Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A discussão está muito ideologizada

As últimas semanas têm sido muito agitadas no que tange à discussão em torno da formação dos jornalistas. A Fenaj divulgou ostensivamente uma pesquisa que mostrava que a maioria da população prefere que os profissionais do jornalismo passem por cursos superiores na área. O resultado da sondagem serviu de munição para a entidade que mobiliza a categoria para o julgamento no Supremo Tribunal Federal da liminar que desobrigou a exigência de diploma universitário para jornalistas.


(Para quem não se lembra, em outubro de 2001 a juíza Carla Rister atendeu a uma ação civil pública que pedia essa desobrigatoriedade. A ação foi movida por grandes empresas jornalísticas e, concedida a liminar, permitiu que mais de sete mil pessoas obtivessem registros profissionais independentemente de diploma na área.)


Dias depois, uma matéria do site Congresso Em Foco colocou mais lenha na fogueira, informando que a maioria dos magistrados que julgarão a matéria já sinalizou pela rejeição à obrigatoriedade. O próprio ministro da Educação, Fernando Haddad, chegou a sinalizar que os cursos de graduação poderiam não ser as únicas portas de entrada de profissionais no jornalismo.


Gritaria na web


Na internet e entre jornalistas, estudantes e pesquisadores da área, o assunto tem rendido discussões acaloradas. No Observatório da Imprensa, todas as semanas artigos são publicados e versões são confrontadas. Numa lista eletrônica restrita a professores e pesquisadores da área, o professor Marcos Palácios insistiu em discutir aprofundadamente a possibilidade de mestrados profissionalizantes serem uma alternativa na formação de quadros mais qualificados para a profissão. Em poucos dias, a mensagem de Palácios foi objeto de reações as mais diversas, quase todas muito, mas muito apaixonadas, fazendo prevalecer argumentos corporativos e questionáveis.


Na blogosfera, gente influente do mercado e da academia vem se posicionando. Carlos Castilho (Código Aberto), por exemplo, ressalta o fato de que as escolas de comunicação não têm sido capazes de formar profissionais que possam enfrentar os novos desafios do jornalismo, provocados pelas novas tecnologias.


Alex Primo, por sua vez, afirma que a defesa do diploma não poder ser uma defesa do diploma per se, mas da formação de qualidade dos profissionais. Marcelo Träsel pega o gancho e envereda para o impacto que as novas tecnologias vêm provocando na atuação cotidiana desses profissionais. Já Márcia Benetti criticou violentamente a morosidade da inteligentsia brasileira, esperando uma atitude mais pró-ativa na condução e elevação do nível dos debates. Cética, ela acha que a batalha no STF está perdida e, com a desregulamentação no jornalismo, não só os jornalistas perderão.


Os sofismas da liminar


Discuto a obrigatoriedade do diploma desde 2001, a partir da concessão da liminar. De 2002 a 2005, debati o tema mesclando preocupações conceituais e corporativas, já que ocupava a vice-presidência do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina. Desde então, tenho feito uma autocrítica que me faz ver que a condução da questão não pode seguir essa orientação. Isto é, hoje, o debate está muito, mas muito ideologizado, o que é uma pena. Afinal, as questões centrais são deixadas de lado.


Primeiro, é sofismático o raciocínio que sustenta a liminar da juíza Carla Rister. Grosso modo, ela afirma que restringirmos o exercício do jornalismo àqueles que detêm diplomas universitários é um desrespeito à liberdade de expressão e a manutenção de um privilégio elitista. As premissas estão incorretas. Não se pode confundir o direito à liberdade de expressão com o exercício profissional do jornalismo. São coisas de natureza distinta. O primeiro é um direito, previsto em diversos protocolos, inclusive na Declaração Universal dos Direitos do Homem. O segundo é uma atribuição específica que depende de uma habilitação para tal. Isto é, o exercício de uma profissão exige conhecimentos técnicos, competências e habilidades para ser efetivado.


No caso das profissões regulamentadas – e o jornalismo é uma delas –, há outras exigências, inclusive burocráticas, para a obtenção de registro profissional. A inclusão da obrigatoriedade de diploma universitário é uma maneira de contribuir para que os quadros que exerçam o jornalismo passem por uma formação mais ampla, mais específica, mais qualificada. Isso garante que essa formação aconteça? Claro que não. Mas as leis prescrevem e outros instrumentos devem garantir a efetivação das políticas previstas em lei.


Se formos confundir o direito à liberdade de expressão com o exercício profissional no jornalismo poderemos também nos exceder e misturar acesso à justiça (um direito) com a possibilidade de ser advogado (um exercício profissional regulamentado, previsto em lei e consolidado como prática social há anos)…


Cortar a cabeça do paciente


Outro sofisma na liminar é o que condena a elitização. É verdade que nem todos têm acesso aos bancos escolares universitários. É verdade também que o salário mínimo previsto na Constituição não garante o sustento pleno de uma família de quatro pessoas. Nem por isso se defende por aí o fim do salário mínimo. O que se faz é a reivindicação de seu aumento, e da sua extensão como uma remuneração mínima, referencial para o mundo do trabalho. Da mesma maneira, não se pode atribuir à regulamentação dos jornalistas um insucesso da política pública nacional de universalização do ensino superior. Se as universidades ainda são um sonho e uma realidade de poucos, deve-se trabalhar para transformar essa realidade, e não atentar contra os cursos ou as instituições.


Retirar a obrigatoriedade do diploma para jornalistas é recuar na história, na medida em que reforçamos o entendimento de que não é necessário estudar, não é preciso se habilitar ou se capacitar para uma dada profissão. Com isso, antipedagogicamente, contribui-se para a idéia de que a escola não forma, não ajuda no desenvolvimento do sujeito, tem um papel sobressalente e descartável.


Pensando assim, agimos como o médico que decide cortar a cabeça do paciente que se queixa da dor. Decepar a parte doente não resolve o problema. Não se cura a dor. Pior: mata-se o paciente…


De qualquer forma, cabe pensar. Se as escolas brasileiras de comunicação são incapazes de despejar no mercado de trabalho profissionais qualificados, por que as empresas – de todos os portes e de todas as partes do país – continuam contratando esses jovens jornalistas?


Qualidade na formação


A discussão acerca do diploma para jornalistas sempre traz à tona uma suspeita sobre a capacidade das escolas de formar bons profissionais. Um argumento recorrente é o de que o mercado poderia fazer o mesmo, de forma mais barata e mais direcionada aos seus propósitos. Esse argumento é facilmente derrotado quando se lembra que o mercado não tem prerrogativa nem atribuição para formar profissionais, já que esta função é das escolas, das instituições e sistemas de ensino, que existem para isso. A idéia pode ser derrubada também pelo fato de que o mercado não tem condições de treinar e aprimorar todos os contingentes que anseiam por isso. O mercado não ensina, as empresas não têm infra-estrutura nem tempo ou prioridade para fazê-lo.


Cabe e deve caber às escolas de comunicação esse serviço: preparar profissionais para os desafios do mercado e as demandas sociais. As escolas de comunicação precisam ter (e muitas já têm) as condições necessárias para formar bons profissionais, já que reúnem quadros qualificados (e em constante aperfeiçoamento), infra-estrutura, experiência pedagógica. Há escolas ruins? Sim. Mas há boas também. USP, UFBA, Cásper Líbero, as PUCs, a UFSC, a UFRJ e a UnB não são bons exemplos de escolas de jornalismo?


Como em outras áreas do conhecimento, há exemplos e contra-exemplos. Veja-se o caso do Direito. Existem centenas de escolas no país que despejam milhares de novos profissionais todos os semestres no mercado. Apesar dessa quantidade, a OAB – volta e meia – se queixa que os concursos para juízes não preenchem a totalidade de suas vagas por conta da performance insuficiente dos candidatos. Nem por isso se prega o final das escolas de Direito no país… O que a OAB faz é recomendar as boas escolas, e com isso – de maneira afirmativa – sinaliza saídas positivas, esquenta a concorrência e obriga os cursos pouco recomendados a correr atrás…


As escolas de comunicação têm muito a melhorar? Sim, e precisam se preocupar com isso. Professores e pesquisadores da área precisam construir instrumentos e indicadores que afiram qualidade de ensino, eficiência na formação. Com isso em mãos, é mais fácil visualizar os resultados dos cursos, seus impactos nos mercados regionais, suas influências nas práticas e processos cotidianos, e até em procedimentos inovadores.


Nos anos 90, setores da academia que formavam a Fenaj concluíram um documento bastante importante para a qualificação do ensino na área do jornalismo. O Programa Nacional de Estímulo à Qualidade da Formação em Jornalismo é um instrumento detalhado, abrangente e aprofundado. Sabe-se que o texto de 1997 passou por avaliações e ajustes, e mesmo assim, passada mais de uma década, poucas escolas colocaram tais políticas em funcionamento. Não porque a proposta seja ruim. Pelo contrário: de tão boa, de tão comprometida, as escolas sentem dificuldade de contemplar todos os pontos, o que inviabiliza a sua implementação.


Entre outras coisas, significa que só o documento da Fenaj não basta e são necessários outros elementos para influenciar positivamente as instituições de ensino.


Parte interessada


O que, modestamente, venho percebendo é que a discussão em torno do diploma tem sido contaminada muito mais por elementos ideológicos do que racionais ou práticos. Isto é, a defesa do diploma fica muito circunscrita a argumentos circulares que endeusam o diploma por sua essência, e não pelas qualidades ou potencialidades que pode reservar. Com isso, a defesa da formação universitária em jornalismo alcança contornos meramente corporativos.


É preciso entender que é legítima a atuação corporativista de sindicatos e da própria Fenaj; afinal, são entidades classistas e têm a função de defender os interesses da categoria. Entretanto, a questão da (boa) formação dos jornalistas transcende os interesses profissionais, já que jornalismo e comunicação são atividades de finalidade pública, de clara interferência no cotidiano e no imaginário das pessoas. Isto é, essa questão afeta a todos, produtores ou consumidores de informação. Como é o caso da Medicina ou da Engenharia, por exemplo. Imaginem se estivesse em questão a formação universitária (ou não) de médicos ou engenheiros? Isso não afeta toda a sociedade que se serve de seus serviços?


Como disse, é legítima a defesa corporativa do diploma, mas é insuficiente. A sociedade ou o STF não se comovem ou se mobilizam por isso. É necessário mostrar que o jornalismo é uma atividade de caráter social e o seu exercício depende de preparo técnico, de rigor ético, de comprometimento com o interesse público, entre outros fatores que incidem concretamente na vida das pessoas.


A campanha pela defesa do diploma que a Fenaj tem levado adiante tenta mostrar essa faceta mais social do jornalismo, mas não sei se vem causando os efeitos desejados. Por quê? Porque a Fenaj é parte interessada na manutenção do diploma, por uma questão de reserva de mercado, de controle da entrada dos profissionais no ramo. E porque é parte interessada, sempre será olhada como suspeita…


As demandas da sociedade


Por isso, hoje, não sei mais se a Fenaj deveria liderar e conduzir o debate acerca da formação dos jornalistas. Não porque seja ilegítima. Não porque não seja representativa. Não. A Fenaj é uma instituição legitimada e representa 31 sindicatos de jornalistas em todo o Brasil. Tem 60 anos de grandes contribuições à categoria e à profissão. Mas há tempos vem sofrendo desgastes políticos internos e externos que afetam a sua imagem, e isso dificulta a sua atuação.


O discurso compreensivelmente ideológico da Fenaj em torno do diploma cumpriu um papel fundamental de colocar a questão na agenda nacional, de mobilizar setores nas redações e assessorias, nas escolas e nas instituições. A Fenaj e os sindicatos devem manter suas palavras de ordem, suas falas e seus discursos de mobilização, já que não podem (nunca) renunciar às suas funções políticas e aglutinadoras. Mas, insisto, a ideologização do debate sobre o diploma não cumpre propósitos além dos da mobilização.


Mas se não a Fenaj, quem deve liderar esse processo? O Fórum Nacional dos Professores de Jornalismo? A Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo? A Associação Brasileira de Imprensa? O Conselho Nacional de Comunicação Social? A Sociedade de Estudos Interdisciplinares de Comunicação? Sinceramente, não sei que entidade conseguiria reunir legitimidade, representatividade e autoridade para tanto. Talvez nem uma nem outra. Talvez um novo coletivo, especialmente formado para isso. Não tenho essa resposta. Mas é fundamental que a academia, o mercado e outros setores da sociedade possam qualificar o debate, dando mais nível e direção às discussões. É importante que esses atores contribuam para a compreensão da questão, que pensem e proponham saídas, e que tenham no seu horizonte de trabalho um único objetivo: atender às demandas da sociedade.


Se conseguirmos mostrar que o jornalismo é algo relevante e essencial para a sociedade; se conseguirmos mostrar que o jornalismo deve ser exercido por profissionais especializados e bem formados; e se conseguirmos mostrar que o nosso sistema de ensino pode responder por essa demanda social; aí, sim, estaremos contribuindo substancialmente para uma sociedade e um jornalismo melhores.

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Professor do curso de Comunicação Social – Jornalismo e do Mestrado em Educação da Universidade do Vale do Itajaí; responsável pelo projeto Monitor de Mídia e integrante da Rede Nacional dos Observatórios de Imprensa (Renoi); editor do blog Monitorando