Uma das mais recentes novidades da Nemo, a graphic novel “O Mundo de Aisha” traz histórias sobre a violência contra as mulheres no Iêmen. Parceria entre o desenhista Ugo Bertotti e a jornalista Agnes Montanari, a obra faz parte de uma série de publicações que a editora colocará no mercado e buscam, por meio das HQs, tratar de temas profundamente políticos, algo feito com sucesso por outros títulos do gênero, como “Maus”, de Art Spiegelman, e “Persépolis”, de Marjane Satrapi.
“Era um dever publicar esse livro. Temos que denunciar com força o extremismo religioso, o radicalismo islâmico, e chamar a atenção sobre as primeiras e principais vítimas desse radicalismo, as mulheres”, diz Arnaud Vin, editor da Nemo. “A violência perpetrada contra as mulheres é uma pandemia mundial.”
Vin acredita que esse tipo de HQ, ao retratar ou denunciar certas realidades, pode chocar, provocar debates e “nos tirar da nossa passividade”. Seguindo essa linha, está para lançar também “A Metamorfose Iraniana”, que aborda “os horrores do regime dos aiatolás do Irã, o absurdo kafkiano de um regime totalitário”. A obra é de Mana Neyestani, que desde 2011 vive em Paris como refugiado político. Além disso, para 2016, o editor planeja produzir graphic novels que retratem a realidade nacional.
Indo além dos já citados “Maus” e “Persépolis”, são muitos os exemplos de quadrinhos politicamente engajados. O jornalista Joe Sacco construiu uma respeitada obra denunciando atrocidades de regiões em guerra; Guy Delisle expõe com sua arte o cotidiano de ditaduras extremamente fechadas; “Autocracia”, de Wood Phoenix, outro recém-lançado no Brasil, questiona a relação do ser humano com os automóveis e como essa indústria acaba por influenciar as pessoas, só para ficar em mais algumas amostras. Saindo dos exemplos de não ficção, pode-se encontrar fortes elementos políticos em trabalhos de nomes conhecidos, como Alan Moore e Moebius.
Augusto Paim, jornalista e doutorando em Bauhaus com uma tese sobre “Jornalismo em Quadrinhos”, cita Aristides Dutra para lembrar que as HQs já foram uma arte praticamente desconectada do mundo real, algo que começou a mudar com a contracultura nos anos 1960 e 1970, quando passaram a abordar temas engajados. “Assim, o uso dos quadrinhos para tratar de temas sociais e políticos já é em si um ato revolucionário.”
Discurso complexo
Atuando como jornalista, Paim já produziu reportagens em HQs que retratam a realidade de favelas do Rio e de moradores de rua de Porto Alegre. Ele aposta nessa linguagem para causar empatia. “Muitas vezes ela atinge em cheio a sensibilidade do leitor, mais do que notícias frígidas que são veiculadas cotidianamente nos jornais. O quadrinho talvez seja um meio adequado para tratar de questões sociais e políticas, para as quais em geral a mídia tradicional não serve mais, pois criou uma espécie de embotamento da nossa sensibilidade”, argumenta.
Uma editora nacional que assume o seu posicionamento político (à esquerda) é a Boitempo, que na segunda metade de 2014 estreou o seu selo de quadrinhos, o Barricada, nome adotado em referência a movimentos de resistência. Ressaltando que tudo o que o ser humano faz é política, a editora da casa Bibiana Leme entende que “a publicação de HQs de cunho assumidamente político é vital, é ocupar com ideais o espaço imagético, aquele no qual se entra desarmado, no qual o espírito está aberto à fruição das ideias que lhe interessam”.
Segundo a editora, não lhes servem, contudo, obras panfletárias, mas aquelas que levantam questionamentos e levam o leitor a um pensamento crítico. “Você pode concordar ou não com o que leu, mas aquilo te faz refletir, pode te fazer mudar de opinião ou deixar mais fortes ideias que já eram suas.”
Citando exemplos nacionais de quadrinistas engajados, Bibiana lembra-se de Gilberto Maringoni, que se candidatou ao governo do Estado de São Paulo em 2014 pelo PSOL. Cita também, entre outros, Laerte, “com sua mistura maravilhosa de lucidez lúdica e crítica social do mais alto nível”, além iniciativas feministas, como “lovelove6”, “Zine XXX” e “Mulheres nos Quadrinhos”.
“Ler um quadrinho politizado é entender a questão como em uma conversa com um amigo, mas sem perder a qualidade de conteúdo”, entende o quadrinista Raphael Fernandes, autor de “Apagão”, no qual imagina São Paulo sem energia elétrica por causa da falta de recursos naturais.
Também historiador, Fernandes argumenta que as HQs possuem uma linguagem bastante acessível, o que é um trunfo. “Ao invés de ser um livro teórico e longe da realidade, os quadrinhos costumam lidar com o cotidiano e, ao mesmo tempo, construir um discurso político-ideológico complexo. Alguém que nunca teve acesso a informação sobre política pode ser estimulado a pensar e entender melhor o mundo à sua volta através das páginas de um quadrinho.”
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Rodrigo Casarin, para o Valor Econômico