Quem assistiu ao vivo, não esquece. Num letárgico domingo de 2011, primeiro de maio, um feriado que os americanos não comemoram, numa rara interrupção do horário nobre, Barack Obama fez o anúncio triunfal. Osama bin Laden, inimigo público número um do país, o foragido mais procurado do mundo desde o 11 de setembro, tinha sido morto em seu esconderijo no Paquistão, numa ousada operação de forças especiais de elite, os Navy Seals, a bordo de dois helicópteros.
No coração de uma cidade que abriga uma guarnição onde fica estacionado um batalhão de combate e também o equivalente à Academia Militar de West Point.
Sem apoio aéreo de caças ou drones. Sem detecção ou interferência de radares paquistaneses.
Com a eletricidade cortada no momento da incursão. Sem que a polícia atendesse chamados de vizinhos que ouviram a queda de um dos helicópteros.
E Bin Laden foi morto porque ofereceu resistência armada.
A mídia americana achou muito mais fácil acreditar nos detalhes acima do que na nova reportagem bomba de Seymour Hersh, ganhador do prêmio Pulitzer, desmentindo a versão de Obama, versão que sofreu várias alterações subsequentes desmentindo, por exemplo, que Bin Laden usou uma das esposas como escudo e tinha uma arma automática. Hersh é o repórter lendário que revelou, para reações igualmente indignadas, em 1970, o massacre de civis em My Lai, no Vietnã. Durante a ocupação americana do Iraque, ele revelou também os horrores da tortura na prisão de Abu Ghraib.
A longa reportagem de Hersh, com dez mil palavras, entrou no website da revistas literária London Review of Books no domingo, 10 de maio, à noite. Hersh afirma que a morte de Bin Laden foi resultado de uma operação acertada entre o Paquistão e os Estados Unidos, militares paquistaneses mantinham Bin Laden sob custódia desde 2006, com a aliada Arábia Saudita pagando a conta. E a intenção original, para livrar a cara do exército do Paquistão, onde Bin Laden era muito mais querido do que os americanos, era anunciar sua morte dias depois, como resultado de um ataque de drone, perto da fronteira com o Afeganistão. Mas, com a queda do helicóptero no início da operação, a Casa Branca, sem aprovação do Pentágono, teria decidido anunciar o assassinato. Poucas horas depois da publicação da reportagem, pipocavam em outros sites de jornalismo americano e na TV desmentidos categóricos, alguns compostos por repórteres de poltrona, esta praga da era digital.
11 de setembro
Nunca pus os pés em Abbottabad, não viajei com os Navy Seals num helicóptero lento como o Black Hawk e não costumo ter papos off the records com a poderosa CIA paquistanesa, conhecida pela sigla ISI. Mas, da poltrona de onde escrevo, meu reflexo, ao pesar a credibilidade de Hersh contra alguns de seus críticos, não foi chamá-lo de velho, mal apoiado em fontes anônimas (alô, escândalo de Watergate?), delirante ou seguidor de teoria conspiratória, como fizeram seus colegas. Mesmo por que ele não aponta uma conspiração mas um acobertamento. Inúmeras alegações citadas por ele estavam em circulação já nos dias seguintes ao ataque, sem que ninguém duvidasse que, sim, um grupo de seals matou Bin Laden no dia indicado pelo anúncio presidencial.
Tive mais dúvidas ao ler a virulenta reação ao artigo. E se o ocupante da Casa Branca hoje fosse George W. Bush, e não o mais complexo e mais querido da mídia, Barack Obama? E cadê um desmentido detalhado do porta-voz do presidente, não o desmentido genérico que ouvimos?
Em meio à gritaria, uma repórter com vasta experiência no Afeganistão e o Paquistão, ao contrário da maioria dos críticos de poltrona, preferiu selecionar pontos de acordo com as alegações de Hersh. Carlota Gall passou 12 anos na região, a partir de 2001. Escreveu um livro sobre sua experiência mas, por insegurança sobre a própria fonte anônima, deixou de fora uma informação que circula desde 2011: o local onde vivia Bin Laden não foi revelado pela perseverança da espionagem da CIA mas simplesmente por um desertor da inteligência paquistanesa, que queria um naco dos US$ 25 milhões da recompensa oferecida pelo líder da Al-Qaeda. Este desertor, afirma Hersh, hoje trabalha para a CIA na região da capital. Uma versão muito menos sexy do que a vendida no filme A Hora Mais Escura, onde a tortura aparece mentirosamente como um recurso usado para revelar o paradeiro de Bin Laden.
A reportagem de Seymour Hersh não pode ser cem por cento desmentida porque a operação especial que matou Bin Laden, em seu segredo, atores envolvidos e provas destruídas, não pode ser cem por cento confirmada.
Da minha poltrona naquele primeiro de maio há quatro anos, confesso que não duvidei de Obama. Estava em Nova York no 11 de setembro, a bordo de um táxi quando a fumaça da queda da primeira torre se ergueu à minha frente. Hoje, qualquer pessoa, sem sair de casa, reunindo os fatos à disposição, não precisa acreditar completamente em Seymour Hersh para concluir que a versão oficial das ninjas justiceiras parece, como sugere o veterano repórter, fantasia de Lewis Carroll.
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Lúcia Guimarães é colunista do Estado de S.Paulo, em Nova York