Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Filantropia da polícia ou uma história mal contada?

Mário? Que Mário? A polícia do DF resolveu fazer filantropia. A notícia (rara) chegou rápido demais Não perguntem a respeito do eletricista Mário Ferreira da Lima, de 47 anos, para a imprensa brasileira. É melhor que nós esqueçamos o homem que furtou sete quilos de carne em um supermercado de Santa Maria, no Distrito Federal, para fazer a primeira refeição após dois dias de fome e também alimentar o filho, de 12 anos, que cria sozinho. Preso em flagrante, após ser pego no ato do crime por seguranças do estabelecimento (vigiado por câmeras), Mário foi conduzido à 20ª Delegacia de Polícia (Gama Oeste), onde prestou depoimento. Às autoridades, ele disse ter contado com o ovo na cloaca da galinha: pensou que o valor referente ao benefício Bolsa Família (R$70,00) estaria disponível no momento de pagar a compra. Contou, ainda, que estava desempregado e vivia de bicos. Cerca de dois anos atrás, ele trabalhava com carteira assinada, mas perdeu o emprego depois que a esposa sofreu um acidente e passou oito meses internada em um hospital, necessitando de cuidados do marido. O crime teria sido “um ato de desespero”.

O delegado estipulou fiança de R$270,00 como condição para a liberdade de Mário. Comovida, uma policial pagou o valor, ainda na noite de quarta-feira (13/5), e Mário foi solto. A agente comentou a história com os colegas e organizou-se uma vaquinha, na delegacia, para dividir o valor. E mais que isso: os agentes levaram Mário até a casa onde mora. Lá, confirmaram a carência por que ele passava e resolveram levá-lo a um mercado para que fizesse compras de cesta básica, novamente paga pelos policiais. Essa foi, basicamente, a apuração feita pelo Correio Braziliense e publicada no site do jornal nos últimos minutos da quarta-feira. Esse foi, provavelmente, o release entregue pela Polícia Civil ao Correio Braziliense e publicado no site do jornal nos últimos minutos da quarta-feira. Na manhã seguinte, a notícia era destaque no caderno de Cidades do maior jornal de Brasília e capa da versão popular do diário (Aqui DF), com a manchete: “A fome o fez roubar, mas a bondade o libertou”. Ainda nas primeiras horas da manhã de quinta-feira (14/5), a notícia estava em muitos outros sites da imprensa local. Ao longo do dia, tornou-se viral nas redes sociais e apareceu em absolutamente todos os grandes portais de jornalismo do país. Todos. A foto que correu (várias sacolas de compras enfileiradas no chão da casa de Mário) foi clicada do celular de um dos policiais. A apuração que correu seguia o texto inicial do Correio Braziliense. (E, se bem nos conhecemos, sabemos que fora replicado / cozinhado sem pudor.) A exceção era o G1. O portal mostrou ter refeito a apuração e surgiu com novas (poucas) informações. Os sete quilos de carne, até então, eram apenas dois, por exemplo. Instaurada a comoção na internet, os telejornais também trataram de produzir a notícia. Repórteres foram até a casa de Mário, abriram a geladeira vazia, exibiram a gambiarra de lenha para cozinhar os alimentos no chão do quintal – pois também não havia gás para acender as chamas do fogão; gravaram entrevistas com ele, com os policiais e narraram o fato com entonação e texto que expressavam pena do homem e orgulho da polícia. Tudo quase como à regra. Não fosse a filantropia da polícia e a compaixão pelo criminoso.

Na sexta-feira (15/5), Mário teve agenda cheia. Era pauta nacional e estava acompanhado de um conhecido advogado de criminosos “famosos”. Entre os compromissos, participou de um link no programa Encontro (Rede Globo), para uma conversa com a apresentadora Fátima Bernardes em que ele repetiu estar arrependido e envergonhado. Poucos minutos depois, Mário (e o advogado) estava, novamente ao vivo, no estúdio do jornal local Balanço Geral (Record DF), onde repetiu a história, o arrependimento e a vergonha pelo ocorrido, em entrevista ao apresentador Henrique Chaves.

Questionamentos dos repórteres

Paralelos às câmeras, ao restante da agenda e aos cuidados do advogado, grupos se formavam na internet em uma mobilização a fim de reparar os prejuízos financeiros dos policiais, bem como continuar com as ajudas a Mário, que a esta altura conseguira também uma entrevista de emprego (articulada pela própria imprensa) e, sem saber, acumulava doações na delegacia onde fora preso por furtar – e a bondade o libertou. Ele voltou às publicações online do Correio Braziliense no final da tarde de sexta-feira (15/5), logo após a entrevista de emprego. Por ter sido contratado, o jornal deu uma suíte, permitindo, no lide, aspas do contratante e dados históricos da empresa em que Mário começaria a trabalhar na segunda-feira (18/5). Notoriamente em mais um ato de filantropia, agora do jornal para com a empresa que empregou Mário.

Simultaneamente, no corre-corre das redações, Mário constava na pauta do Fantástico (Globo) de domingo (17/5) e em programas como o de Rodrigo Faro (Record). Talvez por isso, a equipe do G1 decidiu terminar a apuração que, até então, possuía apenas duas falas: a de Mário e a da Polícia Civil. Entretanto, envolvia a esposa de Mário, os filhos de Mário (o que morava com ele e o que morava com a esposa), a comunidade onde Mário mora (e, portanto, os moradores vizinhos), o dono e os funcionários do supermercado onde o crime foi realizado e, ainda, um banco de dados da polícia – que não é interligado entre as unidades da federação.

Dessas possibilidades, a reportagem do G1 selecionou o banco de dados e o gerente do supermercado – possivelmente os mais acessíveis. Descobriram, então, que Mário já aparecera outras três vezes em delegacias. Todas por furto de carne. Ao ouvir o gerente do supermercado, a reportagem recebeu questionamentos próprios de repórteres, como o porquê de Mário ter tentado comprar, segundo disse, sete kg de carne de uma única vez, sem a garantia do dinheiro para pagar. Ou, ainda, o porquê de ter escolhido uma carne razoavelmente inacessível (coxão duro), em avaliação do gerente.

Comum é a polícia pautar as redações

No sábado (16/5), o G1 publicou essa continuidade da apuração. No domingo (17/5), Mário não apareceu no Fantástico e sequer chegou a receber algum convite do apresentador Rodrigo Faro. O site do Correio Braziliense deu o assunto por encerrado. As informações sobre a ficha criminal de Mário não viraram pauta nacional. Seu nome e imagem não surgiram mais no matinal de Fátima Bernardes nem nos jornais locais. As vaquinhas e mobilizações… é preciso apurar. Pelo aplicativo WhatsApp, a vizinhança de Mário comentava a recente fama do morador do Gama Oeste, velho conhecido dos “loteiros” (transporte coletivo ilegal) da região. Outras informações sobre o homem surgiram. Entre os áudios enviados, amigos comentavam: “Rapaz, acabei de crer que esse mundo tá perdido, mesmo, viu? Cheguei do serviço, ontem, mas era tanto carro de imprensa, tanto carro de imprensa que parecia que tava o Barack Obama lá, a Dilma… O cara que tá aí passando no jornal, o ladrão de carne, que pegaram ele roubando a carne no supermercado e ele deu uma de doido lá, de coitado, e os policiais pagaram a fiança dele e soltaram ele… E ainda mandaram uma cesta básica pra casa dele… Resumindo, esse cara é o maior picareta. Hoje de manhã, indo na padaria, vi ele no programa da Fátima Bernardes dando depoimento! Dando uma de coitado. Essas peças de picanha que eu pego aí, direto, eu pego tudo na mão dele, pô! Pego a quinze reais, vinte reais a peça. Ele rouba e vende aqui pros ‘loteiros’ do Novo Gama todinho. Agora tá aí, pagando de coitado aí. Vou te falar, esse mundo tá perdido, viu, véi? Desgrama! O cabra tá ficando rico, moço! Com as falcatrua! Dando uma de coitado, de passar fome… Esse bicho é tão cabuloso que todo dia era uma peia na mulher dele lá, e é maior viciado em pedra, pô! Pega lotação com nóis, aqui no Novo Gama, e desce bem ali, perto da passarela, perto do viaduto, ali onde fica aqueles viado e aquelas prostituta lá. Ele desce ali direto pra comprar pedra. Maior viciadão. A galera aqui tá todo mundo de cara, moço. Como é que pode uma coisa dessas? Ouvi falar que vai sair uma matéria dele até no Fantástico. O negócio tá sinistro, viu, bicho? Deixa o bicho ficar bem divulgado, bem estourado mesmo, aí, depois nóis vai lá e vamo extorquir o bicho. Rapar metade desse dinheiro dele pra ele deixar de ser otário. Tem uma pá de galera aqui no Novo Gama que tem prova que esse bicho é pilantra. O que mais tem aqui é uma galera que compra carne na mão dele. Galera aqui não compra nem carne no mercado, não, pô! É tudo na mão dele. Barato… Umas galinha morta pagar vinte reais numa peça de picanha. Quem é besta de não comprar?”

Observações: Não é comum, na cobertura de Polícia no DF, encontrar filantropia da polícia. Não é comum que os agentes da 20ª DP recebam a imprensa – até mesmo o número de coletivas é mínimo. Não é de hábito da imprensa que cobre polícia ouvir versões que não sejam a da polícia. Comum, na cobertura de polícia do DF, somente o fato de a Polícia Civil e a Polícia Militar pautarem as redações. Quando e como bem entendem. Não parece uma ideia razoável um morador do Gama Oeste se deslocar 15 km para comprar meia dúzia de alimentos – incluindo sete quilos de carne – em Santa Maria. Lembretes: Não é honesto esquecer-se de contar o restante da história. Jornalismo é feito pra vender. E é vendido. Ler jornal requer um esforço imenso (com colaboração de Raíssa Falcão).

***

Rhenan Soares é repórter e estudante de Jornalismo