A notícia esteve em todos os jornais na última semana de agosto. Concorrendo com mais de 230 livros, o romance Budapeste, de Chico Buarque, recebeu o prêmio de melhor romance em língua portuguesa, ao fim da 11ª Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo (RS). Pelo valor em dinheiro, de 100 mil reais, e pelo nível da concorrência, que reunia nomes como José Saramago, Salim Miguel, José Nêumanne e Antonio Torres, o prêmio é de vulto. Não foi o primeiro, nem certamente será o último. Já em 2004, Budapeste havia conseguido o prêmio Jabuti de Livro de Ficção do ano. No exterior, a sua corrida também não é menor. Boas críticas na França, na Itália, e na Inglaterra esteve entre os seis finalistas de melhor ficção estrangeira.
Um livro, enfim, que se em lugar de prêmios e boas críticas recebesse medalhas, teria mais condecorações que um general de caricatura. Desta sua última premiação, disse um dos membros da Comissão Julgadora: ‘Além de ser um romance muito bem escrito, é gostoso, cativante. Parte de uma situação um tanto quanto inverossímil e consegue dar verossimilhança a essa história. E o final é surpreendente’.
O representante das empresas que concederam o prêmio procurou ser mais claro: ‘Chico Buarque está colhendo o mérito de ser o maior compositor da música popular de língua portuguesa: ele fez uma nova viagem e, para não se repetir, escreve um romance – Budapeste. As filhas dele contam que ele ficava sozinho no quarto, falando sozinho e agora esse prêmio, que primeiro é o livro, mas também é o reconhecimento ao mérito de Chico Buarque, escritor, homem que contribui com a literatura. Em nome da Cia. Zaffari Bourbon, que outorga esse prêmio, nos sentimos honrados. Cabe salientar que o processo de escolha do romance é complicado, principalmente por comparar coisas diferentes, mas eu penso que esse prêmio ficou em boas mãos’.
O porquê do prêmio
A notícia, como dissemos, foi publicada em toda a imprensa. E como repórter não discute fatos nem possui opinião, apenas publica releases, em atendimento ao critério da mais absoluta objetividade, talvez por isso ninguém discutiu, ora discutir, sequer insinuou, de passagem, o que é mesmo esse magnífico romance, tão belo e tantas vezes premiado.
Mas, parece, aqui somos injustos. Discutiram-no, sim:
‘Em Budapeste, romance marcado pela figura do duplo, Chico conta a história do talentoso ghost-writer José Costa, que narra sua própria história enquanto escreve outra. José Costa, ou Zsoze Kósta, abandona a sua vida no Rio e acaba se exilando na Hungria, onde aprende o difícil idioma, ‘segundo as más línguas, a única língua que o diabo respeita’, envolve-se com outra mulher e passa a viver entre as duas cidades. Best-seller com mais de 220 mil exemplares comercializados no Brasil, o romance é o livro de maior reconhecimento de público de Chico, segundo o editor Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras, e já foi vendido para mais de 15 países’.
Ou seja, discutiram-no à maneira dos ignorantes que pela vez primeira vêem uma obra de arte. Pelos traços e características exteriores. E em se tratando de um romance, pelo enredo, número de páginas, preço, e releases da editora. Mas estas características, reconheçamos, estão longe da razão de ser da literatura.
A coisa diferente de um romance
Quando Budapeste era apenas um livro bem organizado em elogiosos comentários, antes desse último prêmio, escrevemos:
‘Desde o momento em que o narrador do livro ‘foi dar em Budapeste graças a um pouso imprevisto, quando voava de Istambul a Frankfurt’, os leitores críticos deveriam voar para outras plagas, saudosos de Praga. Isto porque a primeira constatação é a de que o narrador não é do ramo. Se um romance for um feixe de páginas, com palavra-puxa-palavra, um conjunto de sons, com ritmo, um devaneio, um brinquedo, um jogo de costas para o mundo, bom, já não está aqui quem estava antes. Se assim for, Budapeste é um excelente romance. Mas se o que desejamos, em boa-fé, paz e paciência e esperança, é um livro que nos torne melhores do que éramos antes, e ‘melhores’ aqui expressa uma experiência de mundo que não conhecíamos, que alargue o nosso tempo de vida, pois nos acorda para o que não notávamos, e por isso nos deixa mais humanos e mais sábios, senhores passageiros, apertem os cintos para um vôo bem longe de Budapeste.
‘Na linguagem, em vários trechos o narrador é um Chico Buarque piorado, porque a passagem do verso musical, contido, sintético, para a prosa não se faz sem trauma… O leitor deveria ser poupado de um ghost-writer que vive como um compositor de sucesso. Sem trabalhar, consumindo, a comer e a beber, a pagar aulas de húngaro, sem prejuízo das suas despesas domésticas no Rio, o narrador passa mais de quatro meses num bom hotel em Budapeste! Está certo, concedamos, nisto vai uma licença… da realidade. Licença que também deve ser invocada em muitos outros trechos, mas um deles se destaca: quando na decadência, de volta ao Rio, o personagem sem dinheiro passa mais de 100 dias em um apartamento de hotel até ser cobrado!
A própria Budapeste, no livro, é uma cidade atemporal, vazia de qualquer humanidade, é um verbete na enciclopédia, ou menos que isso, uma indicação, umas linhas e umas fotos de um folder turístico’.
Visto com os olhos de hoje, depois de tantos esclarecedores prêmios, em nome da dignidade artística de um dos melhores compositores de música popular do Brasil, deveríamos dizer que Budapeste é um romance – e seja lá o que for e o sentido que se queira dar à palavra –, é um livro escrito por um medíocre ghost-writer para receber a assinatura de Chico Buarque de Hollanda. Que o livro se venda e seja reconhecido como escrito pelo genial compositor é cômico, ou tragicômico.
Comuniquem e digam a ele
Enquanto escrevo estas linhas ouço ‘A lenda do Abaeté’, no violão de Baden Powell, como uma força, como um alento para o desconforto, para a exigência que devemos ter mesmo em relação àqueles criadores que respeitamos. Acreditem, essas coisas a gente não escreve por prazer, mas ainda assim devem ser escritas.
Algum amigo, alguém da confiança dele e de coragem, precisa dizer a Chico Buarque de Hollanda que o romance não é a sua praia. Que ele não tente preencher os seus vazios musicais com o escrever ficção. Porque os desertos criativos contaminam esse gênero difícil. Algum anjo mau, mas ético, precisa soprar a seus ouvidos que não se engane com os prêmios que tem acumulado, com as boas críticas recebidas, com as vendas em alta no mercado. Porque ele, ao escrever livros como Budapeste, repete à sua maneira o destino do compositor de ‘Roda Viva’: a máquina o engole. Para o mercado, Chico Buarque é uma grife. Não existe o romance Budapeste – existe um produto Chico Buarque de Hollanda. O que ele fizer, melhor dizendo, o que ele assinar traz a marca do gênio.
Alguma dúvida? Tente esculpir, tente pintar, tente a produção de cerâmicas. Faça obras vulgares de barro, pinte-as e ponha nelas a marca FB, Francisco Buarque – terá o mesmo valor que as cerâmicas da sua vizinha assinatura FB, Francisco Brennand. Tente estudar um pouco e cantar óperas – não tenha dúvida, frente a Pavarotti, na impossibilidade estética de igualá-lo, receberá o prêmio especial de tenor de banheiro. Tente virar modelo de passarelas. Não tenha dúvida, receberá o prêmio de modelo mais qualquer coisa – uma categoria especial, alternativa, para o consumo avesso a músculos e postura de coluna. Tente jogar futebol ao lado de Júnior, Tostão e Zico em Roma, Tóquio ou Paris. Nos seus pés de Chico Buarque, se não saírem os melhores passes, com certeza receberão as melhores assistências, dos atletas coadjuvantes e do público. Mas poupe a literatura brasileira dos seus geniais romances. Porque o dano causado é bem maior que um livro cometido por um autor, qualquer, de best-seller.
Vejam, se Paulo Coelho escreve, está no uso legítimo da sua expressão e do direito do público que o adora, em mais de 100 países. Mas se Chico Buarque escreve um romance, o crime cometido é maior que o escrever um mau livro. É mais, ou melhor, é menos que um direito legítimo de expressão. Porque essa má literatura ganha prêmios, é saudada, e termina, esta é a maior desgraça, por fazer escola, de gente e autores incautos que escreverão à moda Chico Buarque de Hollanda. Porque este é que é o escrever com alma, poesia, musicalidade e outros adjetivos grandiloqüentes.Vazios, inadequados, de matarem Baudelaire pela segunda vez.
Digam a ele essas verdades porque os escritores queremos continuar a curtir e amar a música de Chico Buarque de Hollanda. Mas queremos à nossa maneira, aqui e ali desafinados, em meio ao coro geral de elogios. Que no peito dos desafinados nem sempre bate um invejoso coração.