Se depender dos esforços de muitos acadêmicos defensores da obrigatoriedade
do diploma de jornalismo para o exercício dessa profissão, a discussão sobre
esse tema continuará seriamente prejudicada. Isso vale também para alguns
pesquisadores que argumentam de forma independente das posições sindicalistas,
como Rogério
Christofoletti, professor de jornalismo da Univali (Universidade do Vale do Itajaí), com a
postagem ‘Discussão
sobre o diploma está muito ideologizada’, em seu blog Monitorando,
reproduzido neste Observatório.
Apesar de sua atuação anterior como vice-presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Santa
Catarina, Christofoletti tem o mérito de não recorrer a expedientes ad
hominem, como satanizar os que são contrários à exigência do diploma de
jornalismo. Não é por menos que ele se diferencia de grande parte dos que
defendem essa obrigatoriedade ao reconhecer a ideologização que tem tomado conta
das discussões em torno desse assunto.
Para Christofoletti, ‘a discussão em torno do diploma tem sido contaminada
muito mais por elementos ideológicos do que racionais ou práticos’ e, com isso,
‘a defesa da formação universitária em jornalismo alcança contornos meramente
corporativos’. No entanto, esse esforço de discussão se torna insuficiente, na
medida em que ele assume como verdadeiras e deixa de questionar e verificar
muitas pressuposições equivocadas sobre a ação judicial contra a formação
superior específica para o exercício do jornalismo, que está prestes a ser
julgada pelo STF (Supremo Tribunal
Federal).
Ladainha sindicalista
Apesar de fugir da surrada retórica sindicalista de apontar os opositores
como lacaios dos patrões, o professor da Univali reitera erroneamente que a Ação
Civil Pública de 2001 contra a obrigatoriedade do diploma foi ‘foi movida
por grandes empresas jornalísticas’. Na verdade, ela foi proposta pelo
procurador da República André de Carvalho Ramos, do Ministério Público Federal
de São Paulo. Foi depois disso que o Sindicato das Empresas de Rádio e Televisão do
Estado de São Paulo solicitou ingresso no pólo ativo da ação contra a União
e foi atendido, da mesma forma que a Fenaj
(Federação Nacional dos Jornalistas), que pediu sua inclusão no pólo
passivo. Uma mínima verificação das etapas desse processo desde seu início teria
mostrado que, diferentemente da federação, a participação do sindicato patronal
tem sido irrelevante. Ao repetir essa ladainha sindicalista sem verificar sua
veracidade, Christofoletti acaba reforçando a ideologização que ele mesmo se
propõe a questionar.
Outro equívoco recorrente que poderia ter sido evitado com um mínimo esforço
de verificação é a afirmação de que a liminar concedida em outubro de 2001 pela
juíza Carla Abrantkoski Rister, da 16ª Vara Cível Federal de São Paulo, teria se
baseado no pressuposto de que ‘restringirmos o exercício do jornalismo àqueles
que detêm diplomas universitários é um desrespeito à liberdade de expressão e a
manutenção de um privilégio elitista’. Apesar de ter transcrito de forma
simplificada alguns dos argumentos da referida Ação Civil Pública, a liminar,
por ter sido uma decisão liminar, praticamente não entrou nesse mérito,
limitando-se a considerar os aspectos mais formais.
O mérito da ACP foi julgado pela citada juíza em sua sentença de dezembro de
2002. O texto dessa decisão judicial apresenta alguns equívocos não relevantes
no conjunto de sua argumentação – como comparar textos opinativos de
especialistas de diversas áreas com reportagens –, mas que têm sido repetidos
ad nauseam de forma descontextualizada pelos defensores da
obrigatoriedade do diploma. E é justamente com base na batida insistente nessa
tecla que tem sido perpetrada uma das maiores distorções desse debate: a tese de
que a argumentação contra a exigência do diploma confunde liberdade de opinião
com liberdade de expressão.
Acordos internacionais
Apesar de se referir a muitas manifestações sobre esse tema que têm sido
apresentadas e confrontadas no Observatório da
Imprensa, Christofoletti apresenta nesse texto em seu blog argumentos
que desconsideram essa discussão virtual. Por exemplo:
Não se pode confundir o direito à liberdade de expressão com o exercício
profissional do jornalismo. São coisas de natureza distinta. O primeiro é um
direito, previsto em diversos protocolos, inclusive na Declaração Universal dos
Direitos do Homem. O segundo é uma atribuição específica que depende de uma
habilitação para tal. Isto é, o exercício de uma profissão exige conhecimentos
técnicos, competências e habilidades para ser efetivado. No caso das profissões
regulamentadas – e o jornalismo é uma delas –, há outras exigências, inclusive
burocráticas para a obtenção de registro profissional. A inclusão da
obrigatoriedade de diploma universitário é uma maneira de contribuir para que os
quadros que exerçam o jornalismo passem por uma formação mais ampla, mais
específica, mais qualificada. Isso garante que essa formação aconteça? Claro que
não. Mas as leis prescrevem e outros instrumentos devem garantir a efetivação
das políticas previstas em lei.
Diferentemente do que se infere dessas afirmações, os ‘diversos protocolos’ a
que elas se referem são explicitamente contrários a quaisquer restrições ao
livre acesso à atividade jornalística. Mais que isso, tratam-se de acordos
internacionais ratificados pelo Brasil, como a Declaração
Universal dos Direitos Humanos, das Nações Unidas, e a Convenção Americana de Direitos
Humanos, da Organização dos Estados Americanos:
Declaração Universal dos Direitos Humanos. Artigo XIX.
Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito
inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e
transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de
fronteiras.
Convenção Americana Americana de Direitos Humanos. Artigo 13.
Liberdade de Pensamento e de Expressão
1. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse
direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e
idéias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por
escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de
sua escolha.
2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar
sujeito a censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser
expressamente fixadas pela lei a ser necessárias para assegurar:
a) o respeito aos direitos ou à reputaçào das demais pessoas; ou
b) a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da
moral públicas.
3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias ou meios indiretos,
tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de
freqüências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de
informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a
circulação de idéias e opiniões.
Questão desfocada
Não bastasse repetir a eterna confusão dos termos da liminar de outubro de
2001 com os termos da sentença de dezembro de 2002 que vigorou até outubro de
2005, e apesar da autocrítica em relação a esse tema que afirma ter posto em
prática, Christofoletti acaba sendo pautado pela retórica da Fenaj e dos
sindicatos a ela associados, que omitem em seus sites as informações que não são
de seu agrado sobre esse processo judicial. Já não importa essa sentença mais a
esta altura dos desdobramentos. O que está em pauta é o Recurso Extraordinário
511961, do Ministério Público Federal de São Paulo, que ensejou Ação Cautelar
1.406, da Procuradoria Geral da República, para a qual foi concedida pelo STF liminar
que suspendeu a exigência do diploma em 16/12/2006.
Uma simples verificação dos termos desse recurso teria mostrado que o que
está em questão no STF é, como eu já disse anteriormente, uma concepção do
direito de liberdade de expressão que tem um significado muito maior que aquele
insistentemente repetido por muitos sindicalistas e professores de jornalismo.
Trata-se de um direito que não pertence apenas à categoria dos jornalistas, mas
a toda a sociedade.
Apesar da serenidade e do esforço ‘desideologizante’ de sua argumentação,
Christofoletti foge ao foco central do que poderia justificar a obrigatoriedade
da formação superior específica em jornalismo para o exercício dessa profissão,
que são as qualificações necessárias para ele. Ele desconsidera diversos
argumentos têm sido apresentados para mostrar que não existe um caminho único
para se obter tais qualificações. E, como não há um caminho único, a formação
superior específica em jornalismo não é uma condição necessária para o exercício
profissional. Se tiverem essa lucidez, ao analisarem esse tema à luz dos incisos
IX e XIII do artigo 5º da Constituição Federal, os ministros do STF pregarão uma estaca de madeira nessa exigência.
Para Christofoletti, ‘o discurso compreensivelmente ideológico da Fenaj em
torno do diploma cumpriu um papel fundamental de colocar a questão na agenda
nacional, de mobilizar setores nas redações e assessorias, nas escolas e nas
instituições’. Segundo ele, a Fenaj e os sindicatos não devem renunciar a suas
palavras de ordem aglutinadoras. Infelizmente, elas já passaram do ponto e
conduziram grande parte da ‘categoria’ ao estreitamento da razão.
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Jornalista especializado em ciência e meio ambiente, editor do blog Laudas Críticas