Mais do que fornecer uma idéia de processo – sem o que nenhuma identidade, de qualquer natureza, seria possível –, a história deve, exatamente por essa noção do processo, prevenir para que alguns acontecimentos não se repitam.
A condição humana neste mundo (o que pode ser estendido para este universo, na leitura de Loren Eiseley e sua certeza de que o homem é um órfão cósmico) não permite que se pense em nenhuma garantia de que as coisas realmente possam ser assim.
Mas devemos tentar, a exemplo de Sísifo – condenado por toda a eternidade a carregar uma pedra ao cume da montanha, de onde ela sempre rolará para as profundezas do vale.
O material publicado nas edições de domingo e segunda-feira (1 e 2/5) pela Folha de S.Paulo envolvendo a guerrilha do Araguaia, entre 1972 e 1974, é um exemplo acabado de acontecimentos que não podem voltar a ocorrer. E por isso merecem reflexões adicionais sobre os mais diferentes segmentos envolvidos, incluindo a mídia, mais especificamente os jornais.
A barbárie de se torturar pessoas, sob as mais exóticas justificativas, é algo a ser repudiado pelo tempo em que Sísifo – um dia considerado o mais astucioso de todos os mortais – foi condenado à sua tarefa repetitiva, ou seja, pela eternidade.
Se essa posição for um consenso, e é razoável pensar que seja se levarmos em conta mentalidades comprometidas com a dignidade humana em toda a sua extensão, certamente é produtiva a reflexão sobre o ambiente em que tudo ocorreu.
Banho de sangue
A guerra fria, confronto potencial entre as duas faces deste mundo, pode ser invocada como o pano de fundo deste drama localizado – que não foi o único, nem o primeiro. E lamentavelmente também não será o último. Mas aqui, numa ambientação local, o que parece interessar é a idéia de sumariedade.
Sumariedade em todos os sentidos desta palavra. Desde a noção de que uma realidade histórica possa ser abruptamente reconstruída a partir de referências arbitrárias, até a prática doentia, mas nem por isso menos execrável, de que humanos possam ser brutalizados como ocorreu com vítimas nas mãos de captores.
Aquele foi um tempo, ao longo de anos, permeado pelo medo. O medo mais terrível de que um amigo, um pai, um irmão ou irmã pudesse acabar nas mãos de sádicos postos a serviço da sumariedade.
Foi um tempo em que os jornais também tiveram seus medos e exibiram reações típicas dessa condição.
A Folha de S.Paulo, por exemplo, que agora publica esses relatos, não tinha editoriais. E um dos jornais da casa, a extinta Folha da Tarde, era simpática a determinados grupos políticos não comprometidos com atitudes desejáveis.
Veículos de reportagens e outros da Empresa Folha da Manhã, que edita a Folha de S.Paulo, foram atacados e incendiados nos chamados ‘anos de chumbo’ – e essa é apenas uma evidência de como as coisas estavam todas articuladas.
Evidentemente que não faz sentido localizar, pontualmente, este ou aquele segmento. O ambiente em que prevaleceu o terror das torturas, mortes sumárias e inexplicadas, formou um todo no qual se distinguiram apenas os que apoiaram ou foram coniventes com a brutalidade e os que, mesmo amedrontados, tiveram coragem para repudiar e resistir.
Mesmo o Exército e outras forças militares não podem ser vistas como casos à parte. Os homens que compuseram esses contingentes e se decidiram pelos métodos adotados foram e são parte da sociedade brasileira, na qual determinados segmentos optaram, brutal e esquizofrenicamente, pelo que havia de pior.
No caso dos dois principais jornais paulistas, enquanto a Folha de S.Paulo não publicava editoriais, algo inexplicável para um jornal, o Estado de S.Paulo sofria intervenção de censores e preenchia, com Camões e inopinadas receitas de bolo, o espaço destinado a notícias vetadas.
Pode ser apenas memória para algumas gerações. Mas certamente é novidade para aquelas que, entre outras iniciativas, se iniciam nas redações.
Em 16 de dezembro de 1974, Ângelo Arroyo, o ‘Joaquim’, um dos líderes da guerrilha que havia escapado do Araguaia, foi morto no que ficou conhecido como ‘chacina da Lapa’, no bairro da Lapa, em São Paulo.
Um dos repórteres que cobria polícia para o Jornal da Tarde, do Grupo Estado, abriu sua matéria, no estilo novo jornalismo, descrevendo um agente da repressão aguando um vaso de flores ressecado. Como se estivesse devolvendo a vida em meio a um literal banho de sangue.
São contradições irrelevantes nos tribunais e debates técnicos carregados de estratégia, mas matéria-prima pura para a literatura.
Filosofia de ação
Para que não permaneça a idéia de maniqueísmo simplista, convém passar os olhos pelo que publicou o Estado de S.Paulo no mesmo domingo em que a Folha retomou os horrores do Araguaia: o livro Um Cadáver ao Sol, da jornalista Iza Salles (300 pp., Ediouro, São Paulo, 2005).
O trabalho de Iza Salles trata basicamente do anarquista Antônio Bernardo Canellas, em 1922 indicado pelo recém-criado Partido Comunista do Brasil (PC do B, o mesmo que organizaria a guerrilha do Araguaia) para representar o país no 4º Congresso Internacional Comunista, em Moscou.
O livro, descrito pelo repórter Carlos Marchi, ‘escancara a vocação sempre autoritária do marxismo, ao relatar em minúcias o processo kafkaniano instaurado contra Canellas por ordem direta de Moscou’.
Quem não estiver disposto a levar Um Cadáver ao Sol a sério talvez possa dar uma olhada em outro autor insuspeito, o filósofo e escritor búlgaro Arthur Koestler (1905-1983), autor de Darkness at Noon, traduzido no Brasil por O Zero e o Infinito (238 pp, Editora Globo). Aí está outra dessas montagens que fizeram de Franz Kafka, autor de diversas obras, muito conhecido pelo seu O Processo.
A questão por trás de tudo isso é exatamente a do absurdo apossando-se do desenvolvimento histórico, abordagem cara a Fiodor Dostoievski (1821-1881) e que também seduziu Albert Camus (1913-1960).
Historicamente os anarquistas foram as maiores vítimas tanto de comunistas e seus aparatos teóricos limitados quanto de fascistas e suas truculências insuperáveis, particularmente na Guerra Civil espanhola.
Em meados dos anos 1970, quando a guerrilha estava em curso no Brasil, o governo do generalíssimo Francisco Franco matou anarquistas espanhóis pelo chamado ‘garrote vil’. Este instrumento, um remanescente da Inquisição, o Santo Ofício da Igreja Católica, também foi utilizado no Araguaia, no relato dos que colaboraram com as forças de repressão e agora pretendem ser indenizados por isso.
As brutalidades do generalíssimo são sugestivas no sentido de que o juiz espanhol Baltazar Garzón, implacável perseguidor do tirano chileno Augusto Pinochet, outro semeador de brutalidades, dispõe de mais material para investigação na própria Espanha do que tem feito crer até agora.
Para retornar ao anarquismo e a uma ignorância quase completa sobre sua história e filosofia de ação, violentado até mesmo do ponto de vista lingüístico (anarquia acabou identificado como confusão), traído em suas raízes etimológicas, vale a pena ao menos duas obras: Grandes Escritos Anarquistas, de Georg Woodcock (L&PM, 1981) e O Anarquismo Experimental de Giovanni Rossi, de Candido de Melo Neto (Editora Universidade Estadual de Ponta Grossa, PR, 1996).
Em sua essência, o anarquismo é a mais bela demonstração da dignidade humana, no interior do que Loren Eiseley chama de nossa orfandade cósmica.
Talvez por isso seja vítima de tamanha mutilação.