Poucas nacionalidades sofreram tanto na mão e na língua dos outros como a dos judeus. Por exemplo: até recentemente, a liturgia católica prescrevia, nas missas, que não apenas toda a Humanidade, mas também o Senhor tinha tido problemas com os ‘pérfidos judeus’.
A etimologia, ao fazer prospecções e pesquisas de palavras e expressões, encontrará abundantes exemplos de que outras nacionalidades também abasteceram o arsenal de preconceitos em todas as línguas, de que é exemplo o polaco no Brasil meridional.
Um dos últimos imigrantes do Paraná, o polonês foi chamado de polaco, termo pejorativo para designar sua etnia. O sociólogo Otávio Ianni, analisando temas e problemas daquele contexto, forjou a frase famosa: ‘O polaco é o negro do Paraná’. Os poloneses trabalharam como agregados ou subcolonos de colonos europeus, principalmente italianos e alemães, que tinham chegado primeiro. O sistema de dominação sócio-econômica, com suas perversas idiossincrasias, persistiu na sua dolorosa reprodução.
Machado de Assis, aliás, analisando o que um menino faz com outro nos tempos da escravidão, escreveu bela página sobre tal reprodução, muito antes que, no século seguinte, filósofos e sociólogos franceses como Michel Foucault, Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron nos dessem sutis interpretações de como o poder e suas mazelas se reproduziam ardilosamente nas instituições, principalmente na família, na escola, na igreja, na fábrica e, naturalmente, em hospitais, hospícios e prisões.
Eis como Machado narra seu desconcerto ao ver um ex-escravo maltratar outro.
‘Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas – transmitindo-as a outro. Eu, em criança, montava-o, punha-lhe um freio na boca, desancava-o sem compaixão; ele gemia e sofria. Agora, porém, que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se desbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera’.
De outra parte, judeus e polacos foram unidos no feminino, quando as prostitutas judias foram denominadas polacas, e polaca tornou-se sinônimo de prostituta, significado que nossos dicionários ainda mantêm, naturalmente. Não seja demais lembrar que tivemos até uma Constituição polaca, a de 1937.
Prescrição de normas
O português é outro habitual escravo do socialmente incorreto, designado politicamente incorreto por influência de modismo importado dos EUA, a meu ver uma deformação de políticas afirmativas que deram certo naquele país. O português sofre mais do que o papagaio nas piadas brasileiras. Se continuar assim, daqui a pouco surgirá uma cartilha das piadas brasileiras, o que será, ela mesma, uma piada.
Trago à lembranças tais fragmentos de reflexão sinceramente interessado na intenção que Perly Cipriano, subsecretário de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos, declarou ao fazer a cartilha Politicamente Correto, de que tomei conhecimento pela imprensa. Ainda não li, mas as transcrições me deixaram perplexo e desconcertado.
Li 22 das 96 palavras e expressões condenadas, que têm o objetivo de coibir o pecado do preconceito e elevar a virtude do bom conceito. Todas as 22 estão equivocadas, mas é impossível dizer nesse pequeno espaço por quê. Em resumo, seus redatores partiram de um preconceito para erradicar outros.
Nossa própria nacionalidade foi denominada a partir de um preconceito. Dada a prevalência do mercantilismo, por pouco não recebemos a alcunha inteira que a palavra ensejava – pau-brasileiro. Já Portugal, país formado pela união de vários condados, deriva do nome do condado portucalense e provavelmente tem na origem a forma latina portu galliae, porta dos franceses, mas persistem controvérsias sobre tal origem.
Vou ilustrar com um pequeno exemplo. A cartilha Politicamente Correto, editada sob os auspícios da Secretaria especial dos Direitos Humanos, diz que ladrão é ‘termo aplicado a indivíduos pobres’ e que ‘os ricos são preferencialmente chamados de corruptos, o que demonstra que até xingamentos têm viés classista’.
Ao contrário, as mudanças havidas no Brasil levaram à prisão até aqueles profissionais encarregados de julgar os outros. E eles foram chamados ladrões, corruptos, formadores de quadrilha etc. por todos, inclusive pela imprensa, de que são exemplos os juiz Nicolau dos Santos Neto, ex-presidente do TRT em São Paulo, e o juiz federal João Carlos da Rocha Mattos. Ambos foram condenados. Um está na cadeia, outro em prisão domiciliar.
Em suma, pelas amostras a cartilha é tosca por ignorar sutis complexidades do reino das palavras e do funcionamento do Estado. Um Estado assim concebido leva à perda da liberdade de expressão. Quem delegou autoridade a essas instâncias para prescreverem normas sobre o uso da língua portuguesa?
As palavras do título deste artigo estão em muitos livros e também nos dicionários. Deverão ser reescritas? Não entraram ali por preconceito de seus autores!
[Versão reduzida deste artigo saiu no Jornal do Brasil de terça-feira (3/5).]