunca saiu do papel. Você teria representantes de todos os poderes, todas as esferas da União, Estados e municípios, do MP e da sociedade civil. Outro avanço que eu acho importante, que hoje o próprio Levy reconhece, seria melhorar a qualidade do gasto, gastar melhor. Você vai ter que ter dados físicos. Não basta saber o quanto você gastou para construir creches, você vai ter que saber quantas creches, calcular um custo de unidade. Aí você vai poder avaliar muito melhor a qualidade. Eu diria que hoje nós já temos números em abundância, mas dados físicos extremamente precários. Outra coisa que nós teremos que discutir é o nexo das decisões da União que afetam a responsabilidade fiscal de Estados e municípios. Muitas vezes a União está transferindo encargos para o município e o município precisa contratar mais gente. Aí o município estoura os limites da LRF. Daí o que ele faz? Deixa de recolher a Previdência porque o pouquinho que tem sobrando ele vai gastar em alguma obra que faça sua gestão aparecer. E aí ele fica devendo à Previdência, o que também é um problema.

Muitos municípios e prefeitos se dizem sobrecarregados. Você concorda?

G.C.B. – Concordo. A explosão das despesas nos Estados e municípios tem sido na área de pessoal. Não basta você só resolver o problema da União e sair dividindo as responsabilidades com os municípios sem dar a eles recursos para isso.

Que lições dá para tirar da Operação Lava­ Jato?

G.C.B. – Acho que a lição que deveria ser rapidamente absorvida é que o sistema de controle das estatais faliu. Hoje em dia é raro o escândalo em que você não encontra uma estatal envolvida. O mensalão, com os Correios. Depois, logo a seguir veio o caso do Banco do Brasil. E agora a Petrobras. A falência ficou caracterizada quando essa fraude sistematizada não foi detectada por nenhumas das instâncias de controle: os órgãos de controle internos da Petrobras; o conselho fiscal da Petrobras; o conselho de administração da Petrobras; a Comissão de Valores Mobiliários (CVM); o Dest, de controle e governança; o Coaf, porque foram movimentações absurdas de recursos; o TCU e a CGU. Esses órgãos eventualmente detectaram irregularidades em uma refinaria, mas nunca aquela fraude que, dizem, acontecia há mais de dez anos e era sistêmica, absolutamente organizada, com regras de um clube, um campeonato. Isso mostra, a meu ver, que precisamos rever este mantra sob o qual as estatais se escondem: de que elas atuam em um mercado muito competitivo e, se forem mais transparentes, vão perder competitividade. Isso precisa ser melhor discutido, porque o que fez a Petrobras chegar nessa situação não foi, de forma nenhuma, o excesso de transparência.

E como impedir que casos como o da Petrobras se repitam?

G.C.B. – É preciso mudar radicalmente a forma de indicação dos conselheiros dos tribunais de contas. A Transparência Brasil pesquisou 238 conselheiros de 26 tribunais de contas para traçar um perfil de quem eles são. Dos 238, 47 têm ocorrência na Justiça; 12 processados na Justiça, 6 por improbidade e um por homicídio. Estes são os nossos conselheiros, na maioria, indicados politicamente. Também precisamos melhorar as punições. Não se vê ninguém punido por descumprir a LRF. Voltamos para aquela fase em que o prefeito faz gastos absurdos para se reeleger e o novo governante tem que passar dois anos tentando arrumar a casa.

Há um relaxamento recente na LRF?

G.C.B. – Sim. A LRF está sendo rasgada pelas beiradas. No ano passado, pelo menos 17 Estados tiveram sua despesa bruta com pessoal atingindo patamares de risco. O que aconteceu no DF na gestão passada [do ex-governador Agnelo Queiroz, do PT] foi impressionante: creches fechando, o governo não pagou os professores, não pagou os transportes, manifestações todo dia. As três leis eram justamente para evitar isso. Nestes 15 anos, as brechas foram surgindo: Estados que estão maquiando as informações para não atingir os limites; e sobretudo, porque estão tendo a consciência de que não há punições. Das duas uma: ou você muda a lei, ou adota as punições. Caso contrário é o mesmo que a lei estivesse sendo rasgada.

Como melhorar isso?

G.C.B. – A LRF tem artigos muito claros: o governador não pode sair e deixar dívidas sem dinheiro para quitar. E, no DF, por exemplo, em que este ano os salários atrasados foram parcelados, como cidadão eu sou obrigado a deduzir que foi isso que aconteceu. E temos que tirar o lado partidário disso, porque o ex-governador do DF é de tal partido, porque isso é a mesma reclamação feita em Minas Gerais [do ex­-overnador Antonio Anastasia, do PSDB] e no Rio Grande do Sul [Tarso Genro, PT].

O bloqueio de recursos previsto na lei não está ocorrendo?

G.C.B. – Não. Seja qual for o partido – todos fariam a mesma coisa – há essa preocupação eleitoral e é muito difícil imaginar que a União vai punir todos os municípios quando ela dá o mau exemplo. Cada um deles quer sua “bicicleta” para dar “pedaladas” também. O Brasil virou um “passeio ciclístico”.

Como a corrupção na Petrobras poderia ter sido detectada antes?

G.C.B. – Com uma área de inteligência associada ao combate à corrupção. Se você tivesse pesquisado, por exemplo, a valorização do patrimônio dos funcionários, o patrimônio do Paulo Roberto Costa explodiu. Houve denúncias na Petrobras, mas se perderam. O corrupto vai onde o dinheiro está e as estatais movimentam R$ 1,5 trilhão por ano. Isso é maior que o PIB da Argentina. Elas têm meio milhão de funcionários, sofrem uma ingerência política muito grande e têm pouca transparência. Todo o ambiente que é preciso para o corrupto prosperar.

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Ligia Guimarães, do Valor Econômico