Nos últimos meses, jornais e revistas (os jornais bem mais) puderam explorar a pauta do aborto das mais diversas formas, tanto no tratamento das notícias factuais quanto nas matérias de comportamento. Afinal, o aborto é uma realidade na vida das mulheres brasileiras: as estimativas revelam que de 750 mil a 1 milhão de mulheres se submetem anualmente a abortos clandestinos no Brasil. Até mesmo na vida daquelas que dizem que jamais fariam um aborto, mas que, diante do inesperado de uma gravidez indesejada, a ele recorrem. Esse conflito e essa ambigüidade sempre cercaram o tema, mas já se vislumbra um tratamento em que a realidade começa a ser vista como deve ser: enfrentando a discussão, tratando-a como uma questão de direitos reprodutivos e de saúde pública, retirando o véu de hipocrisia que sempre cercou o tema.
A instalação de uma comissão tripartite pela Secretaria de Políticas para as Mulheres do governo federal, em abril de 2005 – que elaborou o anteprojeto de lei que propõe a descriminalização e a legalização do aborto no Brasil – estimulou o debate. Além das matérias diretamente relacionadas à legalização, os jornais trataram do assunto em reportagens relacionadas a pedidos judiciais para aborto legal (nos casos de gravidez por estupro ou risco de vida para a gestante), ao acompanhamento dos casos de gravidez de feto anencéfalo e à distribuição da pílula do dia seguinte.
Resistências e desinformação
Essa mudança também se reflete na postura e no tratamento das notícias dos jornais e das revistas. Demorou, mas os impressos começam a entrar em sintonia com a realidade e o comportamento das mulheres brasileiras. Em 17 de setembro de 1997, a Veja já publicava longa matéria sobre o tema, em que trazia na capa várias fotos de mulheres do meio artístico e o título ‘Eu fiz aborto’. Oito anos depois, como já analisaram Mônica Bara Maia e Jalmelice Luz, aqui neste Observatório (‘Legalização do aborto: a fronteira final‘, o aborto saiu das páginas policiais nos grandes jornais, como Folha de S.Paulo, Estado de S.Paulo e O Globo e, pelo menos em alguns estados, foi para as páginas de cotidiano e comportamento. Deixou de ser pauta de polícia para ser pauta de saúde. A Folha tem repórter fixo na cobertura do tema do aborto: Cláudia Collucci, que escreve sobre saúde e direitos reprodutivos.
Na reta final dos trabalhos da comissão tripartite, o tema pautou editoriais da Folha e do Estado, onde aquele defende a legalização e este, mais cauteloso, questiona os dogmas da igreja e diz que o aborto não é mais discussão de feministas, mas um direito reprodutivos e sexual, na esfera dos direitos humanos, e está na agenda de médicos, gestores públicos, ONGs, juristas.
Ainda há resistências e desinformação. Em algumas matérias, usam-se termos relacionados ao que podemos chamar de ‘temas correlatos’ – a distribuição de pílulas do dia seguinte e o aborto nos casos de anencefalia, por exemplo. No Correio Braziliense é comum ainda o uso de expressões como ‘controle de natalidade’, em referência à política de direitos reprodutivos e sexuais, e há tendência a colocar a igreja como guardiã do Estado. Em contraponto, revistas como Cláudia e TPM disparam na frente com uma abordagem nova para a mídia impressa. A Cláudia diz a que veio já nesta capa de agosto, traz novos elementos à discussão, amplia o debate, faz reflexões até agora pouco exploradas e lança uma pergunta: se as mulheres conquistaram todas as esferas de poder, por que ter o direito de decidir mete medo em tanta gente?
Pobres e negras, a lacuna
A TPM já tinha lançado na capa, na edição de março de 2005, uma campanha pela descriminação, com depoimentos de mulheres que optaram pelo aborto e dando um painel da legislação sobre o tema no mundo. As duas revistas perceberam há algum tempo um nicho no mercado das revistas femininas e saíram em busca de um público carente de informação e novas abordagens: mulheres independentes, heterossexuais e homossexuais, com novo padrão de consumo e que não estão na busca desesperada de casamento. Essas mulheres não têm nada de ‘novas’ (sem trocadilhos…), elas estavam aí, mas os jornais e revistas não conseguiam dialogar com elas.
Em todas essas novas etapas da discussão, os impressos começam a dar um tratamento diferenciado ao tema, ampliando as fontes e o debate, que deixa de ser tratado apenas na polaridade restrita entre ser contra ou a favor. Incluir na pauta o tema do aborto com abordagens diversas é muito importante no sentido de formar e informar a opinião pública. Se não fosse com esse objetivo, qual seria então o papel da imprensa?
Mas ainda há lacunas. E perguntas: quantas pessoas lêem jornais e revistas no Brasil? Que veículos chegam às mulheres pobres, que também querem estar informadas, além das emissoras de televisão abertas? Onde estão os anseios, as expectativas, o comportamento, o padrão de consumo de um público quase invisível para jornais diários e revistas? Um público diretamente relacionado às estatísticas: são as mulheres pobres e negras as maiores vítimas do aborto clandestino e inseguro no Brasil.
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Jornalista da Cunhã (Coletivo Feminista) e assessora de comunicação das Jornadas Brasileiras pelo Direito ao Aborto Legal e Seguro